Friday, January 17, 2020

Mariana Viana, na Colóquio Letras




Mariana Viana: as esculturas do Tempo.
Numa primeira abordagem nota-se a intensidade, expressiva, mas não figurativa, embora paire sobre alguns momentos, em pequenos pontos pequenos (formas que vão nascer, ou já nasceram e se foram reduzindo?) e algumas  convulsões que Boehme definiria como buracos negros, sendo o vermelho a marca da combustão espacial que tudo absorve e tudo depois, em milhões de formas ora explodindo ora se ordenando a partir desse caos inicial ( o seu célebre Ungrund) devolverá à materialização de uma vida outra? São ondas gravitacionais ou serão, de marca feminina, os novelos que foram tecidos no tear imenso de uma vida?
A meditação de um cosmos original está ali sempre presente, como na poesia de André Verdet, o poeta que exprimiu , em L’Obscur et l’Ouvert, verso a verso, como se formou a ordem de um cosmos, para nós obscuro, mas para a criação eterna, ainda e sempre aberto. Infinito é esse universo sobre o qual poetas e artistas se debruçam, dando forma ao informe (que é ainda a ideia, o sentimento indefinido do que existe e ali, no informe, está contido.) Um alquimista diria que é preciso, com cuidado e paciência, extrair a Pedra, preciosa, do mineral que a esconde na gruta pimitiva. Recolhimento, meditação solitária, conduzem a mão do artista.
Mariana Viana, já nas pinturas que ilustram o livro que chamo de ouro, de Jorge de Sena, revelava essa capacidade de pintar o intenso, ora mais figurativo ou mais abstracto. Tem pincelada forte sobre um imaginário que pode às vezes ser mais leve. Mas só de pasagem. A leveza não é condição da criação artística, embora possa dar um momento agradável de sossego, a quem produz ou quem vê.
A condição de um criador – e o mesmo se alarga a outras formas de arte, não é sosegar, é inquietar, e o que não inquieta, não desafia o entendimento, o pensamento, não é arte e não chega a ser nada.
O desafio de Mariana, neste conjunto, nascido, como ela diz de um só impulso, leva-me à reflexão de Heidegger no seu último Seminário, sobre O QUE É PENSAR.
Todo o pensamento surge de um primeiro impulso, que terá ou não continuação. Mas o pensamento, como Heidegger o entende, impõe continuação. Socorre-se de um poeta, que o inspirou sempre, Hoelderlin, nos seus hinos. Eis como ele inicia a primeira abordagem ao tema dos seminários:
Da poesia à filosofia vai um salto, vai um passo, aquele que Heidegger define como o impulso que motiva a busca do que é pensar. Começa a primeira aula com uma bela citação de Hoelderlin, do poema Mnemosyne, na segunda versão. O poeta escreveu uma terceira versão, bem diferente, que não serviria o propósito do filósofo.
Eis os versos escolhidos para este início do filosofar sobre o pensamento:
Ein Zeichen sind wir, deutungslos,
Schmerzlos sind wir und haben fast
Die Sprache in der Fremde verloren.
Na Segunda Aula, o filósofo desenvolve a relação entre pensamento e poesia, reconhecendo que está ainda longe de saber o que é Pensar e o que apela, ou atrai o Pensamento. 
Somos um sinal, sem sentido,
Não sentimos a dôr e quase
Perdemos a língua na distância.

