Thursday, December 21, 2006
Gargantua
Mais histórias e mais imagens para recordar:
Les Albums de SAMIVEL, neste caso o GARGANTUA, segundo Rabelais, ed. Delagrave, Paris 1934.
Ou de como os excessos podem divertir e nós com eles aprender..No capítulo da disciplina de Ponocrates lemos como este estava decidido a mudar a vida de Gargantua mas sem fazer nenhuma revolução, " o que é um mau sistema".O método não era proibir, mas instruir.
Os da Resistencia
Outro livro da minha infância.
Conta as aventuras de dois diabinhos que, no inferno do Sr.Hitler, como é explicado pelos autores ( presos na altura, em 1944 ) pensam na melhor maneira de poderem fugir dali para fora.
"Eux aussi avaient leur Petite Braise - La Flamme de leur coeur- mais elle n'avait hélas ! aucun pouvoir magique, et ne pouvait pas fondre les barreaux de leur prison - de toutes les prisons - comme ils auraient voulu".
O livro foi dedicado , no Natal de 1944, deste modo:
Cet album, édité par C.D.L.R.
"Ceux de la Résistance"
est dédié aux enfants de France, en témoignage
d'une grande épopée.
Noel 1944
A memória de outros, transformada na nossa memória de sempre, não permite que se apague a chama do nosso coração.
Mas com ela precisamos de aquecer também o coração dos que agora nos rodeiam. Não se trata de um dever, mas de um verdadeiro acto de amor.
Contes des Mille et Une nuits
Este livro faz parte das minhas memórias mais antigas.
Enquanto o meu pai me lia a história eu contemplava deslumbrada as imagens.
As imagens ficaram na minha memória.
Naquele tempo um livro assim podia ser encontrado nas livrarias de Lisboa. Refiro-me a um tempo de há muito mais de meio-século.
A edição, de 1930, é da Librairie Delagrave. Mas o livro ainda conserva a vinheta da Livraria Portugalia, da Rua do Carmo.
Estas eram as prendas de Natal que me faziam sonhar e que agora mostro aos meus netos, esperando que os livros venham também a fazer parte das suas memórias felizes.
Thomas More por Hans Holbein jr. 1527
" Uns sentam-se nas tabernas e, no meio dos copos, emitem juízos sobre o talento de quem escreve e com grande autoridade criticam, tanto quanto lhes apraz, quem quer que seja, pelos seus escritos como se lhes puxassem pelos cabelos; eles, entretanto, sentem-se ao abrigo de tudo, e, como se costuma dizer, fora do alcance, pois tão lisos e tão bem barbeados andam em todo o corpo estes homens de boa vida que nem um cabelo têm por onde possam ser apanhados. Alguns são, além disso, tão ingratos que, mesmo quando se deliciam perdidamente com uma obra, nem por isso apreciam mais o seu autor; nada diferem dos convidados sem educação que, depois de terem saboreado largamente um opíparo banquete, partem para casa a arrotar, mas sem agradecerm àquele por quem foram convidados".
( UTOPIA, ed. fac simile 1518, trad. Aires A. Nascimento )
Comentário natural : outrora como agora ?
Thomas Morus
Utopians of the world, pay attention to this splendid fac-simile critical edition of Morus UTOPIA, presented with an Essay by the hand of one of the most eminent scholars and connaisseurs of Humanism and Renaissance, Prof. José V. de Pina Matins, former director of the Educational Department of the Fundação Calouste Gulbenkian.
The present director, Dr. Manuel Carmelo Rosa is now responsible, with great success, for the further development of educational and scientific activities in the Foundation, of which this is a magnificent example. We should be grateful for the dedication and enthusiasm Pina Martins during so many years put in this project.
Last, but not least, let us praise Prof. Aires A. Nascimento, responsible for the critical edition and portuguese translation.
I cannot think of a better gift for the coming NEW YEAR.
Wednesday, December 20, 2006
O Alimento do Graal
No seu quadro " A Virgem do Santo Graal " de 1857, Dante Gabriel Rossetti expõe de forma completa a simbólica da taça da Abundância, espiritual e material, segundo a tradição messiânica de Joachim de Fiore.
O Reino do Graal é o Reino do Espírito Santo, o terceiro reino do mundo, depois dos anteriores que tinham trazido a revelação do deus único, redentor. Neste último reino, do Espírito Santo, se iniciaria a época da abundância, depois de muita carência, não só espiritual, com a degradação dos tempos, como material com as fomes e as pestes que assolavam a Europa.
É no seu LIBER FIGURARUM, o Livro das Figuras, que o visionário descreve o último dos tempos.
A tradição do Graal prende-se a estas visões, não porque os seus autores tenham podido ler o códice, mas porque tais predições corriam, de uma época de abundância em que Deus redimiria o mundo de todo os sofrimentos e injustiças, para sempre, através da manifestação do seu glorioso Espírito.
As doutrinas foram espalhadas sobretudo pelas ordens mendicantes, mais próximas dos pobres e suas necessidades.
Em Portugal, por exemplo, a Rainha Santa Isabel é um dos expoentes da doutrina: veja-se o milagre do pão transformado em rosas;o seu confessor e conselheiro era um padre franciscano.
Já no século XVII veremos o Padre António Vieira pedir, quando preso pela Inquisição em Coimbra, que lhe levassem o Livro das Figuras. Há muita doutrina que ele transpõe para a sua HISTÓRIA DO FUTURO.
E Lessing, no século do Iluminismo, não esquece Joachim de Fiore e o Livro, com a divisão dos três reinos, na sua obra fundamental para o estudo do deísmo alemão, A EDUCAÇÃO DO GÉNERO HUMANO.
Mas recuperemos a fonte, a descrição da cerimónia do Graal, tal como se encontra em Chrétien de Troyes ou em Eschenbach. No primeiro a procissão é descrita de forma breve; entra um jovem com uma lança na mão, branca e esplendorosa, com uma gota de sangue escorrendo pelo fio da lâmina até à sua mão; todos podem contemplar o seu mistério mas Perceval não ousa fazer perguntas, pois tinha sido aconselhado a ser discreto; segue-se depois o graal, nas mãos de uma bela jovem que dois criados antecediam, com lustres de ouro a iluminar a sala; quando ela chegou com o graal, uma enorme claridade se espalhou fazendo empalidecer a luz dos lustres; a seguir a esta jovem entrou outra com uma salva de prata; o graal era de ouro puro, cravejado de pedras preciosas; seguiu-se a lavar ritual das mãos, e a descrição das mesas em que um banquete riquíssimo é servido, enquanto o graal passa várias vezes pelo nosso herói sem que ele pergunte seja o que fôr; a descrição dos alimentos, dos vinohs e das sobremesas do banquete é tão pomenorizada que quase nos faz salivar- algo que acontecia certamente aos que se deliciavam a ouvir Chrétien narrando estas aventuras.
Quanto ao segundo dos autores, Eschenbach, a descrição que nos oferece não é menos significativa: entra primeiro um pagem transportando a lança que sangra; abre-se depois uma porta por onde surgem duas jovens de grande beleza segurando nas mãos candelabros de ouro; seguem-se damas de grande porte e nobreza dispostas em filas de quatro (tendo aqui este número um forte simbolismo, pois representa a perfeição da totalidade);as últimas quatro damas levavam nas mãos uma pedra preciosa que durante o dia o sol penetrava com os seus raios; era uma pedra com reflexos de granada, de grandes dimensões, comprida e larga para servir de tampo de mesa; era nesta mesa que o senhor do castelo era servido;a descrição continua até que chega a rainha, vestida de seda da Arábia e transportando finalmente um objecto "perfeito e ao qual nada faltava", chamado Graal; à roda da mesa onde foi pousado o Graal havia mais de cem outras,com toda a nobreza convidada; procede-se à lavagem das mãos e começa a refeição, constando de vinho em taças de ouro e pão que é trazido da mesa do Graal, juntamente com tudo o que cada hóspede pudesse desejar " comida fria ou quente, podendo repetir à vontade os pratos já comidos, ou pedindo outros novos que não se conhecessem"; haveria de tudo, pois o Graal era "a flor de toda a felicidade; trazia à terra uma tal plenitude de benesses que os seus méritos igualavam ou quase os que se reconhecem como sendo do reino do Céu". Também neste caso a descrição detalhada abre o apetite de quem lê ou quem ouve; tudo era possível de obter pela virtude do Graal.
