Monday, November 29, 2010

Provérbios, Fernando Pessoa

Numa bela edição, a Ática regressa ao eterno amor que é Fernando Pessoa, em Portugal e no mundo.
Lembro-me de ler, quando jovem estudante em Coimbra, o heterónimo Ricardo Reis, na edição da Ática. Eu lia nessa altura sobretudo Pessoa e Sophia de Mello Breyner, além de Jacques Prévert, mas este não constava ainda da esfera da gente culta do tempo.
Pela mão deste investigador, Jerónimo Pizarro, que fez da obra de Pessoa o centro da sua actividade, e ainda bem, pois houve uma altura em que o espólio quase parecia esquecido entre o sono e o sonho, caros ao poeta vão saindo novidades, como esta.
O primeiro mérito, que saúdo, é ter recuperado para uma editora como a Ática, nesta chamada Nova Série um espaço que espero seja alargado a outros, poetas e prosadores.
Recordo Helena Cidade Moura e David Mourão-Ferreira como ilustres consultores no início dos anos sessenta, quando eu mesma, pela mão deles, ali publiquei poesia e romance.
Era um tempo em que os editores nos liam, falavam connosco e não apenas com o mercado. Nenhum deles, apesar de eu ser ainda tão nova e estreante me perguntou que tiragem média acha que pode vender?
Foi também nesses anos, e pela mão de Helena e de David, que li pela primeira vez Herberto Helder, e desde aí sempre, e festejo agora em pensamento os seus 80 anos, e um disco, lançado hoje, contendo poesia sua. O disco, para quem tenha curiosidade, é de Joana Machado e chama-se Travessia dos Poetas- Rosapeixe.
Mas basta de saudade e vamos ao Pessoa:
O grande interesse desta edição é mais uma vez verificar como era incessante o trabalho do poeta, tentando, pela escrita, pela tradução, pelos inúmeros projectos dos quais muitos nunca chegariam a bom termo, fazer pela vida ( para usar um termo já usado por António Mega Ferreira ).
Mas fazer pela vida sempre num espaço seu e muito próprio, o das letras, nacionais ou estrangeiras como seria aqui o caso.
Útil para o estudioso ou o simples leitor é a recolha paciente: são os provérbios portugueses que Pessoa foi encontrando em variadas fontes, de que J.Pizarro nos vai dando conta.
Em ano de celebração da República vale a pena distinguir o fac-simile da Bibliotheca do Povo, n.45, de Novembro, que Pizarro reproduz.
Sim, houve um tempo em que se dava especial atenção ao povo e às escolas, e se ofereciam, em pequeno formato, algumas boas bases de tradição e memória.
Na sua introdução, muito informada e cuidada, o autor faz o percurso comentado das fontes, tanto das que Pessoa citou explicitamente como daquelas que utilizou.
E seguem-se as transcrições do espólio, nas duas línguas.
Que a letra de Pessoa é difícil de ler e logo aí quem o transcreva merece prémio (se existe) e elogio - não há dúvida.
Mas quanto à capacidade de tradutor do nosso poeta, já ponho algumas reservas.
Nem sempre dar a conhecer ao mundo tudo o que ficou num espólio, mesmo de um grande, como é o caso, favorece a sua imagem. Pessoa traduz muito bem do inglês para português, como se vê pelas traduções de Poe, ou do mago Crowley; seria magnífico se nos tivesse dado algum Shakespeare, ou um Whitman, tanto do seu agrado (veja-se a biblioteca).
Mas já não consigo dizer o mesmo da "retroversão".
Provérbios, bem como frases idiomáticas, sabemos que não se podem traduzir à letra de uma língua para outra. Há que encontrar as formas equivalentes, próprias da tradição, memória e uso corrente de cada língua, de cada país para o qual se tente fazer esse trabalho.
E ao contrário do que muitos ainda e sempre defendem, Pessoa não era um bilingue-nato e não era perfeito, nem no inglês (nem no francês). Não me admira que o editor inglês, delicadamente, não tenha dado andamento ao projecto.
Falta que Jerónimo Pizarro, a quem de novo felicito pelo seu trabalho, nos diga se encontrou na biblioteca de Pessoa algum dicionário de provérbios ingleses que pudesse ter dado ao poeta a indicação correcta de como melhor traduzir, neste caso adaptar, os nossos exemplos aos outros, mantendo um pouco do ritmo, para já não dizer do sentido e da ideia.
Peço ao poeta que lá na sua esfera luminosa e distante me perdoe, nos perdoe.
Alguém devia fechar a arca, respeitosamente, como quem fecha um caixão...
Damos a lume o que ele talvez, se fosse vivo, pensando melhor, queimasse.
Dirão: mas o estudioso....é verdade, para o estudioso tudo é útil, daí o mérito do editor.
Mas haverá assim tantos estudiosos?
Se há, na era da digitalização, essa devia ser a forma ideal escolhida.
Escolho só um dos muitos maus exemplos possíveis:
"quem anda na guerra dá e leva", " who is in the war gives and takes".
Um nonsense total, para o hipotético leitor inglês.
Porque se no coloquial português sabemos que dar e levar é "dar e levar pancada" (porrada seria o termo mais popular) os termos "give and take" em inglês não têm este significado, e imagine-se a cara de espanto do nativo: gives what? takes what?
Enfim, acho que me fiz entender, em português corrente.