Esta primeira estrofe termina com uma conclusão, que embora logo questionada na estrofe seguinte merece que a ponderemos:
...Lang ist
 die Zeit, es ereignet sich aber
Das Wahre.
É longo
O tempo, mas alcança-se
A verdade.
Permitindo-me uma ligeira alteração por causa do ritmo,  que se tornaria menos duro, eu poderia traduzir: É longo / O tempo, mas consegue-se alcançar / A verdade.
Relendo o primeiro verso, sublinhemos o que somos: um sinal, sem sentido e sem sensibilidade (indolor) e que perdeu a língua na distância: perdeu a capacidade de se exprimir e de comunicar ( a língua perdida na distância).
Esta será então a primeira de todas as necessidades para começar a aprender o que é pensar. Reconhecer o que somos, o que perdemos, o que temos de recuperar.
A indicação vem nos versos finais da estrofe: o caminho do pensamento será longo, mas alcança-se a Verdade.
Hoelderlin ajuda Heidegger na sua exposição, ligando, no seu dizer, a busca do que se é, (SEIN, SER ) o tempo (DIE ZEIT, o TEMPO ) e a verdade DAS WAHRE).
Aprender a pensar é chegar à verdade (do Ser, que tudo envolve e abrange).  E quanto ao título do hino, Mnemosyne, MEMÓRIA, também haverá algo a dizer.
Recuando até aos gregos e seus mitos, a Memória é uma titã, filha do Céu e da Terra. Une os opostos. Como mãe das Musas, segundo Heidegger, a memória é o pensar que retroactivamente reúne e faz convergir aquilo que nos atrai como sendo e tendo sido no ser.
É a fonte da poesia. Por isso vemos a poesia como água que por vezes flui em direcção à nascente, em direcção ao pensamento, um pensar que é recordação. É o que leva Hoelderlin a dizer que somos um sinal que não é lido...pois tem de ser pensado retroactivamente, buscando a origem num tempo anterior.
Heidegger escolhe Sócrates como o Mestre perfeito: não deixou nada escrito, e se o tivesse feito, teria ficado prisioneiro do escrito e não do pensado. Uma prisão de que veio a sofrer, posteriormente, a filosofia ocidental no seu todo. Daí a escolha de Heidegger:  a palavra poética, um verso de sentido amplo, aberto, como em toda a poesia mo pensar no que é a Poesia?
E explica por que razão escolheu o hino de Hoelderlin, não por mera citação de conveniência, mas porque aquele verso repousa na sua própria verdade. E esta verdade tem por nome Beleza.
Cito Heidegger:
“ A Beleza é um dom da essência da Verdade, e aqui verdade significa a revelação do que permanece oculto” (Lição 2 , p.19).
“ O Belo não é o que agrada, mas o que pertence ao dom da verdade, que se manifesta quando aquilo que é eternamente não-aparente, e portanto invisível, atinge a sua mais radiosa aparente aparência. Somos obrigados a deixar a palavra poética permanecer na sua verdade, na beleza.
Na verdade, pensar é responder a um desafio, neste caso o verso do poeta citado, que interpela o pensamento, no sentido de entender o que foi dito.
O dizer resulta também de um pensamento aprofundado.

Mas vamos então transpôr para outra esfera, neste caso o da arte da pintura, este mesmo modelo, que nos ajudará a procurar o que se esconde, mais do que o que se revela, nesta formas esculpidas do tempo, da arte de Mariana. A que sinais foi por aqui dar, ou encontrar Sentido?
Para os antigos alquimistas, a obra da mulher está bem representada numa gravura de Michael Maier, o Emblema III:
“Procura a mulher que lava a roupa;
e tu faz o mesmo que ela.
...A água lava a sujidade do corpo negro”.

Há outro lema destes filósofos herméticos que também se manteve no tempo: “É preciso ter as mãos pretas para comer o pão branco”. Como quem diz, é preciso trabalhar, para merecer o que se come.
 E naturalmente a metáfora do negro e do branco, a meditação dos opostos, que está sempre presente no caminho da espiritualidade.
A imagem da água, da purificação que o lavar significa, função do Feminino aconselhada igualmente ao homem, o Masculino, remete-nos para o imaginário simbólico do mito do Andrógino, de Platão. E um novo conceito nos surge, primordial, antigo, de que Freud e Jung muito se ocuparam: o das lições dos sonhos, e do inconsciente, seja individual ou colectivo.
Não será por acaso, mas por impulso do seu inconsciente, a sua pulsão mais funda, libertadora enquanto materializa, retirando-a do Tempo, cada uma das suas esculturas pintadas, que surgem a dada altura, e repetidas vezes trabalhadas, os novelos de matéria tecida, esticada, penteada, e quem sabe até ( lavada...antes da transformação que sofrem, em novelos, em nós que atam (e tudo o que atamos mais longe se desata). Difícil e muito paciente o trabalho da mulher no tear da sua alma, o que a leva, pelo trabalho, ao sucesso do Branco, o alimento supremo. No tear se organizam os fios, se desfaz o caos, se atinge uma Ordem que ultrapassa inclusivé o impulso inicial (iniciático) do artista.
Arte é iniciação. E é também muita repetição. Volto aos alquimistas, filósofos da alma, e seus lemas: “...Lê, Lê, Lê, Relê, trabalha e descobres “ (Mutus Liber). Meditação e trabalho, para chegar à Obra.
 Escolhendo em especial o conjunto dos fios, tecidos, atados e desatados, entrelaçados, percebemos que ali estão os nós possíveis da vida, a vida de um criador. A minúcia é enorme, cuidada, e depois dada a ver. Ver não é adivinhar, mas é algo da entrega da contemplação que interroga, não aceita sem mais. Oferece uma pergunta, como no belo poema de Tolentino de Mendonça, e não uma resposta, nenhuma segurança, talvez só um pedido, uma oração:
... ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
a que distância deixaste
o coração?
(BALDIOS, “A presença mais pura”)