Alimento físico e espiritual, saciando os desejos do corpo e os sonhos da alma, permitindo a felicidade que o reino do Espírito Santo pela boca dos messianistas vinha prometendo e adiando...
Sunday, December 17, 2006
Saturday, December 16, 2006
Genio e Loucura
Para os estudiosos e curiosos da obra múltipla de Fernando Pessoa recomendo a edição em dois tomos dos seus Escritos sobre GÉNIO E LOUCURA, em recolha e transcrição de Jerónimo Pizarro para a edição crítica que tem vindo a ser publicada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
O trabalho de J. Pizarro merece os maiores elogios. Só quem não visitou outrora a velha arca, ou agora o espólio na B.N. para agrupar núcleos do mesmo ensaio ou dos mesmos temas, julgará que esse trabalho é fácil e directo, estando os documentos prontos a ser trabalhados para publicação; e omito as dificuldades de "ler" os mss.pois nem tudo o que Pessoa escreveu, antes pelo contrário, está dactilografado. A maior parte dos textos foi escrita à mão, em papéis muitas vezes de acaso, do escritório ou do café - enfim, só um grande amor à obra de Pesoa levará,como aconteceu neste caso, um estudioso a preparar mais volumes de uma edição crítica que tem sido morosa mas cujo resultado final é muito de louvar.
O passo seguinte é o de ampliar a discussão em torno destes escritos , tendo em conta as leituras de Pessoa, (a sua biblioteca) os temas então em moda, a herança de filósofos como Nietzsche , médicos e ensaístas que se debruçaram sobre a ligação entre génio e loucura, problemas de degenerescencia ( como os discutidos por Max Nordau, Freud e outros ) não esquecendo os grandes escritores que Pessoa leu e por vezes cita como cultores do fantástico e do maravilhoso que ele mesmo tenta cultivar, desde a sua juventude.
Um dos textos que logo me chamou a atenção foi o fragmento do conto intitulado THE DOOR : pela imediata relação que estabeleci com THE TURN OF THE SCREW, de Henry James, cuja obra consta da biblioteca de Pessoa.Da discussão da natureza da porta surgiria a discussão da natureza do mal, o mesmo podendo dizer-se da célebre porta do CASTELO DE BARBA AZUL.
Tuesday, December 12, 2006
NATAL 2006
No ano da Famíla.
Sagrada Família, séc. XVIII, Caza de Nossa Senhora da Aurora.
He noite de nascimento,
em que Deos mostrou seu dia.
He noite de gran memoria,
noite em dia convertida,
escuridão consumida
con gran resplendor de glória:
no meio mais luminosa
que no mundo nunca viste,
e de escura, fria e triste,
a mais doce e gloriosa.
Oh noite favorecida
de memorável coroa,
vista de Deos em pessoa,
começando humana vida!
dos anjos todos cercada,
dos elementos servida,
do Padre e Filho escolhida,
do Spirito Sancto espirada!
(Gil Vicente, AUTO DA FÉ )
Sunday, December 10, 2006
O PENSADOR
Sob a égide de RODIN, com o célebre pensador, o poema de um poeta discreto, Américo Gonçalves, que apresenta em SEARA DE PALAVRAS a sua colheita.
Livro de balanço de vida em escrita vivida, oscilando entre pensamento e sentimento, com alguma ironia distanciada como é o caso do poema "Olhares Cruzados".
Em "O Pensador" a reflexão é límpida e não oculta uma certa saudade melancólica, de si mesmo e do mundo, ao gosto de Bernardim ou do Pessoa tardio de alguma poesia rimada.
Eis o poema:
O PENSADOR
O Pensador rejeita obrigações.
Corre o espaço, mas sem meridianos
e sem montes que lhe tolham as ideias.
Quer vadiar sem tempos, nem monções,
contando os dias mas sem pensar nos anos.
Deita-se a dormir sobre as areias
divagando na Luz, fora do mundo.
Vê o tempo, mas nunca o Tempo é Alma,
já que a Alma-Razão vai definhando.
Vê a Causa a morrer no mar profundo
da lava que gorgola fervilhando.
Mas como é Pensador, lá vai pensando.
( Américo Gonçalves, Seara de Palavras, Lisboa, 2006 )
Knights of the Round Table
The Round Table was devised by Merlin " to embody a very subtle meaning. For in its name it mirrors the roundness of the earth, the concentric spheres of the planets and of the elements in the firmament: and in these heavenly spheres we see the stars and many things besides; whence it follows that the Round Table is a true epitome of the universe....When Merlin had established the Round Table he announced that the secrets of the Holy Grail, which in his time was covert and withdrawn, would be revealed by knights of that same fellowship ".
Far from every land, the legend goes on as told now to Perceval, be it Christian or heathen where chivalry resides, kinghts are seen flocking to the Round Table.
With merit and luck they are made companions, and for the love and dedication to their cause they forsake father, mother, wife and children. Their cause is equal to a priesthood one, and therefore quite difficult to be always faithful to. Some will achieve their purpose, some others will have to return to the service of the Round Table instead of reaching the holy realm of the Grail.
Perceval will be the chosen one, something he does not know yet.
Asked about this mistery Merlin answered:
" There will be three shall triumph in this undertaking: two will be virgins, and the other chaste. And one of the three shall surpass his father as the lion surpasses the leopard in strength and hardihood. He shall be held as master and sheperd over all his fellows; and the companions of the Round Table will consume their days in bootless pursuit of the Holy Grail until such time as Our Lord shall send him among them so suddenly as to confound them all".
Merlin than made a magic seat that passed in size and splendour every other.
Then the knights asked if those who sat there unduly would be in danger of their life; Merlin answered indeed, "and on account of the dangers that shall follow on it, it shall be known as the Seat of Danger".
We all know the legend, Perceval will end as King of the Grail, and Lohengrin, his son, will later take his place.
The others will keep on searching for perfection in a world full of dangers and miracles, telling their own stories over and over again, so that the "chain" is never broken, through the centuries.
That is why in some legends about the foundation of masonry we are told it goes back to the Round Table, when in fact the official Anderson's Constitution is dated 1723.
In modern times, I cannot think of anyone else but Wagner to give us a deeper insight into those magical times.
Read and listen to Lohengrin and Parsifal.
We could say that the legends of the Quest are all tales of transformation ( as some of Goethe's, see the Maerchen), and in that sense they belong to our universal, archetypal mundus imaginalis.
East and West have kept in their oral or written traditions such beautiful legendary memories.
No wonder a blogger, in IDIOCENTRISM, has asked for a translation of Bernardim Ribeiro's Menina e Moça, a portuguese "novela cavalheiresca", printed in Ferrara, 1554.
The knights are many, few the chosen, and Bernardim, having written in ancient Portuguese, has had some difficulty to reach the fame of those who wrote in ancient French or English.
Although Eschenbach, in his Parzival, mentions the Portuguese knights as "les plus téméraires" on account of the bravery of their many deeds.
Image taken from a tapisserie after a sketch of Burne-Jones (1833-1898), Birmingham Museum and Art Gallery
Friday, December 08, 2006
Les Demeures Philosophales
De novo Fulcanelli, ou Canseliet por ele.
Repare-se, nesta imagem de um manuscrito do século XV, como as indicações são mais claras do que secretas.
Ao alto da figura podemos ler:
"Busquemos a natureza dos quatro elementos no seio da Terra".
E em baixo:
Aqui começa a Solução dos Filósofos
e se faz o nosso Mercúrio".
A alusão é à natureza primordial, que é necessário conhecer e entender para que se processem as transformações desejadas.
Na parte inferior do vaso hermético temos o par de cuja união nascerá o philius philosophorum e emergindo do vaso o RER figurado nas três flores ainda fechadas, as três substancias com duas partes de uma ( a mesma côr ), e uma parte de outra ( a côr diferente ).
Mais REBIS
Rebis alquimico
É Eugène Canseliet, ao editar a obra de Fulcanelli LE MYSTÈRE DES CATHÉDRALES, que nos dá a solução do enigma alquímico que se encontra na Chapelle de l'Hotel Lallemant e Fulcanelli reproduz.
São muito os nomes atribuídos à pedra filosofal: é água, é pedra, é fogo, é matéria, é coisa desprezível, mas é também sublime luminosa, gloriosa, ascende ainda em alguns textos à denominação de Virgem sagrada, de Cristo ressuscitado ( como no Rosarium Philosophorum) é a matéria negra ou a matéria branca- enfim o que se conclui da abundância de nomes é que se trata de um arquétipo da complementeridade de opostos :
trevas/ luz
macho/ fêmea
dia/ noite
branco/ negro
etc.
