Tuesday, October 30, 2012

RUI ZINK, A instalação do medo



Rui Zink, A Instalação do Medo (2012)

De vez en quando sofro da saudade de ler um bom livro. Bom neste sentido: que me surpreenda, pelo imaginário e pela estrutura narrativa, original, inovadora, irrepetível. Repeti-la seria plagiato (ainda que pelo mesmo autor).
Já li tanto, já li sempre, e às vezes vou antes ler um livro antigo do que algum destes novos que surgem em catadupa e de que não se dá conta, nem mesmo só a folhear.
Penso: estou velha, perdi sensibilidade, capacidade de alguma nova emoção. A culpa é minha.
E de repente, como aconteceu ontem, quando fui ao correio, dá-se o milagre!
Pela mão de um amigo, antigo e que muito admiro, desde os tempos da sua juvenil irreverência (e já nela a criatividade se deixava adivinhar) e do enorme brilho da sua inteligência e da sua cultura, bem maior do que o usual nas antigas décadas da Universidade.
Sempre gostei da inteligência irreverente, porque segura de si: do que sabe e do que ainda vai desejar saber, no decurso da vida. É a boa atitude de livre independência, nada tem a ver com a autocomplacência imbecil dos ignorantes.
Mas dizia eu, ontem tive a graça desse milagre que a leitura, pela mão do amigo Rui Zink, me concedeu. Abri o seu romance e não mais parei.Há muito tempo que não me acontecia. Tive, ao ler A Instalação do Medo, a mesma emoção feita de espanto causada pela leitura de O Processo, de Kafka.
A situação, inesperada; 
os diálogos, ao mesmo tempo roçando o hermético ou o absurdo de um Ionesco, reconhecíveis nas nossas perigosas situações actuais, como a forçada instalação dos célebres tdt...( ou será que já eram ddt? );
a violação da privacidade, a dois, como nos tempo da PIDE, que parece ter regressado de forma ínvia, não declarada mas dolorosamente genuína.. ;
e esse medo que vem para se instalar, e já está mesmo muito espalhado por grandes manchas da nossa sociedade (eu diria que até mesmo entre nós, criadores, sob a capa da autocensura...); 
e para lá dos diálogos ( que só por si já poderiam ser o suporte de uma bela peça de teatro, ou de uma ópera ao gosto post-moderno)
as subjacentes alusões, ou descrições do que se torna insustentável, a ponto de levar à loucura, à violência e à morte. 
Mais do que este medo que se anuncia porta a porta e se instala, de modo viral, incontornável, a descrição de situações com que deparamos dia a dia em destaque na net, nos jornais, na rua, -por todo o lado: a da indiferença perante o outro, despido da sua humanidade, como os judeus o foram outrora, de modo sistemático como nunca se vira até ao tremendo momento da "solução final".
Este medo descrito, de diversas maneiras, é próximo parente dessa ideia de alguma solução final, agora modernizada e mais adequada ao que se julga ser de imediato mais útil: empobrecer, em vez de matar logo. Pois a promoção da pobreza, física, mental, moral - matará tanto ou mais do que as câmaras que consumiram os corpos mas acabaram por elevar as almas: hoje a consciência do Holocausto é mais viva e o apelo a que nunca mais se repita fala alto.
O medo fala baixinho, por isso se tornou em arma melhor escolhida, mais fácil de espalhar e mais actuante: medo e silêncio coabitam nas almas enfraquecidas.
E de novo Rui, cuja obra é a meu ver a mais radical e significativa que nos foi dada este ano coloca na mão da mulher ( que é mãe, ou sonhou apenas ser mãe tentando esconder/salvar o filho? ) um pé -de - cabra com que rebenta a cabeça de um dos instaladores do medo.
Não por acaso é de Alberto Pimenta a epígrafe do cap. IV intitulado Corolário:
Dizes: é necessário construir o futuro.
Agora percebo por que afundas o presente.
Para instalar os alicerces.

