Saturday, May 27, 2023

João de Mancelos, CORAÇÃO DE ALUGUER, ed. Colibri, 2023

 Já tenho escrito sobre João de Mancelos, com prazer especial, julgo que nos é comum, pela arte do Haikai. Embora um ou outro autor me tenha dito que tanto faz dizer Haikais, para plural, eu aprendi com Alberto Pimenta, cuja erudição é indiscutível, que o singular é Haiku, e o plural Haikai (sem se usar o "s"). Como não falo japonês e só leio traduções, não entrarei nesta discussão, mas tenho uma linda prenda do Alberto à minha frente, uma linha vertical de um Haiku condensando nessa imagem uma única ideia. Esse é o segredo e o encanto desta prática artística japonesa: uma ideia única numa única imagem que a condensa e contém. A ideia dirige-se ao nosso espírito, a imagem ao nosso sentimento e sensibilidade, como faria um desenho ou um quadro. Uma imagem.

Logo no título do seu livro, que prefiro chamar de poemas e não de Haikai, excepto num caso ou noutro que o permitem, o autor nos deixa com a imagem de um coração"de aluguer". É de aluguer por estar livre e feliz ou por ter sido libertado por outro, com desgosto seu? 

Ficamos com curiosidade de saber e vamos ler o que nos diz, nas suas páginas. Está dividido em 4 secções: Deslumbramento, Labaredas, Abandono e Memória.

Momentos que revelam Atracção, Paixão, Afastamento e  Memória

(Saudade do fim dessa paixão, poetizada ao longo dos vários versos?).

Há que ler, devagar, a leveza dos versos escritos como feridas de alma que não se ultrapassaram. Ou não haveria memória, mas esquecimento, ou apenas simples evocação. A memória traz um actualizado sofrimento, a evocação pode ser tranquila em paisagem  de horizonte longínquo.

Muitas vezes me ocorrem os poemas de Rilke, a propósito das cartas a um jovem poeta, a quem recomenda que não fale logo dos seus primeiros impulsos de amor, pois o amor perturba a clareza do verso. E que só escreva se para si fôr a escrita questão de vida ou morte. Para Rilke era, e assim ele criou uma obra que se tornou universal, para não dizer eterna.

O amor, deste coração de Mancelos, não sei se será de vida ou morte, na narrativa que é oferecida. Mas a algum impulso mais fundo obedeceu, ou não o estaríamos agora a ler, acompanhando o que sentiu nos diversos momentos que também eles são universais: pois quem nunca amou, viveu e sofreu amando, até que tudo findou? O tema do amor é o mais universal, como há pouco tempo, falando de paixão e morte nos dizia José Pedro Serra em Mythos, o seu programa da televisão.

Na minha idade sei bem que paixão e amor não são a mesma coisa, e conforme as épocas e as culturas a sua vivência é diversa.

Vivemos uma época de veloz vivências, ou seja de paixões, intensas mas condenadas à brevidade dos tempos. Já o amor seria vivido de outro modo, e nem sequer está na moda. Daí que neste livro as labaredas tenham mais peso e rápido se desfaçam em abandono. 

Mas volto à capa do livro, que além de ser muito bela, (parabéns à Raquel Ferreira, que não conhecia como ilustradora) nela sim, com o seu título inscrito, coração de aluguer, descubro o impulso misterioso de um Haikai: Fino rosto no meio da sombra e mão que vivamente afasta, recusa (quem sabe se depois ter aceite, alugado, alguma relação de momento, passageira?)

Um Haiku pode ser assertivo, mas pode igualmente ser de interrogação deixando ao leitor a hesitação da resposta. João de Mancelos, e este seu gosto pela cultura oriental, japonesa, terá lido Kawabata e as suas Belles Endormies, notável romance testemunho de uma prática usual ainda no seu tempo e que eu li ainda jovem, em Paris e tanto me deslumbrou pela beleza e pela crueldade que indirectamente revelava. Jovens que eram adormecidas para que os seus corpos indefesos pudessem ser alugados por quem pagasse uma noite junto delas, e vivesse a ilusão de amar e ser amado em entrega total. Muitas morriam, devido à anestesia que lhes era dada. No caso deste romance o homem já de idade que procura e aluga sempre a mesma jovem, por quem se apaixonara de verdade, e a visita uma e outra vez, o amor é vivido de forma intensa e trágica, pois ela acaba por morrer. 