Apelidada de "coisa" res /rerum na declinação latina, o ablativo é RE e o enigma significa que estamos perante "uma coisa dupla" RERE, sendo na verdade o REBIS alquímico, o andrógino sublimado e perfeito depois de consumadas as operações para o alcançar.
Escreve Canseliet ( sempre se duvidou da existência do sábio Fulcanelli ):
"RE, ablatif du latin de res, signifie ' la chose ' envisagée dans sa matière. Puisque le mot RERE est l'assemblage de RE, une 'chose', et RE, une autre 'chose', nous traduirons deux choses en une, ou bien une double chose, et RERE équivaudra ainsi à REBIS....Le mot rebis, employé par les philosophes caractérise leur compost, ou composé destiné à subir les métamorphoses successives sous l'influence du feu.
Résumons:
RE, une matière sèche, or philosophique;
RE, une matière humide, mercure philosophique;
RERE ou REBIS, une matière double, à la fois humide et sèche, amalgame d'or et de mercure philosophique" ( p. 204 )
Mas não nos esqueçamos que este vocabulário oculta, ou aponta um caminho de espiritualização e que embora aludindo sempre a imagens materiais, elementares ou químicas é sobretudo, quando não sempre, da procura do entendimento dos fenómenos do espírito e da alma que se trata.
Quanto ao outro vocábulo RER incluído ainda nas linhas do enigma:
Aqui sim, trata-se de uma proporção indicada para as matérias que estejam a ser manipuladas: duas partes de uma, seja ela qual fôr, para uma parte de outra, seja ela qual fôr.
Quanto ao resto, Canseliet diz, para aumentar a nossa curiosidade, que não lhe é permitido "rasgar o véu do mistério que a palavra encobre".
Mas não é preciso. Há arte suficiente, e filosofia suficiente, na meditação dos conceitos que sob a imagem do REBIS prendem a nossa imaginação.
Remeto para a escultura do HERMES bifronte que já coloquei no blog, fusão de um rosto masculino e de um rosto feminino como suporte de culto antigo, neste caso alusivo ainda a Dionisos, pelos ramos de videira que ornamentam a cabeça dupla.
Segundo a antiga literatura atribuída a Hermes, mítico pai da alquimia, enxofre e mercúrio são "os pais da pedra"; pois teremos então aqui possivelmente a indicação dos "componentes" necessários, depois é treinar ao fogo da paciência, a proporção correcta.
Mas: o enxofre é masculino, o mercúrio é feminino e isso nos remete de novo paara o Rebis como complemento de opostos.
Wednesday, December 06, 2006
RERE
Tuesday, December 05, 2006
Black Virgins III
Dreams and Quests
Sir Gawain warned in Vision:
"...It seemed to Sir Gawain as he slept that he stood in a meadow of greenest grass all studded with flowers.There was a hayrack in this field where a hundred and fifty bulls were feeding.The bulls were proud, and all but three were dappled. Of these three, one was neither truly dappled nor truly white, but bore traces of spots; and the other two were as white and resplendent as they could be.These three bulls were coupled together at the neck by strong, unyelding ykes. The bulls exclaimed in a body: let us go farther afield to seek out better pasture!
And with that they all moved off and wandered, not in the meadow but out across the moor, and were a long time gone. When they returned there were many that were missing, and those that came back were so thin and weak they could hardly stand.Of the three withou spot, one returned and the other two stayed behind.When they were all assembled round the hayrack they fell to fighting among themselves till their fodder was destroyed and they were forced to go their several ways.
Such was the vision of Sir Gawain."
Sunday, December 03, 2006
Domingo de Chuva
Um bom domingo de chuva com uma ópera raramente apresentada na íntegra, DIE FRAU OHNE SCHATTEN, de Strauss,com libretto de Hofmannstahl.Foi a sua sétima ópera e quarta de colaboração com o poeta austríaco, louvado ao tempo como uma das maiores glórias líricas da língua alemã, depois de Goethe. De Strauss talvez não seja a melhor obra, contudo a dimensão simbólica do texto faz dela mesmo assim um objecto de estudo muito valioso. Consideravam-na a sua FLAUTA MÁGICA, o que mostra como a ópera de Mozart deixou marcas perenes na cultura musical e não só. Mistério, jovialidade, esperança e realismo foram os ingredientes que nesta obra também iremos encontrar.
A Mulher sem sombra, oriunda do reino dos espíritos, tem de adquirir esse atributo que é só pertença dos humanos. A sombra é a projecção da sua anima, não a possuir é viver ( ou morrer ) com a falha da incompletude. Assim começa então a aventura desta mulher, casada com um imperador, podendo reinar na terra, mas a quem o pai, ciumento e zangado com a sua escolha, ameaça castigar, petrificando o marido. Maldição grave, pois o homem petrificado é aquele que também não poderá viver completo e de acordo com a sua natureza, neste caso procriar e deixar descendencia. Tudo se resolverá, como na Flauta Mágica, pois esta pretende ser uma ópera moralizante e feliz.
A sugestão que faço é a da direcção de Sir Georg Solti, acessível em dvd da Decca, pois Solti foi dos raros, ou talvez o único que, por respeito à dimensão literária, decidiu apresentar a obra na íntegra, sem os cortes que até ele eram habituais.
Para Strauss o libretto não parecia constituir nenhuma dificuldade: " não são símbolos simples? escreve ele a agradecer a recepção do segundo acto, em 1914;" o imperador que tem de ser transformado em pedra, a mulher que não tem sombra, são tudo coisas que qualquer um pode entender".Trata-se no fundo de um conto de fadas , como o conto da serpente verde de Goethe. O mundo subliminal tem de ascender a uma realidade natural, que dê espaço à vida e ao serviço da humanidade.
O acto III foi escrito durante o período da guerra de 1914-18 e isso intensifica a mensagem do texto - de respeito pela vida humana ou de castigo pela sua recusa.
As duas Faces do Hermes
Hermes bifronte
Exposição do Museu Nacional de Arqueologia, nos Jerónimos. Belíssima, bem organizada, com boa informação sobre todos os locais onde se encontraram peças da antiga Lusitânia e da presença Romana entre nós.
Obrigatória uma visita, para pais e filhos professores e alunos ou simples amantes do que é belo.
Este Hermes bifronte, de ornatos dionisíacos (ramos de vinha) coroando a sua cabeça masculina e feminina, diz tudo o que há a dizer sobre a dimensão simbólica do mito : mito de união de opostos , trevas-luz, noite-dia, sol-lua, vida e morte tudo fundido no destino do homem que o celebra.
A escultura fala por si.
A face masculina tem uma barba a conferir-lhe nobreza mais madura, a feminina é de uma jovem, como sempre jovem permanece a vida que renasce em cada Primavera.
( two-faced Hermes, 1. century A.D. found in Cacela, Algarve )
Para a leitura do mito, Pierre Grimal.
Para as Religiões da Lusitânia, José Leite de Vasconcelos.
Saturday, December 02, 2006
STROMBOLI
Sizilianische Landschaft
Parabase
Freudig war, vor vielen Jahren,
Eifrig so der Geist bestrebt,
Zu erforschen, zu erfahren,
Wie Natur im Schaffen lebt.
Und das ist das ewig Eine,
Das sich vielfach offenbart;
Klein das Grosse, gross das Kleine,
Alles nach der eignen Art.
Immer wechselnd, fest sich haltend;
Nah und fern und fern und nah;
So gestaltend, umgestaltend-
Zum Erstaunen bin ich da.
( desenho e poema de Goethe )
Liberalitas
Friday, December 01, 2006
The Garden of Love in a Baroque Way
Théatre d'Amour, a lost book from the age of the Baroque:
So manches Landt so manch Manier
So mancher Kopf so mancher Sin
An art complexion und zier
Mit funf ich doch zu frieden bin.
So many lands, so many customs,
Natures, temperaments and fashions.
So many people, so many opinions;
With five (senses) however, I am content.
I dedicate this post to the Knight and Companions of heaventree,
wishing them all a festive, loving, happy Christmas.
Black Virgins II
Black Madonna of Montserrat in Spain.
12th. century byzantine, although the story runs that the statue was carved by St.Luke.
Mons serrata, the mountain divided,serrated, is a magical place outside Barcelona. The monastery built on its peak shows an angel with a saw that goes back and forth.The mountain bears flowers and fruit and trees, even in Winter, as if it had been doomed or sacred for that purpose.
