Sunday, March 31, 2019

Ainda e sempre, Lobo Antunes...




Longo texto de António Lobo Antunes, no Público, sobre a família. Descendem de gente pobre de outrora, uma ruralidade que depressa se transformou em nobreza, e alta e distinguida sociedade, com distinções, títulos, pergaminhos...talvez devesse ter começado logo por aí, pois quem o conhece sabe que ele tem clara consciência do que é, e de quem é, bem nascido, bem criado, bem sucedido na profissão, médico, e na sua arte da escrita, a que se dedicou depressa a tempo inteiro. Aludo a uma sua entrevista, em que para falar do livro, fala de si.
Sabemos que está ou esteve doente, terá vencido três cancros, como diz na entrevista à revista Sábado, mas antes dele morreu o seu irmão João, médico também, e ele sente a sua falta, pois eram mais do que irmãos, amigos.
O texto que leio hoje é como um longo apelo a ser amado pelos que partiram, e ali evoca: a avó querida, era assim que lhe chamavam, na casa de Benfica, muitas vezes referida, a família e talvez acima dos outros ainda o pai. Seria ele o preferido do pai? No meio de muitos irmãos? Deseja que o pai espere por ele, ali onde se encontre, algures numa esfera ou numa poeira do céu? Ou talvez o irmão, João?
Texto de apelo, de saudade de um amor que terá sido partilhado? Ele foi amado, mas terá amado de volta?E é dum imenso amor que agora tem saudade? Um amor a que deseja entregar-se, agora, sendo o seu corpo doente uma última dádiva?
O que somos afinal todos nós, nessa hora da partida, que tem de ser bem aceite, com dignidade discreta, mesmo quando a vida foi cheia de alguns tropeções indiscretos?
Morrer, mas com saudade já de ter morrido. Melancolia outonal.
Não é Meia Noite quem quer.
Até na morte de cada um haverá diferenças.
Lobo Antunes não diz o que sente.
Escreve sobre o que diz que sente...
 Encontro finalmente a sua citação de René Char, em La flute et le billot, de 1926:
“Muette est la pluie fine / Dans un sentier étroit / J’écris ma confidence / N’est pas minuit qui veut / L’écho est mon voisin / La brume est ma suivante”.
(Muda é a chuva fina / Num estreito caminho / Escrevo a minha confidência / Não é Meia-Noite quem quer / O eco é meu vizinho / A bruma a minha serva).
 Enquanto não leio aqui esse seu romance – mas a promessa está feita, e aqui virei “escrever a minha confidência”, não falto ao prometido, interrogo o olhar melancólico do autor sobre a sua escolha da imagem, que é poderosa, da meia-noite batendo as horas apenas para alguns, as horas da vida vivida, ou recusada, da escrita nocturna, em confidência, atravessando caminhos estreitos entre montanhas feitas de bruma mas onde permanece uma voz, um eco de uma voz que interpela o próprio dizer difícil.
Porque tudo é difícil, quando se julga que já tudo foi dito, e o impulso leva a que se diga mais, e muito mais ainda. Mas como, se na garganta apertada já escorrem tantas lágrimas, dos que partiram e dos que ficaram. A escrita é então um lamento que permanece, que se fecha em si mesmo, até que a palavra escorre, muda, no meio da “chuva fina”.
René Char adere ao movimento surrealista e participa em inúmeras actividades, que são apontadas na cronologia da edição definitiva da sua obra pela Pléiade, onde Lobo Antunes também está já editado, depois de Fernando Pessoa.
Com Breton, Éluard, Max Ernst, Aragon, outros (também André Verdet, pintor poeta debruçado nas estrelas e no pulsar do cosmos) René Char lê os grandes: “lecture des présocratiques, Rimbaud, Lautréamont, et des grands alchimistes” ( em 1930).
 Em 1959 é traduzido  para alemão, por Celan, com prefácio de Albert Camus. E a sua obra continua, com marcas que por vezes a tornam mais difícil de entender, pois temos que descobrir o movimento que a levou até lá, esse espaço de poesia que se pulveriza pelo caminho, formando no fim o Grande, o Eterno poema de que se fala sempre (Le Poème pulvérisé):
“La poésie est de toutes les eaux claires celle qui s’attarde le moins aux reflets de ses ponts.
Poésie, la vie future à l’intérieur de l’homme requalifié” (XXVI).
Ou ainda:
“Une rose pour qu’il pleuve. Au terme d’innombrables annés, c’est ton souhait” (XXVII).
Rosa alquímica, na chuva desejada. Tantas rosas mais tarde, em Char, como em Celan, tanto corpo lavado nas trincheiras da guerra, nos campos do holocausto, até que o poeta escreve L’ÂGE DE ROSEAU, A Idade de Bambú, e a noite surge, treva de um mundo que ele interpela:
Monde las de mes mystères, dans la chambre d’un visage, ma nuit est-
-elle prévue?
Cette terre pour navire, dominée par le cancer, démembrée par la torture, cette offense va céder.
Monde enfant des genoux d’homme, chapelet de cicatrices, avec tant d’êtres probables, je n’ai pas été capable de faire ce monde impossible. Que puis-je réclamer ! “

