Rainer Maria Rilke (1875-
1926)
Das Marien-Leben
A Vida de Maria
O Nascimento de Maria
Ah, como deve ter sido
difícil, aos Anjos,
não irromper em cânticos,
como quem desata a chorar,
pois sabiam: era a noite em
que o menino teria a sua mãe,
ele, o Único, que em breve
nasceria.
Esvoaçando, em silêncio,
mostraram o caminho,
indicando a morada solitária
de Joaquim,
sentindo, em si mesmos e à
sua volta, o puro condensar
mas sem que nenhum pudesse ir
descendo até ele.
Pois o casal estava já numa
tal comoção que
veio uma vizinha e avisou mas
sem bem entender
e o velho, cauteloso, saiu,
perturbando o obscuro
mugido de uma vaca. Pois nunca tal coisa acontecera.
A Apresentação de Maria no Templo
Para entender como ela era
outrora
tens primeiro de imaginar um
espaço
em que se ergam colunas e os
degraus
se sintam sob os pés; em que
arcos
de ogiva perigosos se unam
sobre o espaço
que ainda em ti ficou, pois
foi feito
de tais matérias que não mais
poderás
retirá-las de ti, a menos que
te despedaces
igualmente. Se já atingiste o
ponto em que
tudo em ti se transformou em
pedra, muro,
escada, visão, abóbada, -
tenta afastar um pouco
a espessa cortina que tens
diante de ti:
aí estarão brilhando os
gloriosos objectos,
que te suspendem a
respiração, e paralisam os gestos.
Por todo o lado palácios e
mais palácios
terras que se estendem por
mais terras
e ressurgem mais longe em
tantas margens
que tu sentes vertigens só de
vê-las.
Uma nuvem de incenso turva o
ar que respiras;
mas sobre ti incidem os
raios, vindos de longe,
e se agora o fulgor que emana
das taças chamejantes
se projectar sobre as vestes
que de ti se aproximam:
como poderás resistir?
Mas ela veio e ergueu
os olhos para tudo
contemplar.
(Uma criança, uma menina
pequena entre mulheres).
Depois subiu, em silêncio e
cheia de compostura,
perante um fausto que já em
destroços se curvava,
tão grande era o louvor
ultrapassando o que ali
por mão de homem se tinha
construído
no seu coracão. Pelo prazer
de se entregar aos íntimos
sinais.
Os pais tinham pensado erguê-la
até ao assustador peito
coberto de jóias
que a receberia; mas ela foi
passando por todos
de mão em mão, pequena como
era,
entregue ao seu destino, mais
alto que as abóbadas
já pronto à sua espera e mais
pesado que o templo.
Anunciação a Maria
Não foi a aparição de um Anjo
(reconhece)
que a assustou. Nem de
outros, quando
um raio de sol ou de luar à
noite
os reflectem no quarto
desfilando,
se inquieta ela com a forma
que um Anjo
possa ter assumido; mal
suspeitando que
esta presença pudesse para o
Anjo ser incómoda.
(ah se soubessemos como ela
era pura. Certa vez,
avistando uma gazela a
repousar na floresta,
de tal modo a penetrou com o
seu olhar que
mesmo sem acasalamento nela
se gerou o unicórnio,
a criatura de luz, a pura
criatura - ).
Que ele entrasse, o Anjo, e
com um rosto de adolescente
se debruçasse e a fixasse de
tal modo que o olhar dela
e o seu se confundissem, como
se de repente lá fora
tudo se esvaziasse, e o que
era visto, procurado, levado
por milhões de homens nela se
concentrasse: só ela e ele.
Contemplação e contemplado,
olhar e prazer de ver,
em nenhum outro lugar a não
ser neste - : repara,
é assustador! E ambos se
assustaram.
Foi então que o Anjo cantou a
sua melodia.
Visitação de Maria
Ao princípio tudo lhe foi fácil,
embora nas subidas já
sentisse
o milagre operado no seu
corpo
e parasse para respirar no
alto
das colinas da Judeia. Mas
não era a terra,
era a sua plenitude que
enchia a paisagem.
Sabia, ao caminhar, que nada
ultrapassaria
a grandeza sentida naquele
momento.
Já se apressava para pousar a
mão
no outro corpo, de tempo mais
avançado.