The Benedictines of the monastery saw in this exuberant capacity a symbol of the fertility of the Virgin herself. Her intercession is still begged by women who want children, or a blessed birth for them, as it was usual in the Middle Ages.
Montserrat retains its fame as a shrine of healing and growing, and is still much visited by newly married couples.
Black Madonnas are found and worshipped in many shrines: Chartres, Rocamadour, Loretto, Orléans,S.Maria Majore in Rome, to name just a few.
Their blackness is explained by the Song of Songs:
"I am black, but comely, o ye daughters of Jerusalem".
(Song of Salomon, 1:5 )
Some images are carved in ebony and that may be a reason for their mistery and special "earthly" esoteric devotion.
The Madonna of Montserrat is called "la Moreneta", the little dark one, showing a loving tenderness for her difference and blessing powers.
Thursday, November 30, 2006
Piero della Francesca
Back to Maso's painting
Thanking Gawain and his Friends in heaventree.
This is also, in a very modern way, something of a mystery :
inspired by a beautiful painting ( I was left breathless when I saw it ) the curiosity of the gesture, told in the legend, and of the colour black, told nowhere that I know, started a dialogue in the ether of the present times.
I feel, without explaining too much, that the painting of Maso leaves the same lesson Hildegarda left: the perpetual love (let us call it the perpetual life-energy) bounding creator and creation, man in the center, being origin and ultimate end, and that is why the Virgin had to leave the Saint her belt as a cord : of love as it happens in the birth of a child.
Just look at this other Vision...it is told in the SCIVIAS fourth description.
The Black Colour
According to the critics, many of Hildegarda's visions, that she ascribes only to herself, could be traced back to ancient texts already well known, as is the case with HERMAS ( not Hermes ) celebrated all through the first centuries of our era. There are many similar aspects to both visions. She was also probably acquainted with the apocaliptic traditions of the hellenisitc judaism , the IVth. Esdras and the I. Henoch. Also the Bible, of course, but that would be only natural.
Every one of the nun's texts insists upon the contrast between the Despair that precedes revelation and the Sublimity proper to the Illumination.Those are the contraries to be depassed.
She expresses those sufferings as "calcination", having experienced them herself. Calcination, a very important image- linked to the state of NIGREDO, the black depression of a soul in despair.
In a letter to Guibert de Gembloux she will write: "the light I contemplate is not coming from space....I cannot measure the height, the width or the length.I'm told it is 'the shadow of the light of life'...the words, in this vision, do not sound like human voice, they are like a flame with lightning...I cannot recognize the form of this light..."
Gorceix comments that" such light hides its opposite, the light of life"(Présentation, p.xli):
And so it is, in Hildegarde's description:
" In this light I sometimes see, but not always, another light that I'm told is the light of life....While contemplating it, all sadness and anxiety leave me: I feel like I am a young girl and not an old woman anymore".
She is, in her own way, reading the book of life.
She does not feel the rapture of such mystics as Mechtilde de Magdeburg, taken to the desert or the heart of deity, wanting to stay there forever, and she doesn't feel either the "débordement" as Gorceix puts it, of the Spanish greater mystics. Her visions do not make her lose her spirits, her consciousness, as she critizes the "cathars" of doing.
"I've received my visions due to heaven's mysteries, fully conscious, in a total awakening of my body..." she says " I testify according to the universe of man's perceptions".
How near, I'm finding, to Saint Thomas, seeing and touching to confirm his own visions...(that should take us to Maso di Banco and his marvellous picture, and understanding of the miracle).
We have spoken of the image of the black pages of the book she is writing, submerged by a wave of red colour.The black symbolizes life, whereas the red wave is already telling about the sublimity of understanding (it's on her head ).
The Book of God's Works contains ten visions, ten descriptions that do not pretend to be moral, just inspiring and illuminating, as true visions are. We shoud not look for logic, but for beauty. Also for love, the greater concept it contains,
for love is the true link between the world of matter, human life, dark as opposed to divine life, the white spiritual sphere where God dwells.
The second vision in the Book is the one that matters for us when discussing the black colour of the sphere of fire.We have seen it in the previous post on Hildegarda. She develops here with detail his vision and conception of the two fires, the black and the white one, fused in their substance and being at the origin of the primordial creation of the world.
Two images are given with special force in Hildegarda's visions:
the image of the egg of creation, in the book called SCIVIAS ;
and the image of the circle, the wheel, as the wheel of creation, moved by love in the BOOK of GOD'S WORKS I have been reffering to.
The description of the second vision in this book is rather large, and difficult for me to translate. I'll leave the indication of scholars having dealt with this magnificent nun's work: Bernard GORCEIX, for French, and Peter DRONKE,for the English world.
Very briefly, I will say that man is described as posessing a powerful energy, placing him in the center of creation, assisting and being assisted by it, according to the principle of of God. The wheel in the man's chest signifies, as does the egg, that this form of the world exists eternal in the knowledge of the true love that God is.
Love is perfection in the symbolic form of circle, wheel or egg. And God is love.
As to the fiery circle: it means that fire, the first of the elements, goes up, for it is light; but it includes all the other elements, illuminating them. It is a symbol of God's power, who is above everything and everybody and bestows life on the whole of creation.
Under this circle of illuminated fire theres is another one, a circle of black fire, submitted to the first; it means the fire of judgement, for the punishment of the evil.
But, as Hildegarda also points to attention, the two fires are united in the same one circle, meaning that Power and Judgement of God are united in the same and one Justice, they are not separated from one another.
This fiery spheres, the brilliant white one and the black surmount the ethereal pure one: in its roundness it embraces the whole world; it keeps everything from both spheres, black and white, meaning that there has to be a perfect order and measure in the Judgement : repentance limits the punishment of the sinner.
Man is placed in the centre of the World's wheel, he is the one chosen to make it move, helping God with the eternal creation.
Love is the unbreakable bound.
Wednesday, November 29, 2006
Hildegarda de Bingen
The Book of Divine Works ( Visions ) presented and trans.into French by Bernard Gorceix, 1982
Hildegarda von Bingen was the great Saint and visionary benedicitine of Middle-Age Germany. Her importance and influence has now finally been recognized by scholars in this 20th. century. She lived in the same century of Bernard de Clairvaux, she was well aware of the Cruzades, friend to Emperor Barbarossa, counselor to Popes and Cardinals among many others that looked for her wisdom.
The Book of Divine Works was her last. As a prophet she depicted ten visions where she exposed the creation and divine order that presided to it - being God, nature and man the forces and principles to be understood in a mystical way unknown until she first presented them.
As Bernard Gorceix writes in the Introduction to the book, Hildegarda belongs to the Panthéon of German culture as Meister Eckart or Duerer or Boehme do, each in their own right.
She was born 1098 ( first croisades in Syria ) and died 1179.
In between she was told to write , about the visions she "heard and saw", by a voice that for her was the voice of God.
Bernard de Clairvaux also incited her as "fille bien-aimée en Christ" ( daughter loved by Christ ) to obey "with all her love to the divine grace bestowed upon her". The Pope Eugene III does the same, when presiding a synod in Trèves ( 1147-48 ). Until now more than 300 of her letters have been studied, showing how this woman travelled, interfered, intervened in wordly as in divine matters, with great courage, when dissenting, and firm conviction of the truth she was supposed to reveal.
We will find her contacting or being contacted by dignitaries from England, Netherlands, France, Switzerland, Italy, Byzantium. She wrote a letter to Henry the II of England by the occasion of the murder of Thomas Beckett (said to repent quite quickly) another to Léonor d'Aquitqine, put in prison in 1172, and even to the Empress of Byzantium.
Her works occupy an antire volume of the Patrologia Latina by Migne ( n.197 ) .I referd the letters, but we have to consider poetry, Lieder, plays, works on science and medicine etc. She had a vast, universal culture, on the trivium and the quadrivium.
As for the visions:
SCIVIAS, written 1141-1150
LIBER VITAE MERITORUM, 1158-1163
LIBER DE OPERATIONE DEI, 1163 or 1170-1173
All those books are kept with their magnificent illuminures, the Book of the Works... being kept in the italian city of Lucques,in the Bibliotheca Governativa.
This book is considered by scholars a theology of the cosmos : a cosmic theology.
Living in the 12th. century she could feel the intense intellectual activity of Saint Albert, Saint Thomas and Saint Bonaventura.