O amor de aluguer descrito nos Haikai de Mancelos é forçosamente diferente, pois ele é jovem, e num jovem a relação é vivida de forma intensa, e não busca um corpo tranquilo,  quem em nada se recuse, mas que esteja bem vivo e que lhe corresponda, enquanto a relação dure. É o momento das LABAREDAS. 

Meditando sobre a capa, uma ilustração também pode evocar uma forma de Haikai. Atrevendo-me a pensá-la ( a idade que tenho já me permite tudo, ou quase, e a intenção é  desvendar amor e não  criticar) eu escreveria:

Olhar que se desvia

Mão que afasta

Paixão que se acabou 

ou

 perdendo-me em variantes:

olhar desviado

mão que afasta

paixão que se extinguiu.

Fica-nos a questão do adjectivo, " de aluguer" .

Coração de aluguer não pode ser um coração qualquer, e só o poeta poderia explicar melhor: nessa relação que a narrativa poética descreve quem foi que por momentos a viveu, a Amada ou o Amado, quem abandonou primeiro e para sempre, disponível apenas para aquela espécie de aluguer e nada mais? Amor de acaso e de ocasião?

Mas que foi enquanto durou intenso e deixou marcas?

Vamos ler.

A PRECE é um apelo, depois de um deslumbramento, da descoberta de alguém que se deseja. Os versos adiante confirmam essa sede de amor: " o meu amor vinha / de um deserto longínquo / e tinha sede de mar.

A solidão é a imagem escondida o amor a revelada. Lembro a epígrafe de Italo Calvino, no início, o mar dentro de um copo", metáfora para a poesia. Ou aqui um deserto que procura a água do mar.

O imaginário da água atravessa estes poemas, e sabemos como da água nasceu Vénus, a deusa do amor esplendoroso a que os poetas se podem entregar. Água, amor, beijos de princípio do mundo, pássaros em busca desses vôos de pura elevação espiritual. Na verdade, tudo é inocente, o corpo do desejo, só de sonho, ainda não está presente.

Mas haverá em breve a imagem do fogo, acelerando o bater do coração sequioso.

Já em RISCANDO A NOITE, depois do elemento água  temos no fósforo o elemento fogo. Água e Fogo, como Terra e Céu, os elementos base do imaginário poético desta narrativa. 

No poema seguinte ANDORINHAS EM OUTUBRO, outono da melancolia,  da velhice sei bem, surge o que diria uma evocação das Belas de Kawabata: "clandestinamente / a jovem e o velho amam-se". E finalmente o corpo desejado, em SOLETRO TEU CORPO DESPIDO:

"soletro o teu corpo despido / entre dosi versos. vem /

interrompe a minha morte".

Entramos assim na segunda parte, de título LABAREDAS, pois já o fogo arde na paixão finalmente vivida.

Água e fogo, fusão alquímica, de que há uma bela gravura indiana do século XVIII que Jung reproduz no seu tratado sobre Psicologia e Alquimia.

Em RAPARIGA ENTREABERTA a fusão torna-se explícita:

"ela entreabre-se ao amor: / afastam-se as águas / entra-lhe o fogo". Ou ainda em RITUAL:

"noite a noite, eu colhia / estrelas ou versos na escuridão / incendiada do teu corpo". Toda a relação se passa na escuridão da noite, como se apenas de noite (ou a dormir, como em Kawabata) a paixão pudesse plenamente ser vivida.

TODA A ESCURIDÃO DA NOITE

tinha uma só boca, 

mas toda a escuridão da noite

para te beijar.

NÃO SEI O QUE CEGA MAIS

não sei o que cega mais:

o lume, o amor, o silêncio

a tua pele de cal na escuridão.

PARA SER DEUS

deus precisa da eternidade 

para ser deus. a mim,

basta-me uma noite contigo.


Adiante falará do que é o seu amor como "ofício de labaredas". Até que tudo se consome e se transforma, nas cinzas do ABANDONO. Terminou a hora da entrega, acabou o que parecia eterno e era só aluguer? Paixão, mas feita de empréstimo e não de completa entrega? Só ele saberá dizer, o que encontrou no amor e na paixão a intensidade do verso.

A paixão definida como "outrora seda" é agora " a pele que a serpente despiu". Resto seco que se deixa para trás como a da serpente , que introduz aqui uma nova metáfora, pois fica no ar a perversidade que atribuímos à serpente, desde logo no Éden, jardim perverso que até agora não tinha surgido. 

Recuperando o imaginário que temos acompanhado, vimos a água, o fogo, vemos agora o céu que fora indicado pelos pássaros e agora é de novo pelo vento.