Falemos então do romance de Lobo Antunes, Não é Meia-Noite Quem Quer.
 É de 2012, podia, já que se tinha inspirado num verso de René Char, ser talvez mais cuidadoso com a narrativa fragmentada, exclamativa, interrompida por atravessamentos entre o modo surrealista (tentado)  e o realista (em excesso, demasiado descritivo nos espaços, por vezes )... com sonhos que vai buscar ou aos que teve, ou aos que anotou, dos seus pacientes. Recordo que o autor é médico psiquiatra, com uma longa carreira, mas sobretudo com grande preparação. Tem olhar meticuloso, como se impõe, ouvido atento às sonoridades. Tanto do que se diz, se reflecte no som, no tom, e mesmo nas formas de respiração e de silêncio. Ritmos, enfim. É melindroso lidar com sonhos, nossos ou alheios. Em cada sonho um pulsar que lhe é próprio.
Se é só para aumentar uma densidade de escrita que não torna a leitura nem mais fácil (mas não tem de ser fácil, é verdade) nem mais atractiva (isso teria de ser, por causa de quem lhe comprou o livro, e ainda quem para a edição o reviu, lhe fez um editing tão cuidadoso que a indicação do desejo do autor é um ne varietur...tal como para todos os outros da edição de Obra Completa), se foi só para isso é pena, pelo que se espera de um autor com Obra já tão vasta. Imagino como seria difícil,em inglês, ou mesmo em alemão, a língua do rigor e da profundidade, seguir esta Meia Noite em qualquer dos seus parágrafos, repletos de frases soltas, chamamentos sem consequência, repetição de letreiros de algum espaço de infância... alusões a irmãos (perdidos ou achados, mas sem o cuidado de lhes devolver uma genuína existência substanciada), começando, de modo quase provocatório, com uma primeira voz, a da Menina.
Menina. Evoca talvez Bernardim Ribeiro, a sua Menina e Moça? Num antiga entrevista, a propósito do que um livro é ou não é, comenta para o entrevistador: gosto muito de ler Dom Francisco Manuel de Melo, é ele que diz que um livro há-de ser do que vai escrito nele. E assim é, mas foi Bernardim Ribeiro quem escreveu.
Logo abaixo então um  parágrafo que deveria de facto introduzir a narrativa. Temos curiosidade, o que se vai seguir? Quem é ou o que é esta Menina com que se abre a leitura?
Uma menina montada num quadro de bicicleta que a magoa, adivinha-se que é de rapaz, mas o que deseja o autor dar a entender, com a repetição de que magoa? Insinuação sexual? (Ah Freud, que mal ainda fazes, por vezes! ) e para onde foram eles, com o autor, pedalando, pela vida fora?
A  propositadamente acelerada prosa, (marca de estilo? mas pelo esforço que exige o leitor sofre com isso, o seu leitor normal ) tampouco veio contribuir para que os fiéis seguidores, ou estudiosos, desta Meia Noite que ele quis ser, pudessem encontrar nela, algures, ainda que semi-oculto, um ponto fulcral, um centro luminoso, na sua imensa criação...um livro por ano, fielmente, sem parar...até este que nos é lançado agora, por via de um René Char, esse genial criador, desafiante, a que nem a perseguição nazi veio calar. A sua voz era ampla, por isso o amamos tanto.
Podemos, de um poema ou um verso, fazer um longo romance? De extraviado pensamento? Podemos, mas não sei se será este o caso. Outros dirão. Aqui o belo, o inspirado e aberto pensamento que nos faz voar, ficou-se em parte pelo título. Eu pelo menos queria mais. Quem sabe se é exagero meu? Queria mais...
A escrita de torrente, de surrealismo iniciático (quase) e sempre interrompida não atrai como se espera, para um melhor desejo de leitura. Não nos prende logo de início ( e todos os inícios são tão importantes...) pelo esforço a que obriga, sem resultado que intrigue, para continuação. E quanto a inovar, numa última página de brincadeira com uma frase roubada a um jogo de infância, já atrás repetida...”a tia atou”, fecha o livro, na intenção do autor, mas se lá não estivesse, como seria a reacção do leitor ?  Sentiria a sua falta?  Não há ironia bastante nesta obra, e é pena, pois os grandes abordam com ironia qualquer assunto, especialmente os mais sérios (penso em Boris Vian, L Écume des Jours, enquanto a sua mulher na vida vai morrendo de cancro...) Os grandes conhecem-se a si mesmos e aos outros, distanciam-se, guardam de reserva a enorme gargalhada de Deus sobre a sua criação, a pobre espécie humana, mesmo na figuração de um narrador (não digo escritor, não confundo as espécies), ou de uma narradora, apenas semi-biografada. Mas já lá vou, o assunto apesar de tudo é mais complexo. Porque nele o que sinto, e peço desculpa de antemão por esta opinião tão subjectiva, é que se tratou aqui de um permanente exercício (não desafio, mas exercício) de interrupção que interrogava, mas a que não queria, ainda que pudesse, responder. O autor pode dizer-me não tenho que responder, leiam, outros responderão por mim, se quiserem. Tem razão o post-modernismo tudo permite. Mas não é post moderno este seu romance, feito de tanta evocação, associação livre, por onde as palavras correm.