We have also to think about Joachim de Fiore, who died c. 1202, and his LIBER FIGURARUM that would have vital importance for the messianic ideas later developped. Even Lessing, in the 18th.century will quote de Fiore.
From Toledo, Palermo, Salerne, flow at the time many treatises on the Physica- cosmological and phisiological matters are discussed and acquiring great importance.
Hans Liebeschuetz argues that the Book of the Divine Works could not have been written without the influence of oriental, iranian and gnostic cosmologies ( cit. Gorceix, p.xxxiii ). And that certainly makes great sense, when we read the texts and see the images.
Hildegarda says she worked seven yeras on hre book, with the precious moral and intellectual support of a young monk she praises, named Volmar. She gave him all her her confidence, he really was the one that helped.He lived in the monastery of Disibodenberg, she was in the monastery of Rupertsberg, and both worked together, as she tells, "to show the occult marvels". Volmar was considered a very good latinist, that would be one of the reasons why he could help polish the difficulties of a rougher expression (Hildegarde complained about her 'ignorance' in latin, but that could also be a gesture of pretense humility not to humiliate still more the scholars of the time ! ).
So: let's imagine the couple, as later alchimists couples were depicted, in Flamel or in the Mutus Liber, working syde by side on the eternal Opus of their lives, meaning the understanding of the secret mystery of Creation and the place of man in it.
In one of the pictures of SCIVIAS the young monk is shown behind the chair of the saint . And leaving no doubt about the veritas of what is being said, she casts a sort of spell in the last paragraph of the Book of The Works:
"That nobody dares to add or to take away in any sense what here goes written, if he does not want to be eliminated from the book of life and from all terrestrial happiness " (cit. Gorceix, p.xxxviii).
In another of the Book's illustration we can see the nun's head under a big red wave while writing with a pen on an open book whose pages are not white, but BLACK.
This is taking us to the next post, on the black colour.
( cont.)
Tuesday, November 28, 2006
Giotto, fresco 1303-1305
O fresco retrata a Ascensão de Cristo, levando consigo para os céus uma multidão de Anjos, santos e homens.
É interessante saber que Maso di Banco trabalhou com Giotto, de quem foi discípulo e do qual talvez tenha recebido a ideia ou mesmo a ordem de pintar a Virgem entregando o seu cinto a Tomé, o apóstolo incrédulo, no momento da Ascensão.
Continuando aqui a ler a Legenda Aurea de Voragine, cita-se São Bernardo a propósito da Ascensão de Cristo e de como ela significou a redenção da humanidade :
" O Senhor... fê-lo sentar-se à direita da sua glória, como co-iguais na glória, consubstanciais na essencia, consemelhantes pela geração, não diferentes pela majestade, e sem que nenhum deles fosse posterior ao outro na eternidade..."
E ainda, o mesmo S. Bernardo:
" Homem, tens um acesso seguro até Deus, onde a Mãe está diante do Filho e o Filho está diante do Pai, a Mãe mostra ao Filho o peito e o seio, e o Filho mostra ao Pai o lado e as chagas.Portanto, onde há tantos sinais de amor, não pode haver qualquer recusa".
A função de Cristo é a de ser advogado dos homens junto do Pai, como lembra S.João, na sua primeira carta,cap.2: Temos um advogado junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo, que é propiciação pelos nossos pecados".
Tal como o primeiro Adão é dito ter aberto as portas do Inferno, o segundo, que é Cristo, abrirá as portas do Paraíso. Acrescenta Santo Agostinho, a este propósito: " Senhor, prepara o que preparas. Na verdade, preparas-nos para Ti e preparas-Te para nós; quando preparas o lugar, não só o preparas em nós para Ti, mas também em Ti para nós".
Muito haverá a meditar sobre este fresco e o seu significado, mantendo se possível a pureza de expressão de uma fé absoluta, entregue, sem que nenhuma dúvida perturbe a íntima convicção. Da convicção faz parte um conceito complexo, que transparece nas citações de S.Bernardo e de Santo Agostinho : a de que Jesus é MEDIADOR entre os dois mundos, o divino e o humano, tal como veremos na pintura de Maso, evocando a Virgem dando o cinto a Tomé, fazendo desse gesto simbólico e complexo uma outra forma, ou a mesma, de MEDIAÇÃO entre o divino e o humano.
Erwin Panofsky, nos Studies in Iconology, humanistic themes in the Art of the Renaissance ( reed.1972 ) - obra que recomendo, dedica um capítulo ao movimento neo-platónico em Florença e no norte de Itália ( pp.129 e segs.)
O movimento neo-platónico, que em Itália floresceu pela mão de Marsilio Ficino na sua Academia de Florença, elaborava de forma sofisticada a doutrina do Amor fazendo de Platão um objecto de culto, entre o social e o místico e religioso.
Nas palavras de Panofsky a sociedade que se reunia na Academia funcionava de modo informal, convivial como se de um clube se tratasse, mas onde ao mesmo tempo se debatiam ideias e apresentavam investigações próprias de seminário, ou seitas ( iniciáticas ). Nesta Academia um outro sábio, Pico della Mirandola ( que tinha um sobrinho alquimista) veio alargar os horizontes culturais do grupo com matérias e fontes trazidas do Oriente.
É sabido que desde o século II da era cristã, em Alexandria, no Egipto, um grande foco de sabedoria mágica, química, alquímica, parte dela condensada no Corpus Hermeticum, circulava e desafiava a imaginação dos espíritos mais cultos. Ficino traduziu para latim os documentos originais do platonismo, a saber, Platão, mas também Plotino, Proclus, Porfírio, Jamblico, e outros, entre eles os textos atribuídos a Hermes Trismegistos ( Corpus Hermeticum ) e a Orfeu.Feitas as traduções o que Ficino tentou de ainda mais importante foi a conciliação destas doutrinas com a religião cristã, procurando um todo coerente que pudesse ser apresentado como sistema : foi a sua Theologia Platonica.
Ficino concebe Deus como Plotino concebeu o Uno, dando um cariz panteísta a uma doutrina que deste modo se torna heterodoxa em relação à cristã, que não permite que se identifique o Criador com o mundo criado. Segundo Ficino, Deus criou o mundo " pensando o Seu próprio Eu", pois Nele o ser, o pensar e o querer são a mesma coisa. Deus inclui em Si o universo criado, embora este não o inclua a Ele.
Avançando num resumo rápido desta teoria do Amor, este seria um "circuitus spiritualis" de Deus para o mundo e do mundo para Deus, num círculo místico permanente e perfeito.
O amor é sempre desejo, embora nem todo o desejo seja amor. Só quando o desejo se dirige a um fim supremo se pode chamar amor. Esse fim supremo é a bondade divina que se manifesta na beleza, no Belo; e o amor é assim definido como "desejo de fruição do belo", desiderio di bellezza, nas palavras de Pico, citado por Panofsky.
No século XVI a obra de maior destaque como exposição da nova doutrina do amor segundo os neo-platonistas é da autoria de Leão Hebreu : Os Diálogos de Amor. Teve grande influencia no seu tempo, em poetas, artistas e pensadores.
Contudo as pinturas de Maso e de Giotto remetem para épocas anteriores, guardando semelhantes e arquetípicas noções, que no Humanismo e Renascimento vieram a florescer.
Refiro-me precisamente aos primeiros séculos da era cristã e à sabedoria mística e alquímica trazida pelos árabes para a Península e circulando a partir do séc. X, pelo menos, para o resto da Europa. Será precisamente nas ordens religiosas que essa cultura pemanece copiada, guardada sigilosamente, longe dos olhares curiosos dos profanos. Porque havia a noção do perigo da sua heterodoxia..São conhecidas muitas atribuições. Por exemplo a AURORA CONSURGENS de S. Tomás de Aquino, que ele terá ditado já em leito de morte, parece ser uma compactação dos textos de Senior ( Ibn Umail, de quem já falei noutros posts ) e do Cântico dos Cânticos. Aqui se faz a celebração de um amor que é místico e alquímico, pois a Pedra Filosofal é dita num dos seus nomes secretos como Virgem, ou como Leite Virginal na sua primeira fase de transmutação.
Deixo a pergunta: terá o discípulo de Giotto, Maso di Banco, ocultamente comungado destas ideias, terá ele entendido ou tido as visões da Mediação do Amor, a vivência do supremo desejo do Belo ?
Contemplar os seus quadros é de verdade o que nos resta.