Mas já na primeira estrofe do poema, que tenho de citar, se inicia o grande tema da língua e da comunicação: “ a que distância da língua comum / deixaste o teu coração?” O poema segue com outra ideia central, também ela próxima de um Hoelderlin, “deixamos de saber dos outros / coisas tão elementares / o próprio nome “.
E aqui surge então o nó central, o nó que recolhe e abraça todos os nomes num só, o nó primordial que a vida irá desatando. Por cima a imagem da mulher vestida de sol  ( a lua negra sublimada), a caminhar sobre as árvores. Tanta reflexão aqui contida...
Wagner, que será sempre eterno, põe na boca de Gurnemanz, o iniciador do jovem Parsifal, a melhor definição de todas para este conjunto de Mariana Viana, também ela a caminho do seu reino:
Du siehst, mein Sohn,
Zum Raum wird hier die Zeit.
Vês, meu filho,
em espaço se transforma aqui o tempo
 (Acto I).
 Resumindo, e evocando Heidegger pela última vez, o tempo materializa-se no espaço, para adquirir existência, e no caso de uma obra, a consistência única que lhe confere a Verdade (o Sentido) e o Belo, o nome que se tinha perdido e se buscava.

(Lisboa, 2019)








-->

Monday, January 13, 2020

As Lágrimas de Deus

Choremos.
Choremos muito
choremos todos.
Choremos os mortos
e choremos os vivos
pois também a estes
se cortaram as raízes
as razões do seu destino

Saturday, January 11, 2020

MODULAÇÕES


Modulações
(para o Rodrigo Cardoso)

Uma onda suave
Que se enrola no mar
E se desfaz na areia

Um sopro feito de espuma

Na concha de Poseidon
Um corpo abandonado
De sereia...