O vento é o pensamento, é o que transporta e transforma, neste caso um coração que o poeta interroga:

"diz-me: quem flutua, agora,

no teu coração

assombrado pelo vento?"


Deixo ao leitor a continuação da leitura pelos versos da Memória, destacando apenas o final, porque de novo, como no início há um apelo pungente, a última chamada que se guardou algures na memória: " esta noite e para sempre /que o meu coração anoitecido / amanheça no teu peito".

Um belo livro.






 


  





Sunday, April 30, 2023

  

O MELRO

Não estás aqui ao meu lado.

 Bem posso olhar

quando a luz diminui

e na varanda

vem um melro falar.

Se me levanto ele foge

tem a sua relva algures

num jardim não muito longe

onde irá pernoitar.

É feliz esse melro

tem um poiso que conhece

e não tem de procurar.

Eu ainda te procuro

mas já não estás ao meu lado

e não sei adivinhar.

 

30 de Abril, 2023

 

 

Nuno Félix , O Desfazer Das Coisas E As Coisas Já Desfeitas, ed. Companhia das Ilhas, 2015

 

O desfazer das coisas, mais uma vez.

Durmo de noite, durmito o dia todo. Tenho o seu livro à minha frente. Abro ao acaso numa daquelas páginas em que apanho logo o sobressalto de um exercício de surrealismo que joga com uma espécie de auto-cadáver exquis entre a ciência, a anatomia cruel de imagens de gráfica anatomia, descerebrada, e um puro jogo de imaginação literária, erudita, por vezes mesmo simbólica, arquetípica que nos deixa perplexos enquanto tanto imaginário que se auto desconstrói nos eleva para outro patamar.

Nuno Félix, é preciso reconhecer, é demasiado sábio para que o possamos entender. Não nos oferece conhecimento, a nós pobres leitores, mas experiência e sentimento. Exige que o sigamos por caminhos estreitos, as finíssimas ou mesmo raras sinapses entre neurónios que se vão esgotando no meio dos exercícios. O que procuro, quando o leio?  De modo nenhum repetir o seu impossível exercício, mas descobrir, nos intervalos, algo que esteja escondido e me seja revelado.

Arte é revelação, e a escrita meio surrealista, ainda que entremeada de realismo, traz consigo surpresa, desafio, vontade de continuar. Viramos as páginas, seguimos outro parágrafo, procuramos, numa nova metáfora o sentido que traz. Na Ciência como na Arte o sentido dá vida.

Na desconstrução, que é busca e exercício, ambas se encontram e voltam de novo a construir. Essa é a secreta lição?  O sentido da Vida?O que andava perdido do Sinal primitivo?

Leio "Isto é um risco real":

Poderemos continuar ágeis a entrar e sair dos símbolos e a papaguear detritos de uma democracia adulterada? Poderá a mente fazer os dedos agarrar as coisas e espremê-las até o nome aparecer? Como um macaco agarrar e lambê-las e esse saber ser uma nuvem com todas as cores? Quem aparecerá para pensar? Quem ouvirá o pensador desfazer-se no meio do lixo gritar por si - pelo seu nome - pelo nome das coisas querendo tudo separado por gavetas com rótulos? O tempo come os pigmentos da cabeleira das letras - Deixa os símbolos sem correspondência física ou a lei do próprio movimento destruindo a relação à coisa e recriando-se como negação - Funcionará ainda o cérebro com os símbolos rindo da sua loucura?" (p.47).

Para entender seja o que fôr, mesmo uma Democracia deteriorada, há que voltar aos gregos como num outro texto, de abertura, o autor avisou. Heidegger fez o mesmo, quando escreveu, em fim de vida e de carreira recuperada,  sobre O QUE É PENSAR. E fez o que é impossível não fazer, se quisermos pensar...recorreu a um verso inicial de um dos grandes poetas, para epígrafe, Hoelderlin, no Hino à Memória, Mnemosyne: somos um sinal que perdeu o sentido...

E aqui estou eu, com Nuno Félix, e o macaco real que também pode ser um sinal, o deus Thot dos egípcios, metáfora escondida de Hermes, o da sabedoria, a cogitar sobre o que leio, também eu em busca do nome,  o nome oculto, não meu para que o gritem, mas para que eu o saiba, e o guarde em silêncio? 

Será pura coincidência que há dias me tenha debruçado sobre os últimos poemas de Ingeborg Bachmann para descobrir nela o peso das palavras, os nomes que Celan carregou de sentido e lhe foi transmitindo até morrer? Ao mesmo tempo que atrai e recusa os símbolos, eis Nuno procurando à rebours, ele já é de outro tempo, o de agora, o de uma nova negação que constrói e desconstrói, mas sempre para recuperar o que não queremos perdido, o Sentido que só ele dá Vida renovada ao Sinal.    