Um pouco mais de leitura: Edgar Wind, Mystères Paiens de la Renaissance ( trad. Gallimard,1992 )
Monday, November 27, 2006
Rosarium Philosophorum, 1550
Continuando com a sugestão do post anterior,
eis nesta obra do século XVI figurações místicas da Pedra como imagem da perfeição sublimada e redimida da Materia.
Pode ainda ler-se nesta gravura do Rosarium :
"Ela cujo pai é o sol e a mãe a lua. E do pai nasce um filho, e o filho é a mãe" (à esquerda).
" O dragão não morre sem o irmão e a irmã, não morre por um só mas pelos dois em simultâneo" ( à direita).
O três em um que Pai, Filho e Espírito Santo representam coroam o quatro, o corpo da Virgem perfeita, a Pedra, a Matéria sublimada pela devoção.
Na última página do tratado vemos Cristo ressuscitado figurando a vitória da Pedra sobre todos os males.
Se na imagem da Virgem o símbolo remete para a sublimação, na imagem de Cristo o símbolo remete para a ressureição.
De forma heterodoxa os alquimistas oferecem imagens e visões cuja contemplação deveria ou poderia enobrecer o espírito e a alma de quem procedesse a tais "trabalhos" ocultos.
Sunday, November 26, 2006
For Gawain
Maso di Banco, The Virgin gives her belt to S.Thomas.
Painting on wood, c. 1330, Staatliche Museen, Gemaelde Galerie, Berlin.
Why should the Virgin do such a thing ?
Thomas means "abyss" and "double". Others say it means "division". It is said to mean abyss because he entered the dephts of divinity when Christ answered his question saying I am the Way, the Truth and the Life. It is said to mean double because he knew in two ways the Resurection of the Lord, by seeing and by touching. It is said to mean division because he separated his spirit from the world.
Prosperus wrote in De Vita Contemplativa "to love God is to conceive in the spirit a desire for the vision of God, a hatred towards sin and the world." Some others still add that Thomas means theos, which is God, and meus, as if it would be my God,theos meus.
Now the Virigin:
She could simply give him her belt as a divine ladder to heaven.
But something more can be looked for in the apocripha.
The Gospel of Thomas reads, near the end:
112 Jesus said,Woe to the flesh that depends on the soul; woe to the soul that depends on the flesh.
113 His disciples said to him, When will the kingdom come ?
Jesus said, it will not come by waiting for it. It will not be a matter of saying 'here it is' or 'there it is'. Rather, the kingdom of the father is spread out upon the earth, and men do not see it.
114 Simon Peter said to them, let Mary leave us, for women are not worthy of life.
Jesus said, I myself shall lead her in order to make her male, so that she too may become a living spirit resembling you males.
For every woman who will make herself male will enter the kingdom of heaven.
Now may be we can amplify the symbolic meaning of the gesture in the painting: Thomas is helped to become a woman at the same time that the woman is becoming or has already become a man. Mary the Virgin could be seen as the compassive and loving face of God, the number 4 in the divine unity to be contemplated. No doubt women played significant roles in early christianity and there is in medieval themes a special attention to them, through the cult of Mary, the Virgin mother of God.
Those are also the times ( medieval, I mean, where court poetry flourished and with Dante and others, Les Fidèles d'Amour, such themes were vastly elaborated ).
I don't rule out any alchemical meaning either for many texts refer to the Virgin Mary as the philosophical stone.
For the apocripha, read: The Nag Hammadi Library in English, ed. Brill, London,1996
For Dante and others, Denis de Rougemont, L'amour et l'occident,ed. Plon, 1972 ( this book being an old classic )
For alchemy, C.G.Jung, Psychologie und Alchemie, ed. Rascher, 1952
And to complete your knowledge read the comments by Gawain, illuminating, as always.
Ver para Crer
A INCREDULIDADE DE S.TOMÉ
(Mestre da Crucificação, Griggs, pintura sobre madeira, séc.XIV
Galeria da Academia, Florença)
"Diz Santo Isidoro: Tomé, discípulo de Cristo e semelhante ao Salvador, quando ouviu foi incrédulo, mas fiel quando viu".
Ver para crer é também, neste mês de Dezembro que se aproxima, a belíssima edição da LEGENDA ÁUREA, de Tiago de Voragine, com Introdução de Aníbal Pinto de Castro, grande historiador e erudito.
A edição é da responsabilidade da editora Civilização.
Com razão chama Pinto de Castro a esta Lenda Dourada "as Mil e Uma Noites da Cristandade".
Acrescento ainda, da Nota ao Leitor, a citação de Gervásio de Cantuária ( 1141 - 1210 ) :
" Com a Beleza resplandece a luz.
No céu, contemplaremos a Beleza face a face,
ali já não teremos necessidade da arte.
Na terra, não poderemos prescindir dela ".
Friday, November 24, 2006
Iberia
Wednesday, November 22, 2006
Os Medidores
Escola Flamenga, autor desconhecido, segunda metade do século XVI.
Este é um óleo datado do tempo em que o astrólogo e mago John Dee se deslocou a Lovaina. Mostra a preocupação com a medida, as medições, a matemática ou o número e a numeração em geral. Dee foi também um matemático de renome, embora em toda a sua vida e obra se possa distinguir acima de tudo a preocupação com a Ordem em sentido mais geral e abstracto, o Princípio que geria homens e astros e que só por conhecimento ou revelação iniciáticos se deixaria desvendar.
Os Medidores, título do quadro, são também os detentores de um tal conhecimento : medem o espaço, mas medem também o tempo e os tempos mais secretos do destino, da vida de cada um.
No canto esquerdo um mestre inicia um discípulo; nas suas costas está uma balança onde os homens pesam sacos que trazem às costas ( o próprio peso da vida); uma esfera no chão separa as figuras da esquerda do homem adulto e já debruçado sobre um painel onde parece ter desenhado com um compasso uma circumferencia;do lado direito uma mulher mede um rolo de tecido: mede a vida, como se fosse uma parca, tem a tesoura a seus pés ; ao fundo, desse mesmo lado direito, uma mulher e um homem ( o par alquímico) despejam os sacos ( que podem ser de trigo, podem ser de grão ) para uma vasilha, também ela redonda.
À esquerda a esfera do mundo e do estudo , à direita a vasilha do alimento humano e natural, o que dá de verdade a vida.
Ao fundo vemos ainda o vinho a ser tirado de tonéis para as garrafas .
Em resumo, os trabalhos e os dias e a sua medição como exemplo e resumo de todo o conhecimento.
Ao leitor curioso indico a obra de que retirei a gravura, recomendando o seu estudo caso se interessem pela vida e obra de John Dee:
BENJAMIN WOOLLEY, THE QUEEN'S CONJUROR, The Life and Magic of Dr. Dee, 2002
Monday, November 13, 2006
Aires Mateus - Uma Arquitectura para o Futuro
Começo pelo Livro dos irmãos Aires Mateus: um livro que não é um catálogo mas um objecto de arte em si mesmo, pelo especial cuidado com o formato, o papel, a fotografia, o design - enfim a concepção no seu todo - que fazem do livro um objecto de grande elegância e beleza,como convém à nossa ideia de Belo.
O Belo (sim, o arquétipo de Platão)não se impõe, EXPÕE-SE, como disse Paul Celan àcerca da poesia.
E continuo com o conceito de Arquitectura que no livro se adivinha e se declara. Uma arquitectura para o presente e para o futuro, na medida em que sabemos que o futuro já está contido no presente.
Na obra dos irmãos Mateus deparamos com um exercício de Imaginário livre, depurado, lírico e místico até na sua pureza de linhas e de côr, como convém a uma sensibilidade moderna e modernista ( talvez devesse dizer também post-moderna? só que em vários criadores post-modernos se oblitera a função do objecto e tal não acontece nos modernistas nem no caso dos Aires Mateus).
Encontro nas obras reproduzidas no Livro a função essencial da relação com a natureza e a vida. Não falo de utilitarismo simplista mas sim de respeito, um sentimento mais nobre. Quem habita a casa gosta de ser amado pela casa que habita, quem visita um espaço gosta de se sentir bem acolhido.
Assim, com elegância e nobreza se recriam espaço e tempo - as medidas do Ser.
Na paisagem rural a casa está envolvida pelo corpo da terra-mãe.
Na paisagem citadina brilha a luz que reflecte todos os cambiantes.