E as mulheres foram ao
encontro uma da outra
cambaleando, acariciando as
vestes e o cabelo.
Cada qual, carregando o fruto
precioso,
encontrava na outra o seu
abrigo.
Ah, o Salvador era nela ainda
flôr
mas o Baptista, no seio da
comadre,
já desatara aos saltos de
alegria.
A Desconfiança de José
E o Anjo falou e esforçou-se
por explicar ao homem de
punhos cerrados:
então não vês em cada linha
do seu rosto
que ela é tão fresca como a
aurora de Deus?
Mas o outro fixava-o de
semblante sombrio
e apenas murmurava: o que a
transformou assim?
Então exclamou o Anjo:
carpinteiro, não percebes
ainda que esta é a obra do
Senhor Deus?
Só porque talhas as tábuas, com
orgulho,
queres obrigar a que fale
contigo aquele
que em segredo, dessa mesma
madeira,
faz crescer as folhas e
rebentar os botões?
Compreendeu. E ao erguer os
olhos
de verdade assustados para o
Anjo,
viu que ele tinha ido embora.
Tirou então da cabeça,
lentamente,
o espesso gorro. E entoou o
louvor.
Anúncio aos Pastores
Levantai-vos, homens! Homens
ali em torno da fogueira,
que conheceis os infindáveis
céus,
que sabeis ler as estrelas,
vinde ! Olhai, eu sou
uma nova estrela que se
ergue! Todo o meu ser arde
e irradia com uma tal
intensidade a plenitude tremenda
de uma luz que o firmamento
profundo não chega
para a conter. Deixai que o
meu fulgor penetre
a vossa existência: a
escuridão do olhar, a escuridão
dos corações, dos destinos
nocturnos,
que são os vossos. Pastores,
como estou só
entre vós todos. De repente
se me abre um espaço.
Não estáveis admirados?A
grande árvore de pão
lançava uma sombra. Sim, era
a minha sombra.
E vós, os sem temor, se
soubésseis como
agora brilha o futuro nos
vossos rostos
erguidos. Nesta luz forte
muita coisa
virá a acontecer. É a vós que
o confio,
pois sabeis guardar bem um
segredo; a vós,
crentes fiéis, aqui ao redor
tudo vos fala.
Falam o calor e a chuva, o
vôo dos pássaros,
o vento e o que sois, nenhuma
coisa
prevalece sobre a outra,
enchendo-se de orgulho
e arrogância. Não guardais as
coisas dentro do peito
para as poder torturar. Assim
como de um Anjo
escorre o seu prazer, assim
se concentra em vós
o que é Terreno. Mesmo que de
repente
um arbusto de espinhos se
inflamasse,
e que o Eterno através dele vos chamasse,
o Querubim, e se aproximasse,
estando vós em repouso junto
aos rebanhos,
nem assim o espanto vos
tocaria:
de joelhos e rosto colado ao
chão,
rezando, a isto chamaríeis
Terra.
Assim foi. Agora um Novo deve
ser,
Que alargará mais ainda a
órbita da terra.
Que nos importa um
espinheiro? Deus
compraz-se no seio de uma
Virgem.Eu sou
o brilho da sua intimidade,
que servirá de guia.
Nascimento de Cristo
Não fosse a tua simplicidade,
como poderia
acontecer o que agora ilumina
a noite?
Vê: o Deus que trovejava
sobre as nuvens
Faz-se benigno e vem ao mundo
em ti.
Imaginavas que ele fosse
maior?
O que é a grandeza? Através de
toda a matéria
que atravessa, segue o seu
destino.
Nem uma estrela tem igual
caminho.
Vês, estes reis são grandes,
mas rastejam diante de ti
os tesouros, que se julgavam
os maiores,
-e tu talvez te espantes com
este dom-
vê agora nas pregas do teu
vestido
como ele já ultrapasou tudo o
que existe.
Todo o âmbar, embarcado ao
longe,
cada jóia de ouro e o perfume
das especiarias,
que se espalham e perturbam
os sentidos:
foi tudo de pouca duração
que depois se lamentou.
Mas Ele (como verás) alegra
os corações.