Pimenta, o pai dos nossos radicalismos, o da desconstrução da palavra balofa, o criador da performance em que a grande erudição está sempre presente e nos ofusca com o seu brilho. Ele confronta-nos com a nossa ignorância e com muito da nossa preguiça  ( a tão louvada paciência lusitana, tão feita de desistência e cobardia...e que um dia rebenta, como a cabeça do outro cai no chão, rebentada).
 Ah, mas o que são os alicerces: os do medo, é evidente; e sobre eles se ergueria então o edifício sonhado, o da esfera dos puros, bem no alto, de onde nada do que se passe cá em baixo de arrastamento e miséria possa alguma vez ser visto, ou discutido.
Outros leitores dirão: eu prendi-me mais ao jogo subtil de trocadilhos, bem ao gosto surrealista, evocador talvez de um Boris Vian, por vezes mais do que de um Kafka. Pois sim. O humor (negro) atravessa muitas das páginas de Rui. Mas são páginas que do sorriso (de quem as entenda) logo conduzem ao pensamento profundo que não escondem, revelam, acentuam.
Nesta obra, Rui Zink deixa um grande fresco da nossa sociedade portuguesa e não só, pelo nosso exemplo passa a nova realidade que no mundo se enfrenta : e escusado será dizer, é uma realidade que ele, pela ironia crua nos convoca a combater.


Tuesday, October 23, 2012

RÓMULO DE CARVALHO-ANTÓNIO GEDEÃO

Esta Biografia do pai, Rómulo de Carvalho, cientista, e de António Gedeão, poeta, é-nos oferecida pela mão de sua filha Cristina Carvalho, ela mesma escritora conhecida, reconhecida, admirada.
Poderia não ter tido este gesto de grata memória: eu, que li no Porto, pela mão do meu pai, o Rómulo divulgador de conhecimento científico, e mais tarde em Coimbra, já com dezasseis-dezassete anos descobri o poeta (sem adivinhar que era o mesmo até me dizerem) agradeço à Cristina esta possibilidade que me dá de fazer com os netos o que o meu pai fez comigo.
Assim os grandes se perpetuam, pela nossa leitura e pela transmissão continuada. 
O livro foi concebido como eu gosto: agradável dimensão, pode ir connosco para todo o lado, ser lido em casa ou num café, bom papel que ajuda a que se ame e se guarde para outros, letra que permite leitura até de olhos cansados como os de pessoas de idade que ainda conservem espírito alerta e curiosidade intelectual.
Ah, e last, but not least: a qualidade da escrita, simples, directa, de mão corrida que não tropeça, conduz!
Por outras palavras: um livro bom, bem escrito, para todas as idades.
Carregado de boa informação, permitirá aos estudiosos da obra- seja do cientista, humanista, seja do poeta, aprofundar os seus conhecimentos.
Como Cristina escreve na Nota Prévia, Rómulo de Carvalho foi um Homem do Renascimento, o do século XX.
Na biografia é revelada a sua "vontade da ciência, da divulgação e do ensino" algo de que, pessoalmente, me lembro de ter beneficiado, ao ler os livros que o meu pai trazia, para eu ler.
Mas o encantamento da sua poesia já foi por mim descoberto: em Coimbra li Sophia de Mello Breyner, li Ricardo Reis, (sempre gostei deste heterónimo de Pessoa), António Gedeão, Miguel Torga, a par de Prévert e outros do meu convívio francês. 
Como se pode dizer tanto em tão poucas palavras?:
...
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos 
À confusão da harmonia.
(in Movimento Perpétuo)

A Poesia - espaço dado ao humano, no seu tempo, entre o caos e a harmonia - conceitos ao mesmo tempo abstractos, científicos, filosóficos (filosofia é conhecimento) e que podemos ler a par de outra obra-prima, desta vez de Sophia:
Ia e vinha 
e a cada coisa
perguntava
que nome tinha
( in Coral)