O prazer do espaço amplo nas zonas de convívio define uma ideia de generosa partilha de vida: uma vida que se deseja fraterna e aberta na sua circulação e na sua respiração.
A pureza das linhas traz à memória arquétipos como os das construções do antigo Egipto - uma civilização que harmonizava o Belo com a função exigida. Por alguma razão os grandes arquétipos foram e são o Belo, o Bom e o Verdadeiro. O verdadeiro é bom por natureza e por isso é igualmente belo.
A arquitectura do futuro é como esta uma arquitectura da verdade : estética e ética formam os seus pilares, sem que em nada se prejudique ou perca a liberdade da imaginação.
( ed. Almedina )
Sunday, October 29, 2006
AGIR, JE VIENS
De novo e sempre Michaux, o da voz inesgotável :
"Il faut d'abord que surgisse mon démon afin qu'apparaisse mon ange"
Agir, Je viens
Poussant la porte en toi, je suis entré
Agir, je viens
Je suis là
Je te soutiens
Tu n'es plus à l'abandon
Tu n'es plus en difficulté
Tes difficultés tombent comme des ficelles déliées
Le cauchemar d'òu tu revins hagarde n'est plus
Je t'épaule
Tu poses avec moi le pied sur le premier degré de l'escalier
sans fin qui te porte
et te monte
et te calme
Jusqu'aux confins de tes horizons
Jusqu'aux confins de ta mémoire obscure
Jusqu'au coeur de l'enfant de tes rêves
poussant des nappes d'aise
j'afflue.
....
J'ai lavé le visage de ton avenir.
Saturday, October 21, 2006
El Abencerraje de Toledo,1561
A edição crítica de Francisco Lopez Estrada, reeditada na década de oitenta, ainda hoje é uma leitura que não tem substituição.
A história do Abencerraje e da bela Jarifa está impressa num livro de data desconhecida, que surge encadernado juntamente com a DIANA, novela publicada em Cuenca em 1561 e constante da biblioteca dos Duques de Medinaceli.
Apesar de se encontrar junto da obra de Jorge de Montemayor os estudiosos não pensam que a lenda do Abencerraje seja da autoria do português.
A versão manuscrita da lenda está na Biblioteca Nacional de Madrid e não parece ser datada de outro século que não este XVI.
A ediçao de 1561, de Toledo, conta a história do mouro Abindarraez e da bela Xarifa, e do alcaide de Alora e Antequera, Rodrigo de Narvaez .
Estamos perante uma narrativa cavalheiresca, de amor e generosa nobreza de alma.
Eis como é descrito o mouro, de nobre e sedutora aparencia:
"...delante hasta poco vieron venir por el camino donde ellos ivan un gentil moro en un cavallo ruano; el moro era grande, y parecia bien a cavallo, y traía vestida una marlota de carmesí y un albornoz de damasco de la mesma color, todo bordado de hilo de oro y plata. En la cinta traía una hermosa cymitarra, y traía una adarga grande, y el braço derecho arremangado, y en la mano, una hermosa y larga lança de dos hierros, y en su cabeça, una rica toca tunesi, que dando muchas bueltas por ella le servía de hermosura y defensa a su persona, con muchos rapazejos de oro colgando y muchas perlas muy gruessas, de que muy ermoso se devisava.En este hábito venía el moro mostrando muy gentil continente, y cantava un cantar que conpuso en la dulce remembrança de sus amores, que dezia:
Nascido en Granada
de una linda mora
criado en Cártama
enamorado en Coín
frontero de Álora ."
A elegancia do jovem mouro torna-o naturalmente agradável aos olhos de quem o veja, e isso mesmo aconteceu com os cavaleiros que lhe saíram ao encalço. Apreciando o seu porte, e o seu canto enamorado, não lhe fizeram mal.
O interessante, para mim, quer o texto seja de autoria portuguesa quer não, é ver nele um respeito amistoso por um representante de uma outra cultura, ela mesma respeitada na sua natureza.
O amor apaga diferenças, mas mesmo na disputa guerreira houve, na descrição do texto, o apagamento completo de razões que não fossem do código cavalheiresco entre iguais.
Como seria interessante ver a Menina e Moça apaixonar-se por este Abindarraez...Mas ele já tem o coração preso pela bela Xarifa e é dos seus amores que esta lenda trata...
Monday, October 16, 2006
Princesa Shikishi
Aos leitores que como eu se deixam seduzir pela poesia japonesa ( Haiku, ou Tanka, ou Renga, conforme) recomendo a leitura da suave e melancólica princesa SHIKISHI ( c.1150-1201 ).
Há uma bela edição bilingue, preparada por Hiroaki Sato que traduziu os poemas para inglês.
Pouco se sabe da sua vida, que decorreu retirada do mundo, mas a sua poesia foi incluída em quinze das vinte e uma antologias imperiais, onde estão seleccionados 155 dos seus poemas.
Duas marcas distinguem a obra de Shikishi: a devoção religiosa ( foi durante dez anos sacerdotisa imperial ) e uma inultrapassável saudade, lembrando a da Menina e Moça, ou a das Cantigas de Amigo, de um amor longínquo e inacessível.
Mesmo através da versão inglesa podemos sentir o ritmo de uma comoção que se exprime por imagens suaves, mas não menos poderosas:
"Rosário de contas, se tendes de vos romper, rompei-vos;
se tendes de durar, a minha resistencia enfraquecerá."
" Vi apenas a sua sombra no Rio das Abluções,
mas ele não tem coração e eu sofro com a minha dor."
Ou leia-se ainda este, de inspiração budista:
" Quando olho à minha volta, no silencio que antecede a aurora,
a noite ainda é escura, perturbada por sonhos."
Concluindo, a sua obra é tida pelos críticos como a de uma autora que representa o ideal poético do seu tempo : uma voz que não se manifesta apenas nas palavras, um sentimento que não adquire forma, uma sensibilidade que oculta mais do que revela e por isso nos toca mais profundamente.
Outonais
( in memoriam Constança Capdeville )
1.
Névoa no cabeço do monte.
A folhagem de Outono cobre o chão.
2.
Chuva nas vidraças.
A maré sobe nas pedras do rio Tejo.
3.
Acabou o Verão.
Mudou o canto dos pássaros.
4.
Rupturas no Outono.
Lágrimas caindo com a chuva.
5.
Ao sol poente romãs abertas.
Cintilam as estrelas.
6.
Outono. A noite dissolvida na bruma.
A lua brilhando alto.
7.
Nuvens rosa no horizonte tranquilo.
Despertam as gaivotas.
8.
Pingos de chuva. Lágrimas no lago
dos peixes prateados.
9.
Caem no lago as folhas amarelas.
Foge um peixe assustado.
10.
Folhas orvalhadas aguardam em suspenso
auroras de Dezembro.
11.
Melancolia do mundo
sem princípio e sem fim.
12.
Nas ondas bravas do mar
morrem os brancos amores.
13.
Como dizer que a palavra tem peso
que a palavra tem luz
que a palavra tem dor.
Wednesday, October 04, 2006
Orfeu com a sua lira
Para os melómanos, de novo Gluck, com mais uma belíssima encenação de Robert Wilson.Para os leitores de poesia, os poemas de Orfeu tal como os encontramos nos mistérios da Grécia antiga :
Noite, é a ti que o meu canto celebra
Mãe dos deuses e dos homens.
A noite é a origem de todos os seres...
O hino à noite merece ser lido comparando depois com ele o célebre poema de Álvaro de Campos:
Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio.Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
....
Alceste
Friday, September 29, 2006
Terceiro Acto
Sieglinda dará à luz Siegfried, por isso a Valquíria desejou salvá-la,mandando agora que conserve os bocados da espada quebrada.Virá a ter depois o seu papel.
Mas isso pouco importa a Wotan, abandonou a raça dos Waelsung e agora só quer castigar a afronta que a desobediencia lhe causou. As irmãs não conseguem protegê-la, Wotan irá expulsá-la para sempre do reino dos imortais, fazendo dela uma simples ( mas muito corajosa ) humana.
De certo modo Brunilda é uma variante, mais complexa, da FREIA do OURO DO RENO. Deusa da natureza, do verdejar da Primavera, figuração da Vida que Wotan já naquele prólogo estava tentado a desrespeitar, fosse qual fosse o custo. Guardou consigo o Anel, símbolo do Poder que desejava e tudo lhe permitiria, como se foi verificando.