Na penúltima página lemos um sonho em que estão presentes pai, mãe, manos, ele, ela, o que se sonhou – ou de todos eles por ali, a ser sonhados. Pois como Lobo Antunes diz, a ficção não é o real é um jogo de espelhos.
Não somos todos nós o sonho( ou pesadelo) de algum alguém que nos sonha e nos deixa em suspenso, entregues a um destino fatal? Porque esse é o nosso destino, ser fatal, por ser mortal.
O fim na última página, fazendo o cap. 10, com a tia que atou, poderia ter servido para devolver à imaginação a possibilidade de atar reunindo por fim as vozes soltas. Contudo pouco importa, pois mais preciso teria sido desatar, abrir, em vez de fechar, soltar a torrente oculta da voz de uma Menina que finalmente iria surpreender, irromper, como em Joyce, no Monólogo de Molly Bloom, gritando o todo que lhe ia na alma, e mais ainda no corpo, até aí submerso num fundo de treva negra, o da voz  silenciada. Até pelo facto de ser feminina a voz da narradora, ser mulher, mas uma mulher de voz enfraquecendo.
Não é fácil ser poeta, e a prova está à vista: poetar na prosa pode tornar-se diminuição de algum prazer de leitura). Se nem todos são René Char, tampouco são Henri Michaux, aquele que faz remuer la nuit...(sugiro que se leia Darkness Moves, grande antologia de poemas de 1927-1984, em escolha e tradução magnífica de David Ball).
Esperava-se talvez que eu fizesse um resumo, mais do que comentário à opção da escrita, ou da narrativa, oscilando como barcaça no mar. Mas não faço resumos, deixo o que me ocorre, também a mim, em certos momentos da leitura. Leio para pensar.
Mas aqui (ah, a maldita cultura, sempre a maldita cultura) como não me lembrar da obra-prima, fundadora do Modernismo, que foi no século XX, Virginia Woolf, com WAVES, de 1931? Aqui sim nos embalam, num ondular de permanente inovação, as  6 Vozes dos que falam e nós seguimos, também por vezes com dificuldade. Ou não lembrar um ORLANDO, de 1928, desdobrando-se andrógino, de forma genial. Um clássico, de sempre.
Voltando ao nosso Meia–Noite que reconheço, ao tornar-se misterioso,  que merece mais atenção: como sempre são importantes, num romance, o princípio e o fim. Ocupei-me de Proust, num dos meus livros, a propósito de como ele inicia a sua longa busca do Tempo Perdido. Longtemps je me suis couché de bonheur. Durante muito tempo fui cedo para a cama. E procurei variantes que pudessem ser melhores para a tradução.
Aqui neste caso, de Lobo Antunes, é a Menina que me faz parar:
Menina.
E ainda  a Meia-Noite, com um jogo de sombras implícito, ou explícito, conforme. Lobo Antunes não se importa com o seguimento lógico dos acontecimentos, das referências, das personagens com que nos vai confrontando. Ou com o rasgão que abre nalguma paisagem do seu antigamente.
Das imagens saliento o mar ( Quand Freud voit la mer...), a noite em que o mar interpelava a narradora, a Menina, e aguardo, com a continuação da leitura, a menina a ser levada por alguém (um irmão) de bicicleta, e logo de seguida o pai, a mãe, uma avó e o anúncio de que haveria um casamento, o da narradora (Menina).
Volto a esta Menina, e ocorre-me, do LIVRO VERMELHO de Jung,o diálogo com a sua Anima, a Sombra, e de como ela adquire corpo, forma, voz. Interpela-o, desafia-o, obriga-o a olhar para o que fora a sua vida, a relação com o sucesso profissional, a relação com o corpo e alma dos outros, seus colaboradores, amigos, pacientes. Há um tom de censura, e Jung, humilde, reconhece a sua imperfeição, como ser humano que é, sujeito aos condicionamentos da vida. Dá ao sonho o lugar que é devido. Deixa que o inconsciente fale, através destas interpelações. Aqui se reconhece o Feminino nele, e o que me faz falta é que não se reconheça em Lobo Antunes o Feminino nele, apesar da narradora que escolhe para este seu problemático romance.
O que significa que é forte nele a consciência de si, como autor, como homem, e que é racionalizada toda a expressão que se fragmenta como se de alguma esfera onírica nascesse, sem que no entanto seja o caso. Ou não pareça que é.
Neste romance tudo é exercício, mais do que voluntário, voluntarista, nada deixado ao acaso do que poderia ser uma entrega à verdadeira noite, à verdadeira Sombra, ao mergulho no mar de um inconsciente que afunda.
Dito isto: ler é bom, ler faz bem, desafia, mesmo quando contraria, pois só quem nos contraria nos empurra para um pouco mais longe.
 Lobo Antunes fala e escreve como se fosse o centro do mundo e ninguém é, na minha opinião, o centro do mundo. Julgar-se isso é aberrante? Meu defeito.
Como lembra Nicolau de Cusa, só Deus é o ponto que está em toda a circunferência sendo em simultâneo o seu centro. Lobo Antunes terá lido Nicolau de Cusa ? Leu de certeza, porque é culto.