Repouso
Na Fuga para o Egipto
Aqueles que exaustos e mal
podendo andar
Iam fugindo da matança das
crianças
eram cada vez mais numerosos
nesta sua peregrinação.
Bastava um tímido olhar para
trás
com o seu receio a abrandar
um pouco
e logo eram postas em perigo
cidades
inteiras que a sua mula
cinzenta atravessava.
Pois embora tão pequenos na
vastidão das terras,
um quase-nada, quando se
aproximavam dos templos
os deuses se quebravam, como
que traídos
e por completo perdiam o
sentido.
É concebível que ao longo do
caminho
tudo se consumisse com tal
irritação?
E até de si mesmos ficavam
com receio,
consolando apenas a criança,
que não tinha nome.
Mesmo assim, como era grande o cansaço
tiveram de parar por um
momento.Foi então...
que a árvore, sob a qual se
acolhiam,
se inclinou como que a
servi-los:
Inclinou-se. A mesma árvore,
da qual
se faziam as grinaldas que
ornavam
para a eternidade as frontes
dos faraós
falecidos, inclinou-se.
Sentia que novas coroas
iriam florescer. E eles ali
sentados, como num sonho.
Nas Bodas de Canaan
Como seria possível não ter
orgulho nele
que para ela embelezava as
coisas mais banais?
pois se até mesmo a noite
grandiosa parecera
exceder-se quando ele
apareceu?
E daquela vez, quando se tinha perdido,
não se transformou tudo em
incrível motivo de glória?
Os ouvidos dos mais Sábios
não foram trocados pela boca?
E a casa
não se renovou ao som da sua voz? Ah,
certamente que ela já por
mais de cem vezes
se impedira de lhe mostrar a
sua alegria radiosa.
Seguia atrás dele, com o seu
espanto.
Mas ali, naquelas bodas
festivas,
quando de repente o vinho
começou a faltar,
olhou para ele, pedindo-lhe
um gesto, sem
compreender que ele não a
atendesse.
E ele então acedeu. Só mais
tarde compreendeu ela
que o tinha empurrado para o
seu destino:
porque agora sim se
transformara em fazedor de milagres,
e todo o Sacrifício já estava
a ser imposto,
inexoravelmente. Sim, estava
escrito.
Mas naquele momento estaria
já decidido?
Ela: fora ela a precipitar a
hora,
na cegueira da sua vaidade.
À mesa, cheia de frutas e
legumes
festejou com os outros, sem
compreender
que a água das suas lágrimas
profundas
se tinha transformado em
sangue, com este vinho.
Antes da Paixão
Ah, se assim o desejasses,
não terias
de nascer num corpo de
mulher:
os Salvadores forjam-se nos
montes
onde o que é duro se extrai
da rocha dura.
Não sentes pena, ao ver assim
devastado
o teu vale amoroso? Repara na
minha fraqueza:
tenho apenas rios de lágrimas
e leite,
e tu estiveste sempre acima
de qualquer medida.
Com um tal fausto me foste
prometido
antes saísses logo de mim,
como animal selvagem...
Se afinal só precisas de
tigres que te despedacem
por que fui eu criada em
casa, entre mulheres
que me ensinaram a tecer-te
um pano tão puro
e tão macio, sem ter sequer um
ponto de costura
que à noite pudesse magoar –
tal foi a minha vida
inteira, e agora de repente
invertes a natureza.
Pietà
Agora é total a minha dôr, e
indizível
enche-me o peito por
completo.Fixo-te,
com a fixidez do interior da
pedra.
Dura como sou, sei apenas
isto:
cresceste –
... e cada vez mais foste
crescendo
até que em dôr ainda maior
ultrapassaste a medida
do meu coração.
Agora jazes, atravessado no
meu colo,
mas eu não posso dar-te à luz
outra vez.
Consolação de Maria
junto do Ressuscitado
O que outrora sentiram: não
foi
mais doce que qualquer
mistério
e ao mesmo tempo tão terreno?
Quando ele, um pouco pálido
ainda
do seu túmulo, aliviado se
aproximou,
ressuscitado plenamente.
Perante ela, em primeiro
lugar. Ei-los
ali, sem palavras, em plena
santificação.
Sim, estavam a curar-se, era
isso. Não
precisavam de se tocar um ao
outro.