Thursday, April 13, 2023

O TEMPO

 Uns viram-se para fora

outros viram-se para dentro

entre o fora e o dentro

o Tempo

Tuesday, April 04, 2023

LILITH

 

Lilith

Chegara por fim

a sua hora.

À volta dele

todos queriam ajudar

queriam que se salvasse

daquela Mãe negra

que ali pairava com

 sofreguidão de raiva.

 Ia directa ao coração,

que não comia

como tinha feito com outros

em tempos imemoriais.

Não, desejava agora

arrancá-lo, parando

esforços de salvação,

queria arrancá-lo

do peito tão amado

e enterrá-lo bem longe

na cama de lençóis brancos

que tinha preparado

no seu reino de trevas

onde ficara exilada

por um deus sem nome

que a tinha castigado.

 

5 de Abril 2023

 

 

 

Saturday, April 01, 2023

 UM LIVRO

Um livro é um amigo

pode ficar na mesa

à nossa frente ou

ao nosso lado

com os outros

que foram lidos

 e deixamos ali

desarrumados

é uma presença fiel

não obriga a ser lido

pode ficar assim

no seu silêncio

não há ofensa

ele fechado

e nós calados

 

2 de Abril, 2023

Saturday, March 25, 2023

GATOS , para o João

 

Ele quer mimo,

tem um gato.

O gato

também quer mimo

e busca na cama fofa

o seu lugar mais quentinho.

Primeiro na almofada

mas é só para enganar

ele quer mimo no pescoço

do seu dono a dormitar

e logo a seguir

no seu rosto

escondido sob o lençol

que ele ajuda a destapar.

Calor a mais não é bom

estraga o mimo procurado, 

e o gato deseja agora 

 o seu peixinho sonhado.

Tanto amor liga estes dois

nunca dormem separados

onde está um 

está o outro

este mimo é de durar.



Ainda o Tempo

 

Descubro que afinal

não vivo o Tempo, que

o grande Heidegger definia 

como essência que dava ao Ser

a sua parca existência.

E digo parca

porque o Tempo será talvez eterno

se confiarmos nessa filosofia

ou no cosmos que é 

 também ele um infinito 

segundo agora se afirma.

Mas esse Tempo não é nosso,

ensina a experiência de vida,

o nosso é o tempo pequeno

o tempo feito dos dias

que hora a hora se vivem

na busca inútil do Ser

que Heidegger definia.

Também o Ser é pequeno

conforme o tempo vivido

conforme os dias que passam

afinal vão permitindo.

  

Abraços

 

Foi um abraço

tão quente

que me levantou 

do chão...

e afinal foi nesse abraço

que parou o coração.

Eu não podia saber

tão grande era a minha alegria

e tão grande a emoção

que já me tirava a vida

que eu julgava devolvida

mas que em silêncio fugia

e sem que eu visse a razão.

Tanto amor à sua volta

entre gestos desejados

embora nunca pedidos

mas de novo renovados

em cada dia passado

numa ilusão fugidia...




 Sábado.

Já sei que é um dia morto,

 não é rei morto-

rei posto,

não obedece

ao lema tradicional.

Teremos de atravessar

este dia, faça chuva ou faça sol

dia de mediação

ora de sim ou de não

conforme acordamos cedo

com boa disposição

ora pelo contrário

quando as horas recusadas

sabem a  horas mornas

que nem o café sacode

afinal são horas mortas

 reviravoltas na cama 

procurando o travesseiro

que já pusemos de lado

e agora queremos de novo

ele ao menos fica inteiro

escapa-se dos lençóis

que são mar traiçoeiro

sem nenhuma inspiração

 que nos dê um novo impulso

até que chegue o Domingo

que se vive menos mal. 


Tuesday, March 21, 2023

IDEIAS

 Ideias (terá dito Mallarmé...)

Ideias

nada são sem palavras

não se encontram por aí 

à venda nos mercados

temos de as procurar

com paciência e cuidado

em espaços recônditos

da alma

difíceis de alcançar

muitas vezes teremos

de esperar

podemos até morrer

sem as ter encontrado

e talvez um dia por acaso

alguém

venha a tropeçar nelas

e sem pensar em nós

exclame olha que sorte

palavras tão buscadas

para uma ideia nova

 só agora nos surgem

tendo escapado à morte...