Wednesday, March 06, 2019

André Verdet, L'OBSCUR ET L'OUVERT

André Verdet (1913-2004)



Pego neste seu livro, que tem uma dedicatória muito especial, e vem-me à memória como foi importante, desde os anos 40, o seu percurso, como poeta, pintor, escultor e ceramista.
Resistente, durante a guerra que ia engolindo a França e a Europa, numa utopia de horror, recebeu a distinção de OFICIAL DA LEGIÃO DE HONRA, entre outras, como a Medalha da Resistência e da Deportação.
É pela poesia das estrelas e do universo que nos encontramos, embora as suas primeiras edições, em 1945 e 1947, com Jaques Prévert se devam à minha tia Guenia Richez, fundadora das Éditions du Pré aux Clercs. Conheci-o primeiro em casa dela, junto com Pierrot Prévert, nos anos sessenta. À sua mesa se reuniam poetas, pintores, criadores de todo o género. Este poeta, que admiro, foi mais um deles, e teve como mentores Prévert (que também conheci) e Cocteau cuja obra marca a vanguarda europeia de modo definitivo.
 Na sua biografia encontramos o episódio da resistência (no grupo"Combate", e a seguir no grupo"Acção Imediata") que leva à prisão pela Gestapo, em 1944 e à deportação, junto com Robert Desnos, para Auschwitz. Passado um tempo é transferido para Buchenwald. Num romance autobiográfico escrito na terceira pessoa, La nuit n'est pas la nuit , A noite não é a noite, dá testemunho do horror e da esperança que é preciso manter para lutar contra ele. Depois da libertação divorcia-se de Camille Parèze, que tinha desposado pouco antes de ser preso.
E aqui entra de novo uma evocação de família: Camille, pintora, foi amiga da minha mãe e da minha tia, e mãe de um grande bailarino, Patrick Belda, estrela da companhia de Maurice Béjart e meu grande amigo também. Morreu cedo, num desastre de automóvel, quando de madrugada se dirigia para Bruxelas, onde Béjart tinha sediado a companhia. Foi em 1965, e a mãe nunca recuperou do seu desgosto.
Em 1978 este poeta que ama todas as artes, funda um grupo de free Jazz, Betelgeuse, com o compositor Gilbert Trem, o dizeur Frédéric Altmann (que é também fotógrafo e crítico de arte) : diversão e liberdade total, dando concertos um pouco por toda a região de Nice e da Côte d'Azur. Terminam a carreira em Paris, com um concerto no Palais de la Découverte, em 1985.
A poesia de André Verdet, na sua vertente menos politizada, consagrou-se às estrelas, que já na infância tinham sido suas amigas e o foram novamente, consolando-o no céu nocturno de Buchenwald, num conjunto de publicações: 
Le ciel et son fantôme ( O céu e o seu fantasma), L'obscur et l'ouvert (O obscuro e o aberto, de que me irei ocupar), Détours (Desvios), Seul l'espace s'éternise (Só o espaço se eterniza).
É talvez em Edgar Morin que podemos encontrar a melhor abordagem da sua poesia:
" É a primeira vez que um poeta conhece e reconhece este novo universo; nomeia-o com termos forjados pelas ciências físicas, a saber palavras como partícula, átomo, molécula, gravitação, buraco negro. Mas ao usar estas palavras transforma-as em mitos, e no mesmo impulso converte os mitos mais arcaicos em astros, átomos, moléculas, partículas...mitifica a ciência e "cientifica" os mitos..estabelece um intercâmbio entre a rêverie poética e a descoberta científica, entre o imaginário antropológico e as coisas físicas. Uma viagem entre dois pensamentos fundamentais que funcionam em conjunto no nosso pensamento: o empírico-racional, das ciências, e o simbólico-mítico, que encontrou o seu refúgio na poesia (Edgar Morin, Verdeto-cosmologie, ed. Galilée, p.193).
