Sunday, April 30, 2023

  

O MELRO

Não estás aqui ao meu lado.

 Bem posso olhar

quando a luz diminui

e na varanda

vem um melro falar.

Se me levanto ele foge

tem a sua relva algures

num jardim não muito longe

onde irá pernoitar.

É feliz esse melro

tem um poiso que conhece

e não tem de procurar.

Eu ainda te procuro

mas já não estás ao meu lado

e não sei adivinhar.

 

30 de Abril, 2023

 

 

Nuno Félix , O Desfazer Das Coisas E As Coisas Já Desfeitas, ed. Companhia das Ilhas, 2015

 

O desfazer das coisas, mais uma vez.

Durmo de noite, durmito o dia todo. Tenho o seu livro à minha frente. Abro ao acaso numa daquelas páginas em que apanho logo o sobressalto de um exercício de surrealismo que joga com uma espécie de auto-cadáver exquis entre a ciência, a anatomia cruel de imagens de gráfica anatomia, descerebrada, e um puro jogo de imaginação literária, erudita, por vezes mesmo simbólica, arquetípica que nos deixa perplexos enquanto tanto imaginário que se auto desconstrói nos eleva para outro patamar.

Nuno Félix, é preciso reconhecer, é demasiado sábio para que o possamos entender. Não nos oferece conhecimento, a nós pobres leitores, mas experiência e sentimento. Exige que o sigamos por caminhos estreitos, as finíssimas ou mesmo raras sinapses entre neurónios que se vão esgotando no meio dos exercícios. O que procuro, quando o leio?  De modo nenhum repetir o seu impossível exercício, mas descobrir, nos intervalos, algo que esteja escondido e me seja revelado.

Arte é revelação, e a escrita meio surrealista, ainda que entremeada de realismo, traz consigo surpresa, desafio, vontade de continuar. Viramos as páginas, seguimos outro parágrafo, procuramos, numa nova metáfora o sentido que traz. Na Ciência como na Arte o sentido dá vida.

Na desconstrução, que é busca e exercício, ambas se encontram e voltam de novo a construir. Essa é a secreta lição?  O sentido da Vida?O que andava perdido do Sinal primitivo?

Leio "Isto é um risco real":

Poderemos continuar ágeis a entrar e sair dos símbolos e a papaguear detritos de uma democracia adulterada? Poderá a mente fazer os dedos agarrar as coisas e espremê-las até o nome aparecer? Como um macaco agarrar e lambê-las e esse saber ser uma nuvem com todas as cores? Quem aparecerá para pensar? Quem ouvirá o pensador desfazer-se no meio do lixo gritar por si - pelo seu nome - pelo nome das coisas querendo tudo separado por gavetas com rótulos? O tempo come os pigmentos da cabeleira das letras - Deixa os símbolos sem correspondência física ou a lei do próprio movimento destruindo a relação à coisa e recriando-se como negação - Funcionará ainda o cérebro com os símbolos rindo da sua loucura?" (p.47).

Para entender seja o que fôr, mesmo uma Democracia deteriorada, há que voltar aos gregos como num outro texto, de abertura, o autor avisou. Heidegger fez o mesmo, quando escreveu, em fim de vida e de carreira recuperada,  sobre O QUE É PENSAR. E fez o que é impossível não fazer, se quisermos pensar...recorreu a um verso inicial de um dos grandes poetas, para epígrafe, Hoelderlin, no Hino à Memória, Mnemosyne: somos um sinal que perdeu o sentido...

E aqui estou eu, com Nuno Félix, e o macaco real que também pode ser um sinal, o deus Thot dos egípcios, metáfora escondida de Hermes, o da sabedoria, a cogitar sobre o que leio, também eu em busca do nome,  o nome oculto, não meu para que o gritem, mas para que eu o saiba, e o guarde em silêncio? 

Será pura coincidência que há dias me tenha debruçado sobre os últimos poemas de Ingeborg Bachmann para descobrir nela o peso das palavras, os nomes que Celan carregou de sentido e lhe foi transmitindo até morrer? Ao mesmo tempo que atrai e recusa os símbolos, eis Nuno procurando à rebours, ele já é de outro tempo, o de agora, o de uma nova negação que constrói e desconstrói, mas sempre para recuperar o que não queremos perdido, o Sentido que só ele dá Vida renovada ao Sinal.    




Thursday, April 13, 2023

O TEMPO

 Uns viram-se para fora

outros viram-se para dentro

entre o fora e o dentro

o Tempo

Tuesday, April 04, 2023

LILITH

 

Lilith

Chegara por fim

a sua hora.

À volta dele

todos queriam ajudar

queriam que se salvasse

daquela Mãe negra

que ali pairava com

 sofreguidão de raiva.

 Ia directa ao coração,

que não comia

como tinha feito com outros

em tempos imemoriais.

Não, desejava agora

arrancá-lo, parando

esforços de salvação,

queria arrancá-lo

do peito tão amado

e enterrá-lo bem longe

na cama de lençóis brancos

que tinha preparado

no seu reino de trevas

onde ficara exilada

por um deus sem nome

que a tinha castigado.

 

5 de Abril 2023

 

 

 

Saturday, April 01, 2023

 UM LIVRO

Um livro é um amigo

pode ficar na mesa

à nossa frente ou

ao nosso lado

com os outros

que foram lidos

 e deixamos ali

desarrumados

é uma presença fiel

não obriga a ser lido

pode ficar assim

no seu silêncio

não há ofensa

ele fechado

e nós calados

 

2 de Abril, 2023