Friday, November 19, 2010

De Frente para o Mar

Este livro, concebido e coordenado pelo poeta e orientalista David Rodrigues, com o belo título que nos faz olhar de frente para o mar, seja na vaga inquieta da emoção ou num embalar mais suave de alma, é a minha escolha de momento.
Precisamos da meditação que a arte do Haiku japonês nos ensina : olhar atento, distância, aprofundamento, na era de vertigem que é a nossa.
Encontro, junto de David, amigos de outrora e de sempre.
Também o reencontro é algo de benéfico: fala da vida continuada.
Abrir o livro e ler, em páginas de acaso, permite descobrir como a escolha foi cuidadosa, como a unidade é íntima, é perfeita, em todos os elementos.
Uma tal sensibilidade e elegância merece, da nossa parte, o destaque e a gratidão.




Tuesday, November 02, 2010

Mais Ismos, evocando Hein Semke





Uma recente exposição de Gauguin, o Fauvista por excelência que vemos com os seus nús de jovens tahitianas quebrar alguns tabús epocais, fez-me pensar noutros artistas, com iguais "marcas" de estilo, sobretudo pela força do colorido e da expressão - no sentido do Expressionismo tal como foi definido pelos seus cultores, no início do século XX.
Afinal os "ismos" são de todos os tempos e de todos os espaços: a violência da côr, a velocidade da forma, a intensidade e espessura do traço podem ser encontrados num pintor como Hein Semke, por exemplo, no seu "exílio" português.
Como poderemos defini-lo, a ele que não gostava de definições?
A liberdade a que aspirava, no exercício da sua arte, transparece em todas as áreas que escolhe como campo de trabalho: as cerâmicas, as pinturas, as esculturas, os livros.
Só uma limitação, aquela que o material a usar lhe impõe : o barro ou o bronze não são o mesmo que o papel ou a tela.
Contudo e volto aos ismos, a modernidade da obra de Semke está patente em toda a obra produzida: formas livres, até mesmo libertárias (num Portugal que à época, anos 50-60, desviava com falso pudor o olhar pequeno-burguês que fingia não deitar sobre a arte); livre na obra, livre nas amizades, a maior parte do círculo dos surrealistas que a seu modo foram sacudindo arte e costumes enquanto viajavam entre Lisboa e Paris, e Paris e Lisboa; e com tudo isso, a permanente alegria da côr: nos corpos, nas paisagens de horizonte mais largo ou mais estreito, nas flores, nas árvores, fazendo da côr um verdadeiro elemento de suporte expressivo e simbólico, um meio de nos transmitir a energia de alma que era a sua.
Falarei de misticismo?
Talvez, pois houve sempre e manifesta-se sobretudo nas Esculturas e nos Livros uma dimensão filosófica no seu pensar de vida e obra.
Veja-se a terceira imagem que escolhi, de S.Francisco de Assis, um gesso policromado, de c. 1937. Mas se falarmos de misticismo teremos também de remontar a Lutero, à sua livre discussão do lugar do Homem no Mundo e de Deus no Homem.
Teríamos de falar da Consciência de Si na Arte, e da consciência do Outro em Si - a relação que dá universalidade à obra que se produz.
A recente exposição, na Galeria PERVE de um Cadavre-Trop-Exquis que reuniu Cruzeiro Seixas (que foi um dos amigos de Semke e de sua mulher, a poeta Teresa Balté) com Isabel Meyrelles e Benjamin Marques, fez-me pensar em como estes exercícios de rara elegância e beleza do mais puro surrealismo teriam ao tempo, com Cesariny ainda, fascinado o pintor que da pátria alemã trazia, como trouxe, a energia das raízes plurais.
E voltando aos ismos do nosso Modernismo, aqui e ali e acolá - o que mais importava era o que cada um por si próprio era capaz de oferecer aos outros: fosse nas tertúlias de casa (e relembro Natália Correia) dos bares ou dos cafés, fosse nos bairros antigos ou nas ruas por onde se passeavam os plurais de Fernando Pessoa, os inimigos de estimação de Almada Negreiros, ou outros do mesmo modo.
E Semke, até 1995, no meio deles.Podemos dizer que trouxe à melancolia nacional o seu animismo expressionista, a sua alegria solar.
A nota biográfica do Museu do Azulejo, muito completa, revela um artista de largo e universal convívio, onde não falta um Picasso, por exemplo, uma Vieira da Silva ou um Arpad, entre tantos outros.
Se tivesse de escolher agora um quadro em que se espelhasse a memória da totalidade de alguém como Hein Semke escolheria A TERRA E O CÉU, tinta da china sobre papel, de Cruzeiro Seixas.
Neste quadro, da cabeça coberta de penas de um guerreiro sai um cavalo que será voador, como o pensamento que voa, atravessando os céus. Esta cabeça, de rosto parcialmente coberto por fina mão, feminina no gesto, será a terra, ou o seu emblema; mas o cavalo é o céu, o espaço das Ideias do Belo, do Bom, do Verdadeiro, as energias da alma que Platão descreve no seu Fédon.
Evocar Hein Semke, a propósito dos fauvistas, dos expressionistas, e aproximando-o aqui dos ismos surrealistas, é evocar as energias da alma.
Deixo aos leitores a sugestão do catálogo da sua escultura, organizado pelo Museu de José Malhôa.