Para além da poesia, Verdet trouxe ainda às Artes Plásticas uma grande parte da sua paixão. Conviveu, no seu tempo ora de Paris ora de Saint-Paul de Vence, ou Nice, com grandes criadores que o entusiasmavam a lançar-se na pintura, na escultura ou na cerâmica (como Picasso fez, em Vallauris ). Era amigo de Fernand Léger, de Braque, de Picasso, de Chagall, de Giacometti, a quem dedicou um poema. Nos anos 60 inventa uma técnica com uso de resinas de polyester, que dará o nome de Vitrificações aos quadros então produzidos, gouaches, pastéis, aguarelas ou óleos. Uma forma, dizia, que ajudava a reflectir a luz, melhor captada nesse processo. Os materiais também eram inovadores: fibras, fios, folhas, tecidos de  plástico - dando aos materiais da banalidade quotidiana uma dignidade estética que nem sempre os seus amigos procuravam, preferindo antes a aventura do objecto-pintura em si mesmo. 
Mais surpreendentes serão as suas COSMOGONIAS, quadros de grande formato, em acrílico, com versos de poemas inscritos pelo meio, que já antecipam o imaginário que vamos descobrir em L'OBSCUR ET L'OUVERT, a obra em que se exprime de modo algo hermético um cosmos nascente, uma terra oscilante procurando harmonia e equilíbrio que o homem não lhe dará.
A estes quadro Verdet chama os seus Quadros-teoremas. Para o crítico Pierre Restany esta poesia visual vai ao encontro da intuição sensível e da pesquisa científica "dando às equações da astrofísica, ou às formulações da energia, a carne e o sopro dos nossos sentidos, o ritmo alternado das nossas alegrias e das nossas dúvidas, a dialética fundamental da esperança" (Pierre Restany "André Verdet, peintre-proférateur"in Pierres de Vie, p.339 ).
A dimensão cósmica da poesia de Verdet é sublinhada por um astrofísico, Jean-Claude Pecker, que elogia a sua coerência e pertinência, escrevendo: " Nada no céu de Verdet que possa ser contestado por físicos ou matemáticos...Enriquece as nossas cosmogonias, ilumina os caminhos do céu, e o astrónomo retoma o seu caminho com um olhar renovado pelo olhar azul de André Verdet fixando o céu sombrio da Provence..." (Pecker, "Approche du Ciel et son fantôme", in Pierres de Vie, p.183 ).
Termino com uma citação, da escolha de Pecker:

Nous sommes sur le pont
Figurants d'une énigme
Oublieux du péril et faisant
Parfois des gestes dangereux
Nous regardons les étoiles
Elles nous rassurent
Et nous repartons
Tranquilles
Entre les deux parenthèses
D'un Cataclysme

Estamos na ponte
Figurantes dum enigma
Esquecidos do perigo e fazendo
Por vezes gestos perigosos
Olhamos para as estrelas
Que nos dão segurança
E vamos embora
Tranquilos
Entre os dois parênteses
Dum Cataclismo 

(Le ciel et son fantôme, p133)





Friday, March 01, 2019

UM DIA, diz a Mulher



Um dia
também eu sairei porta fora

caminharei nas ruas 
ausente de sentido
atravessando esplanadas
e jardins
bairros que não conheço

irei em frente
sem parar nas lojas elegantes
da Avenida
que pouca Liberdade tem

irei assim
perdida e sem destino
descendo
à beira-rio

quando me virem na água
darão então por mim