Rómulo / Gedeão alquimista da ciência, alquimista da alma.
Não me admirei, ao encontrar na vastíssima bibliografia que Cristina recolheu, um volume de 1947 sobre A Ciência Hermética, na Biblioteca Cosmos, n.55.
Já era um primeira aproximação.
Eu vejo agora, lendo este volume, editado mesmo a tempo do Ano Escolar e que desejo seja bem recebido, até como exemplo de vida de um homem que prezou acima de tudo o Ensino e a Educação como formas de progresso social, vejo agora, repito, como em pleno século XX houve em Portugal sábios da dimensão de um Leonardo da Vinci, e outros que já só se descobrem nos alfarrábios dos séculos XVI !
Perto do fim, há um episódio especialmente comovente, o do ovo, (já só casca guardada com cuidado) que um amigo oferecera à sua mãe quando do seu nascimento. Rómulo guardava esse ovo, que mostrava aos filhos, com ternura e um respeito também envolto em mistério. Cai-lhe das mãos, quebra-se em pedaços, como se da vida frágil se tratasse.
O que era? Figuração da Vida, da tal Pedra Filosofal, de que ele sabia o sentido, os outros não?
Há na biografia muito de evocação poética, como seria de esperar: é uma filha que recorda, é uma filha-escritora que dialoga com o passado e através dele nos fala..
Na biografia procura-se um sentido ao mesmo tempo de paixão e dignidade. A dignidade do Ser Humano nas suas múltiplas facetas.
Aprenderemos com este exemplo assim descrito?
Espero que sim.



Friday, October 05, 2012

UBI SUNT


Com a saudade de David Mourão-Ferreira, grande poeta, que publicou os meus primeiros poemas, aqui deixo um texto dele, que muito prezo, pois foi dedicado com amizade generosa!

Abraço: uma palavra a habitar!

Neste ano, em que não sei porquê se organiza, como se nunca tivesse existido um encontro Brasil-Portugal, quero lembrar que nunca foi preciso oficializar um conhecimento de longa duração e de muitas amizades estabelecidas, pelo menos, no meu caso, desde os anos 60!
Vinicius trazia o seu canto e encanto a Portugal, com ele vinham Chico Buarque e tantos outros, Nara Leão, Touquinho, dos últimos que vi, Ellis Regina, o sucesso era imenso, a música alegrava um país que precisava dessa emoção e alegria brasileiras.
Vinha o teatro de vanguarda: proibido, é certo, mas entretanto vinha...E para não falar depois da Revolução, das célebres telenovelas, que faziam parar os Conselhos de Ministros (talvez hoje precisassem de parar outra vez?)
Conhecíamos de cór os livros de Jorge Amado, a geração dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, a indescritível Macunaíma, a bela e intensa Clarice Lispector...e toda a outra poesia, que não cabe aqui, por ser tanta e tão de excelência. A modernidade vinha toda de lá, aqui recuperava-se um neo-realismo envelhecido!
Ocorre-me agora evocar Henrique Chaudon, que se define como poeta-marceneiro. Na Alemanha está a ser traduzido. Por aqui aguardo que alguém o descubra, como merece.
Artista também da técnica dos blogs, tem um blog: a terceira gaveta. Recomendo que se visite!henrique chaudon, busca no google.


Tríptico com melopeia

Sob a pele 
lento e surdo 
um lume. 
Pelas ruas 
somente a palha 
o velho cascalho 
das palavras.

Onde os claros, longos dias do Verão? 
Onde uns olhos amorosos, a chamar?

Tortos mortos rios
 as planícies devastadas. 
Pedra e cal 
e a mó moendo infatigavelmente.

Distante, muito além 
um obstinato fagote
recorrente e rouco.

Impossível não evocar aqui a Ballade des Dames du Temps Jadis, " de François Villon, com o célebre refrão: "Mais où sont les neiges d'antan?" que sempre acorre à memória quando a saudade do tempo que passou de repente nos ataca.
O nosso David Mourão-Ferreira também dialogou com este tema e este poema, em UBI SUNT.
Mas falo De Chaudon, o abraço é para ele e tantos poetas brasileiros que só esperam ser lidos!