Sunday, February 28, 2021

Samuel Pimenta, Ascenção da Água, ed. Labirinto, 2019

 Tenho comigo há já algum tempo este livro de poesia que recebeu o prémio literário Cidade de Almada em 2020. Mas não é pelo prémio que o refiro aqui. É pelo gosto do autor, nascido em 1990, e pelo seu prazer de escrever poesia. Espero que tenha lido a carta de Rilke a um jovem poeta, em que se diz que se não fôr uma questão de sobrevivência não se escreva poesia. Para o poeta dos Anjos terríveis, terrível seria uma escrita forçada que ofenderia as almas mais sensíveis, se não as da terra, certamente as do céu. Samuel arrisca. E à medida que vou lendo, sendo o diálogo poético directo e simples, concluo que Rilke gostaria de ler, nestes novos tempos, estas outras vozes, onde não estão os Anjos que matam, mas o prazer de uma natureza que se ama. 

No primeiro poema, FOZ, fala da condição dos rios, do gelo das montanhas, das florestas, da areia do tempo, cujos grãos o livro (ou a vida?) irão contar. E termina sem esconder um oculto desejo de sublimação, quase rilkeano sem o ser: " Sou líquido com asas a crescer no horizonte". Fundiu-se no mundo natural para adquirir uma nova consciência de ser. E sim, isto é poesia, num decurso que podia ser dos riachos que Ricardo Reis contempla, enquanto não fala de amor e nem se compromete.

No poema TRAVESSIA há de novo um eco evocador de um mítico passado, o de Orfeu, (de novo Rilke, que escreveu o belo poema Orfeu e Eurídice) que atravessou as trevas dos mortos para chegar ao Hades, com a evocação de Caronte, o eterno barqueiro. O poeta exclama quero ver, quero ver! Mas apela a quem o irá acompanhar, esse outro de si mesmo, e que ele sabe que reserva o mistério das viagens do ser.

Há nestes poemas uma presença subliminal arcaica, que nos faz pensar e ler de novo. Que mito, que arquétipo, que realidade de si mesmo, na busca de um eu oculto, ali poderemos encontrar? Como neste que transcrevo:

"Diante da porta / vislumbro o teu rosto / e a escuridão. Pedes-me os passos / do labirinto / e a vida do monstro./ Não tenho fio para voltar até ti." p.8.

O Minotauro, no labirinto? O fio de Ariadne, que salvaria? Ficamos com a imagem da porta, que continua fechada: para o amor ? Para a vida que se desejaria, tendo o fio do destino na mão? É bom que não se dê resposta. Porque no poema seguinte, dedicado à Maria João Cantinho, há uma conclusão importante, para os caminheiros da poesia centrada numa busca, embora não declarada do sentido do eu: " Quem rasteja sobre a terra / não se curva na direcção das estrelas".

É adiante, na página 10, que o mito oculto atrás se revela plenamente:

MINOTAURO

O monstro está aqui, / à minha frente / feito de medo e / abandono.

"É apenas um homem em sofrimento".

Samuel tem já vasta obra, publicada e reconhecida, e o misticismo que parte destes seus poemas revela, ou oculta, ensina-nos o que Rilke pedia: que se escreva por necessidade profunda de um dizer que a vida, o sucesso, o quotidiano, enfim, não banalizou.

Em A FALA DAS BRUXAS,  p.38, que não vou colocar aqui, peço aos leitores que comprem e leiam o livro, o entendam por si próprios, foi com a palavra e os poemas, diz o poeta, que aprendeu a fala das bruxas."E nunca mais vivi num mundo sem magia". Antes já tinha aprendido os pormenores da vida: no Lar, nas sementes que só no calor podem crescer, como o desejo nas nascentes, em resumo, os detalhes da vida que se vive. Mas só  a magia da palavra, o ritmo que é o seu bater do coração, a imagem que fala o seu dizer (falar é fácil, dizer é outra coisa) lhe dão acesso à magia que vinha procurando pelo seu caminhar entre mitos e versos de uns e de outros. Escrevi há uns anos POEMAS COM ENDEREÇO. Revejo-me por vezes neste livro, na intenção da sua escrita.

Como na alquimia as palavras antigas que Samuel evoca são e serão sempre terra fogo ar água. Sou fogo e ar, exclama Cleópatra na peça de Shakespeare, pouco antes de morrer. Os elemento subtis, que se libertam do peso mais denso da terra e da água. Destes também o nosso poeta se foi devagar libertando. Fiquemos pois com a alquimia do seu verso, aqui oferecido.


 



 


  



 











Wednesday, February 17, 2021

Tuesday, February 16, 2021

Ingeborg Bachmann, Os Últimos Poemas

 Ingeborg Bachman

(Dos Últimos Poemas, para o Sérgio Ninguém, fiel à poesia)

 HÔTEL DE LA PAIX

A carga de rosas despenha-se em silêncio das paredes

e através do tapete brilham o chão e a terra.

O coração de luz quebra a lâmpada.

Escuridão. Passos.

O ferrolho foi corrido diante da morte.

 EXÍLIO

Sou um morto que vagueia

sem estar em parte alguma

desconhecido no Reino dos perfeitos

estando a mais nas cidades de ouro

e nos campos verdejantes

extinto há muito tempo

e sem ser tido em conta

a não ser pelo vento, pelo tempo, e os sons

 de não saber viver entre as pessoas.

 Eu com a língua alemã

esta nuvem que me envolve

e a que chamo casa

 movendo-me entre todas as línguas

 Oh como se escurecem

os turvos sons da chuva

poucos são os que caem

 Para zonas mais claras elevará ela então o morto.

 DEPOIS DESTE DILÚVIO

Depois deste dilúvio

quero a pomba,

e nada mais do que a pomba,

vê-la salva de novo.

 Afundar-me-ia neste mar!

se ela não voasse,

não trazendo consigo

na hora derradeira a folha.

 CORRENTE

Tão avançada na vida e tão perto da morte,

que não posso contar com ninguém,

arranco da terra a parte que me pertence;

 no calmo oceano enterro a cunha verde

em pleno coração e nado para a praia.

 Pássaros de estanho levantam-se e cheira a canela!

Com o tempo meu assassino estou a sós.

Num êxtase de azul nos tornamos crisálidas

VÓS, PALAVRAS

 Para Nelly Sachs, a amiga, a poeta, em homenagem

Vós, palavras, erguei-vos, segui-me!

e embora já estejamos longe,

longe de mais, é preciso continuar

mesmo sem chegar a nenhum lado.

 Não se esclarece.

 A palavra

apenas atrairá

para si outras palavras,

a frase outra frase.

Assim o quer o mundo,

para sempre,

ser forçado ao sim.

Não o digais.

 Palavras, vinde comigo,

para que não se torne definitiva

esta voracidade da palavra

o dito e contradito!

 Deixai por um momento

que nenhum sentimento fale,

que o músculo do coração

se treine de outra maneira.

 Deixai, digo, deixai.

 Que no ouvido supremo

nada, digo eu, seja sussurrado,

que sobre a morte nada te ocorra,

deixa e vem comigo, nem suave

nem amargo,

nem desejando consolar

nem mostrando

quaisquer outros sinais -

 E acima de tudo não isto: a imagem

tecida com o pó, cascalho vazio

de sílabas, palavras agonizantes:

 Nem uma palavra de morte,

ó palavras !