Thursday, August 13, 2020

Caminhar

 O poema de Sérgio Nazar David, Gelo, tem tanta matéria simbólica, tanta mas tanta ideia para prolongar, que assim fiquei, madrugada fora, caminhando com ele. E deixo aqui o resultado:

Alquímico

Não abras o portão

desse jardim

nem fiques de fora

à espera

 Segue

vê onde enterras os pés

 Procura onde deixaste

os teus sapatos

mesmo velhos e rotos

terão de ser calçados

 O homem tem o teu nome

e já abriu na terra a vala

dos descalços

 (12 de Agosto, 2020)

Sérgio Nazar David, Gelo

Gelo, eis o poema e um comentário...

Noite passada em sonho
te levei para conhecer o gelo.
Viste as ideias abstratas

postas à prova. O objeto
sem forma, embora assim
não pareça, no copo

vazio ou cheio. Num pico
de neve: escarpas de medo
e coragem ardendo.

As mãos frias dos mortos
têm esse fogo por dentro.
[INÉDIT
 Relendo este poema...
 Não é poema de coisa
ou criatura.

 É espaço aberto
entre planetas e
astros

e galáxias sem fim
onde as estrelas se formam
no seu ninho

 Um Nada tão absoluto
anterior à palavra por dizer
que nenhuma luz derrete
nenhuma treva consome

O espaço onde deus se esconde
numa outra alteridade
que não permita confronto
no caminho

(9 de Agosto, 2020)

Esta imagem do Gelo não se esgota no poema,  nem no comentário, de tão forte que é.
O gelo queima, por isso é impensável que não surja associada a ele a imagem do fogo, o fogo secreto que no seu coração arde embora não derreta o que tem a envolver o seu núcleo tão duro e tão fiel:  escarpas de medo e coragem ardendo. 
Oculto, um secreto jogo de opostos, as mãos frias dos mortos, com esse fogo por dentro.
Regressamos então ao Gelo, ao seu significado, dureza impenetrável. E no entanto arde, e há quem tenha a coragem de subir ao pico dessa montanha, e entregar-se ao supremo gozo desse frio dos mortos...cujas mãos amorosas ainda nos aquecem.



Monday, August 03, 2020

Afinal o que que ficou no Éden?

Um inédito, com que fecho os Sintomas II, enquanto o meu word aguenta...
Conclui afinal o que ficara por dizer no ensaio do dizer o mal, mais antigo, mas era conferência na UNL e precisava de ponto final.
Sintomas II
inédito
Acordei cedo e com uma interrogação sobre o Jardim do Éden, depois de Jeová ter expulsado Adão e Eva, as suas criaturas primordiais, o casal que daria origem a toda a espécie humana. Expulsos e proibidos de regressar pelo Arcanjo da espada flamejante que guardou, até hoje, o portão da vida eterna, Adão e Eva foram à sua vida, isto é, puseram-se a caminho, e o caminho deu por sua vez origem ao que chamamos terra: as grutas, as florestas, os campos com as terras férteis ou amaldiçoadas, conforme, e as cidades de que Cain, o filho primogénito, foi o construtor. Também aqui houve um momento de expulsão. Adão e Eva tinham concebido dois filhos Cain e Abel. Jeová apreciava mais a ingénua fé e os as oferendas que Abel lhe levava. Cain, ciumento, matou o seu irmão e justificou o seu acto como vingança pela injustiça da relação privilegiada com Jeová. Sendo o mais velho não mereceria mais respeito?
Jeová era um deus cruel e vingativo. Tinha prazer em castigar. Já castigara os pais, castigava agora um dos filhos, Cain, o invejoso das bençãos dadas a outros. Ele partiu e o seu caminho foi feito de avanços na progressão do que hoje se chamaria civilização. Porque a cidade representa um grande avanço no ordenamento dos espaços, dos territórios, (suas normas, seus rituais) cuja finalidade era aprender a cumprir os deveres para com os deuses. Isto também aborreceu Jeová, que queria ser o único a decidir do destino da espécie. E quantas vezes, de raiva, destruiu o que fora de início impulso de generosa vontade de criar e contemplar feliz o que tinha sido criado, pelo seu Verbo inflamado e poderoso.
Mas volto à questão do Jardim do Éden: o que lhe aconteceu? Jeová passeava solitário entre as árvores? Talvez entregues à jardinagem cuidadosa de algum Anjo? Ou já todas as que eram pomares de sedução e alimento estariam abandonadas ao acaso?E não esqueçamos a serpente, que não chegou a ser expulsa, o seu corpo rastejava por ali, com o seu veneno entranhando outros seres, e entre eles um Anjo, o que viria a revoltar-se contra Deus, já que de Adão e Eva ela tinha perdido o rasto, até ao episódio de Cain.No Génesis I, podemos ler a Criação e a Queda. Já tratei algures o DIZER O MAL, procurando entender a sua génese.Mas hoje é do Jardim Perfeito que me quero ocupar. Com muitas árvores de fruto, Adão e Eva nunca teriam fome. Mas alguma coisa faltava e foi a Serpente que lhes explicou o que faltava e seria de tão fácil acesso (não mencionou o preço a pagar). Faltava o conhecimento. Ali estavam os dois, puros na sua inocência do corpo e da alma, e Jeová só vinha controlar se havia obediência....ou curiosidade de experimentação, conhecimento e ciência ( algo que a Serpente parecia possuir em abundância, como se também fosse, parcialmente, divina).A tentação de saber, e saber mais, afectou Eva de forma irremediável. Obedeceu ao seu instinto serpentino (tão próprio das mulheres, desde os rituais mais antigos praticados e representados em tantos mitos de fundação, desde os Assírios aos Gregos e ainda hoje nas tribus não conhecidas). Colheu o fruto da árvore proibida e logo Jeová acorreu, a salvar a outra, que era sua e lhe garantia toda a perenidade. Furioso, de seguida os chamou e castigou, a esse par que ousara desobedecer às ordens dadas.Jeová Deus ficou com uma das árvores, a da Vida Eterna, mas a Serpente ficou  enrolada na outra, a do Conhecimento, e que eu saiba até hoje  não foi expulsa, embora ameaçada de um dia ter a cabeça esmagada por uma Virgem pura. Mas morderia primeiro o calcanhar da linhagem do homem, pois ele e Eva iriam agora, já expulsos, procriar.Sabemos que diante do Jardim do Éden deus colocou “os querubins” (os seus Anjos),  e a chama do gládio fulgurante para vedar o acesso à Árvore da Vida.Volto a pensar no que se passaria no interior de um Jardim, outrora tão perfeito e agora tão amaldiçoado. Jeová vivia e mandava. Mas a Serpente vivia, como ele. E astuta (podia Jeová ser menos inteligente do que ela, ele que fora seu criador?) ela simplesmente aguardava o seu momento.E assim avançava, enquanto rastejava, e ia sendo seu todo o Conhecimento. O pouco e o muito que hoje temos.

Que distração a minha, imperdoável...no meio do Jardim ficou um resto da maçã trincada por Eva e por Adão, com o caroço à vista, apodrecendo...