Ele mal pousou, durante um
segundo apenas,
a sua mão eterna no ombro
feminino.
E começaram,
em silêncio como as árvores
na Primavera,
ao mesmo tempo e para sempre
esta Idade
da sua suprema união.
Da Morte de Maria
I
O mesmo Anjo enorme, que
outrora
lhe tinha feito o anúncio do
parto,
estava ali, aguardando que
ela desse por ele
e disse: chegou agora o
momento da tua Aparição.
E ela assustou-se, como
outrora, revelando-se
de novo como Virgem que
plenamente aceitava
servir. Ele irradiava, numa
proximidade sem fim,
e diante dela desapareceu
chamando os Apóstolos,
que estavam longe, para que
se juntassem na casa
da colina, a casa da Última
Ceia.Vieram angustiados
e entraram receosos: ali
estava, deitada
em estreita cama, aquela que
misteriosamente
tinha sido a eleita e agora
declinava, num corpo
virginal e intocado, ouvindo
os Anjos cantar.
Mas quando os viu, fixando-a
por trás das velas,
aguardando, interrompeu o
êxtase em que as vozes
a tinham mergulhado e
ofereceu, num gesto amigo,
os dois vestidos que ainda
possuía, erguendo o rosto
ora para um, ora para
outro...
( Oh fonte de infinitos rios
de lágrimas!).
Mas cada vez mais cedia à sua
fraqueza,
fazendo descer até Jerusalém
os céus que,
de tão próximos, à alma que
partia exigiriam
apenas um ligeiro esforço, e
já aquele
que dela tudo sabia a levava
consigo
recebendo-a na sua divina
natureza.
II
Quem pensaria que até à sua chegada
o céu imenso estaria
incompleto?
O Ressuscitado tinha ocupado
o seu lugar,
mas a seu lado, durante vinte
e quatro anos,
um trono tinha ficado vazio.
E já estavam
a acostumar-se a essa falha
pura, que parecia
fechar-se com a jubilosa glória do seu filho.
Assim que também ela, ao
entrar no céu,
não se dirigiu a ele, por
muito que o desejasse.
A seu lado não havia lugar,
só Ele permanecia ali
brilhando com um tal fulgor
que a magoava.
Mas no momento em que esta
criatura comovente
se ia reunir a todos os
outros eleitos, e discreta
de luz em luz, buscava o seu
lugar, ergueu-se
do seu ser, nas suas costas,
um tal fulgôr que,
o Anjo que iluminava
exclamou, quase cegando:
quem é ela? Foi grande o
espanto.E então todos viram
como Deus-Pai, lá em cima,
retinha o Senhor,
de modo a que, envolto num
crepúsculo suave,
o lugar vazio fosse visto,
como ligeiro sofrimento,
réstea de solidão, como algo
que ele ainda tivesse
transportado, resto de tempo
terrestre, de cicatriz
secando...viraram-se a olhar
para ela, que fixara ao longe
o seu olhar, inquieta,
inclinada para a frente, como se sentisse:
eu sou a sua
dôr maior, perdendo os sentidos, de repente.
Mas os Anjos pegaram nela
e levaram-na cantando,
abençoados,
e ergueram-na até ao seu mais
alto grau.
III
Mas antes do Apóstolo Tomás,
que veio
tarde demais, chegou o Anjo
veloz,
já se preparara com
antecedência,
e que ordenou, junto ao ao
túmulo:
Afasta a pedra para o lado.
Queres saber
onde ela está, a que te
comoveu o coracão,
então olha: como um ramo de
lavanda ali foi
depositada por instantes,
para que na terra ficasse
depois entranhado
o seu perfume, como um tecido
precioso.
Toda a morte ( pressentes
isso) todo o sofrimento
é envolvido pelo seu perfume.
Vê a mortalha: que produto haveria
que a branqueasse sem a fazer
encolher?
Esta luz que emana do cadáver
puríssimo
foi o que a tornou mais clara
do que a luz do sol.
Não te espanta que ela a
tenha deixado com tamanha doçura?Tudo na mesma, como se ainda aqui estivesse.
Mas lá no alto os céus estremeceram:
Homem, ajoelha-te, contempla
e canta um louvor comigo!
Trad. Yvette K.Centeno
(para os Amantes de Rilke...)