A Valquíria é uma guerreira humanizada pela ligação à Terra, de quem nasce, e aos valores humanos que aprende a reconhecer sobrepondo-os a outros , neste caso a ambição de poder.Nascida de ERDA tem a sua substancia: forte, fiel, capaz de FAZER FRENTE ao ambicioso Wotan, seu pai.
No terceiro Acto contrapõe-se a Wotan como seu alter-ego desejável ( mas não exequível...)ao explicar que obedeceu às ordens que ele primeiro tinha dado, e provinham do coração e não de sentimentos menos nobres .
Aí, cumprindo o seu destino, fora filha obediente.
Vê-se em Brunilda a face obscura, dos afectos ignorados, recalcados, de um Wotan abismal e suicida. A sua Vontade de Poder, para além do Bem e do Mal ( ecos da leitura de Schopenhauer e de Nietzsche ) levarão ao Crepúsculo final : morrendo os valorosos heróis caem os deuses, como cairá o mundo, abrindo-se a uma cobardia sem nome, poucos anos depois.
Para a interpretação de Gwyneth Jones, na produção Boulez/Chéreau não tenho palavras que cheguem: terna, ingénua,quase infantil, nas primeiras cenas; e amadurecida pela compaixão, e decidida e grave na aceitação do castigo implorando que só
quem a mereça ultrapasse a barreira de fogo e a conquiste. Será Siegfried.
Mas isso pouco importa a Wotan, abandonou a raça dos Waelsung e agora só quer castigar a afronta que a desobediencia lhe causou. As irmãs não conseguem protegê-la, Wotan irá expulsá-la para sempre do reino dos imortais, fazendo dela uma simples ( mas muito corajosa ) humana.
De certo modo Brunilda é uma variante, mais complexa, da FREIA do OURO DO RENO. Deusa da natureza, do verdejar da Primavera, figuração da Vida que Wotan já naquele prólogo estava tentado a desrespeitar, fosse qual fosse o custo. Guardou consigo o Anel, símbolo do Poder que desejava e tudo lhe permitiria, como se foi verificando.
A Valquíria é uma guerreira humanizada pela ligação à Terra, de quem nasce, e aos valores humanos que aprende a reconhecer sobrepondo-os a outros , neste caso a ambição de poder.Nascida de ERDA tem a sua substancia: forte, fiel, capaz de FAZER FRENTE ao ambicioso Wotan, seu pai.
No terceiro Acto contrapõe-se a Wotan como seu alter-ego desejável ( mas não exequível...)ao explicar que obedeceu às ordens que ele primeiro tinha dado, e provinham do coração e não de sentimentos menos nobres .
Aí, cumprindo o seu destino, fora filha obediente.
Vê-se em Brunilda a face obscura, dos afectos ignorados, recalcados, de um Wotan abismal e suicida. A sua Vontade de Poder, para além do Bem e do Mal ( ecos da leitura de Schopenhauer e de Nietzsche ) levarão ao Crepúsculo final : morrendo os valorosos heróis caem os deuses, como cairá o mundo, abrindo-se a uma cobardia sem nome, poucos anos depois.
Para a interpretação de Gwyneth Jones, na produção Boulez/Chéreau não tenho palavras que cheguem: terna, ingénua,quase infantil, nas primeiras cenas; e amadurecida pela compaixão, e decidida e grave na aceitação do castigo implorando que só
quem a mereça ultrapasse a barreira de fogo e a conquiste. Será Siegfried.
Tuesday, September 26, 2006
SIEGLINDE
Sieglinde é a Sedutora, como fora a bela Eva.
É ela que dá o primeiro beijo na face do desconhecido que vem cair exausto no chão da sua casa.
Olha-o, como dirá depois, reconhecendo-se nele ( a outra metade, do Andrógino de Platão).
Ajuda-o a desvendar a sua origem, que se verifica ser a origem de ambos.
DÁ-LHE O NOME ( fá-lo renascer como Siegmund ) e ao indicar-lhe a espada faz dele um cavaleiro e um homem. Será ele a dar o nome à espada: Nothung.
Temos nesta trama simbólica a recuperação do mito edénico e do mito platónico - ainda que venham a desfazer-se no fim.
Percorrendo um pouco mais do Libretto veremos como do frio Inverno da alma se passa à mais cálida e sensual Primavera do corpo.
Homem e Mulher, Mulher e Homem - ecos felizes do Papageno-Papagena de Mozart, o inesquecível .
Um excerto da Ária final do 1.Acto :
Sieglinde.
Bist du Siegmund,
den ich hier sehe-
Sieglinde bin ich,
die dich ersehnt:
die eig'ne Schwester
gewannst du eins mit dem Schwert!
Siegmund.
Braut und Schwester
bist du dem Bruder-
so bluehe denn Waelsungen- Blut !
És noiva e irmã
do teu irmão-
pois que floresça o sangue dos Waelsung !
Estão lançados os dados do destino, que acabará por ser trágico.
No 2.Acto, encontramos Wotan e Bruennhilde ( que se apronta a obedecer às ordens do pai, para que proteja os amantes) ; e logo de seguida a severa e ciumenta Fricka pedindo que sejam castigados.
Belíssimo, na cena que agora representa a morada dos deuses, a esfera pendular fazendo rodar o tempo e o destino que nele vai contido. Também pode ser lida, é óbvio, como a esfera terrestre que os deuses desejaram dominar.
M.C.Escher
Ainda não é o RING de Wagner, mas é o igualmente interessante RIND de Escher - qualquer das imagens apontando para o Anel, se fechado em círculo pressupondo a perfeição, Wagner, se aberto em fita que se enrola ou desenrola pressupondo que a perfeição é desejada mas não ainda encontrada,Escher.
A imagem que se esconde é num e noutro a do Andrógino platónico, que se tornará mais explícito na gravura de cima " Laço de União " que une os dois amantes.
E na Valquíria a história de um par (perfeito) de cuja união nascerá o novo herói trágico, Siegfried, o protegido de Bruennhilde, a Valquíria, que pelo seu amor trocará a imortalidade de que poderia gozar no castelo de Wotan.
Logo nas primeiras cenas dos dois primeiros actos toda a informação simbólica é transmitida por Wagner, à boa maneira das obras de iniciação. O par Sieglinde-Siegmund não é mais do que a figuração do andrógino primordial e o seu incesto é um incesto ritual, a marca de origem de todos os heróis míticos.
No amplo salão onde Siegmund se acolhe ergue-se a enorme raiz de um freixo, árvore da Vida de um paraíso terreal, que abrigará a descoberta e a paixão dos amantes.
Siegmund retira a espada que enterrada na árvore lhe fora destinada desde o princípio (uns ecos aqui da Távola Redonda e do Rei Artur ) . E assim como a sua irmã gémea lhe acode, no início, com uma taça (o cálice do Graal, em embrião) ele lhe acudirá a ela, amando-a, com a sua espada (a força ) recuperada. Não fazem falta grandes considerações freudianas que a direcção de Chéreau também teve o bom gosto de não sublinhar, deixando a nossa leitura em aberto.
Mas como dirá Fricka, a mulher de Wotan ( o deus "indecoroso" que teve este gémeos fora do matrimónio ),a traição matrimonial de Sieglinde, que foge do marido com o irmão, terá de ser castigada.
Algum eco do próprio remorso de Wagner, que "roubou" Cosima ao marido ? Pouco importa, o homem passa, o génio musical ficará para sempre, envolto nas brumas dos fantasmas heróicos que criou.
( a continuar )
Monday, September 25, 2006
Falando de Musica
Em momento importante de discussão do que deve ser o ensino, da literatura como da música, não fará mal ler ou reler este soneto de Florbela Espanca. Pela Tarde de Música, fala-se de amor.
TARDE DE MÚSICA
Só Schumann, meu amor! Serenidade...
Não assustes os sonhos...Ah, não varras
As quimeras...Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade...
Lizt, agora, o brilhante; o piano arde...
Beijos alados...ecos de fanfarras...
Pétalas dos teus dedos feitos garras...
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!
...
...
( in Florbela Espanca, SONETOS )
Ao contrário de Fernando Pessoa, que ouve ao longe a música de um piano, ouve o instrumento, não um compositor que de verdade o apaixone, Florbela, mais sensível e tão frágil que perde a sua vida de tão apaixonada que a viveu -ouve os compositores e com eles se vai identificando enquanto declara o seu amor. Primeiro suavemente e depois com uma violência arrebatada, própria das almas românticas do tempo.
Alberto Caeiro, XI
Aquela Senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
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