Thursday, January 02, 2020

Eduardo Pitta, PERSONA, 2019

Comecei, numa nota breve, umas consideração no facebook sobre a difícil (para mim) arte do conto. Temos muitos e excelentes exemplos no oriente, no ocidente, na antiguidade, na modernidade.
A mim o que me seduz é a capacidade, o engenho, de condensar o muito de uma narrativa no pouco de uma expressão que sem perder profundidade e sentido ali nos é exposta, para dar a ler e pensar.
Definido pelos estudiosos como género literário autónomo, - entre a novela e o romance - e apesar de hoje a liberdade, mesmo libertária, que o Modernismo, o Surrealismo e o Experimentalismo tenham introduzido - a arte do conto para mim encerra algo que me falta ( e a outros como eu), o esforço de uma concisão que apesar de tudo é inspirada, que não foi procurada à força e por se desejar entrar nessa onda abominável, mas que impera entre os ignorantes: a redução de um vocabulário literário, ou mesmo coloquial, que notamos hoje em dia entre nós, cada vez mais, e não deve ser confundida com a subtil capacidade de dizer contidamente, de condensar o que podia mas não vai ser ampliado (isso seria tão mais fácil), qualidade que de resto até na prosa, na ficção aprecio igualmente. Dizer o dito e ficar por aí é forma de perfeição.
Ocorre-me isto por ter lido, do Eduardo Pitta, escritor cuja prosa aprecio desde que a descobri, pelo que tem de conhecimento justo e alargado da nossa língua, não é pela sua mão, realista, camiliana, ajustada aos seus temas sem floreados ditos de "encher" que a nossa língua, tão rica, se vai empobrecer.
É vasta a sua obra, e pouco teria a acrescentar enquanto comentário literário, ao que já foi apontado na marginália literária desta reedição da obra.
O que pretendo é aprofundar, se fôr capaz, a arte do conto, neste pequeno grande livro PERSONA.
O autor lhes chama "contos morais", mas o facto de formarem uma trilogia, aponta para uma evolução que foi concebida no sentido de haver aí algo de comum, e que ao leitor não deverá escapar. São cada um uma fase da formação ou do crescimento, físico, emocional, intelectual que se deu em diferentes espaços (o que pode ter a sua relevância: mais livres uns, menos, outros). Moçambique e África do Sul, nos anos 60, e o último, PESADELO ( título já é sinal), entre 1971 e 1973.
Aqui se revisita o passado. Mas não para fazer ou refazer memorialismo, antes muito simplesmente para o situar, o entender.
Volto (será da idade? será da experiência de vida? ) ao meu amado Hoelderlin: "somos um sinal, sem sentido (...) e quase perdemos a língua na distância". Estes são versos da segunda versão de Mnemosyne (há uma  bela tradução da poesia completa, de Paulo Quintela) a grande reflexão que Heidegger aproveita para pensar o pensamento e a memória, em O que é Pensar, o conjunto dos últimos seminários que deu em Heidelberg, depois de perdoado pela adesão ao nazismo.
Parece que me afasto do tema central da arte do conto, nesta obra de Eduardo Pitta, mas não. Desejo aproximar-me do sentido de que os contos são procura e manifestação e em especial dessa secreta e misteriosa língua que quase se perde na distância.  Esta é a língua de que Eduardo não se perde, simbólica, profundamente enraizada no seu inconsciente (ele é a distância, e a ele devemos estar atentos, para estar vivos). Afonso é o fio narrativo que passa de um para outro conto, mas do qual o autor não deseja mais do que isso. O autor distingue os momento de per si, cada qual com sua forma e sentido, e é do sentido e da língua na distância de que não pode perder-se, que na verdade se ocupa. Quando já no fim da obra, depois de tantos momentos e peripécias variadas, ficamos com uma espécie de grande tela de um tecido social, de que em Portugal continental pouco se saberia, ou dele pouco se falaria, e que o autor aqui nos deixa com todos os pormenores, dos mais ínfimos, incluindo até os menus das jantaradas ou das recepções mais formais, citando e isso até nos é agradável, leituras como os Cem Anos de Solidão, ou a cultura que impelia alguns outros, fora dali, a ir ver o eterno Ionesco - nada, mas nada escapava ao escrutínio do jovem Afonso, alter ego - Persona - do nosso autor. As descrições são detalhadas, o olhar é devorador, bem como certas experiências e situações de carácter sexual que em Portugal naquele tempo nunca a censura teria permitido, o 25 de Abril demoraria um pouco mais a chegar, até o linguajar da tropa, na tropa era como era, mas não surgiria sob a forma de prosa de escritor - ler entre nós Cardoso Pires já era quase milagre.
Eduardo vem de longe, é outro (boa escolha o título de Persona) escolhe os caminhos das verdades cruéis, não fica atrás dos franceses que leu, como o Marquês de Sade ou outros da escola inglesa, entre nós menos conhecidos. (O inglês aprendia-se mais tarde...). Mas porquê definir como conto algo que já o célebre Tom Jones, de Henry Fielding, no século XVIII tinha libertado de qualquer definição que fosse um empecilho? Ou Rabelais, ainda antes, ou a magnífica história de Apuleio, o Burro de Ouro? E a sua simbologia?
Precisamente porque nestas narrativas de Eduardo a precisão, a concisão, o cuidado com a língua é de tal ordem, que é nesse exercício que nos devemos prender e aprender, apesar de toda a narrativa que nos envolve também em mundos reais, de outrora e  menos conhecidos.
Se no romance ou na novela predomina o enredo, no conto predomina a língua. E não vou repetir Hoelderlin.