Tuesday, October 26, 2010

Infâncias


Mão amiga ofereceu-me este livro, obra-prima de invenção e bom gosto, de todos os pontos de vista: o objecto-livro, com o papel, o design da paginação e da letra, tudo agradável ao leitor que pega nele e o abre, ao acaso.
E a seguir o imenso prazer da descoberta de um autor que primeiro dissera que queria publicar três livros, um da infância, outro da mocidade e um último da velhice.
E que afinal, depois de ter escrito os primeiros textos, simplesmente conclui: "eu só tive infância".
Ah, poeta feliz, de escrita tão inteligente e tão subtil!
Com a sorte de ter na filha a ilustradora que nos oferece para cada texto poético belas iluminuras, também elas inspiradas, oníricas por vezes, e sempre coloridas com os tons mais íntimos e discretos da imaginação: também ela, por certo, dirá com o pai que sempre teve infância.
Manoel de Barros, que agora descubro, faz-me lembrar por vezes o imaginário de Guimarães Rosa.
Ambos nos dão a conhecer outras linguagens, outros seres de paisagens que nos são ao mesmo tempo longínquas e muito próximas: gente de sabedoria herdada, sem contaminação.
Como não invejar alguém que se dá ao luxo de poder afirmar:
" Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação (...)Então eu trago das minhas raizes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina (...) Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. Era o menino e o rio. Era o menino e as árvores"(p.187).
Penso na mística comunhão de um São Francisco de alma pura.
E tabém penso num Alberto Caeiro - o tal que Fernando Pessoa desejava ser, mas não era: o místico que pastoreava pensamentos, em vez de se estender simplesmente na terra, a olhar as copas das árvores, sendo de verdade a terra, o sol, o rio com a sua água.
Lição que Manoel nos dá, de sermos, em vez de querermos ou de fingirmos ser.
Leio, e agradeço esta prenda que vem do Longe.

Alfredo Margarido

Leio hoje num jornal de referência uma longo artigo de Diogo Ramada Curto evocando a memória de Alfredo Margarido, um universitário que se quis sempre à margem da rotina académica mais medíocre, por feitio, como se diz no artigo, mas não apenas por isso.
O sistema académico - sim, também no meio académico há sistema, não é só no futebol - não promovia no nosso tempo os melhores, mas os mais cordatos, os mais pacíficos, os mais seguidores de modas e mestres que nem sempre o eram.
Alfredo, insubmisso, com uma insubmissão que me faz lembrar, na poesia, Herberto Helder, não se podia dar bem com a tradicional Academia portuguesa.
Possuidor de cultura política vasta, bem como de cultura literária e filosófica, dificilmente se deixaria enquadrar nesta ou naquela imposição doutrinária. Havia ordem? Ele desobedecia!
Nas suas aulas obrigava a pensar, a estabelecer "pontes" que à primeira vista podiam não se ver (como no Conto de Goethe) : era necessário estudar para as construir, num discurso mais subtil e mais elaborado. Era preciso ter capacidade de entendimento e de conhecimento.
Faltou, nesse justo texto de evocação, uma referência não menos importante ao seu contributo, nas letras portuguesas, para o que se chamava de nouveau roman, com um romance pioneiro e de há muito esgotado ( e ignorado?): guardo-o, na estante que chamo "dos amigos" junto com outros que foram e são igualmente marcantes, embora não os reeditem: os editores são, como o resto do país, uma gente ora inculta ora ingrata.
Refiro-me a A Centopeia, de 1961, hoje em dia impossível de encontrar a não ser por sorte em livreiros antiquários.
Mas fica a sugestão: reedite-se uma obra pioneira pelo tema, a experiência africana, e sobretudo pela inovação da escrita.