Tuesday, November 25, 2008

Marquesa de Alorna(1750-1839)



Vanda Anastácio apresenta os SONETOS da Marquesa de Alorna numa bela e cuidada edição onde se ocupou da fixação e organização do texto, com uma  Introdução, notas e bibliografia que ajudam a bem entender e situar a obra e a vida de uma mulher notável no seu e em todos os tempos.
Alcipe, a quarta Marquesa de Alorna, ousava lidar com temas de todo o género, como escreve Fernando Mascarenhas, seu descendente: " desde a educação dos jovens, não só criticando a mesquinhez do que lhes era ensinado no seu tempo, como avançando as suas próprias ideias sobre pedagogia, até ao próprio sanctus santorum do mundo masculino- a política!"
Podemos ler, na Introdução, o que foi a vida da Marquesa, de seu nome Leonor de Almeida Portugal, como prisioneira de Chelas; o que foi, de seguida, a sua vida como mulher "das Luzes", numa Europa culta, mas onde ainda era raro brilharem as mulheres; o papel que desempenhou na Política, de 1793 a 1815;o regresso a Lisboa, onde vem a morrer, em 1839.
De Chelas se conhecem 44 sonetos, sendo o último dedicado às Musas, e daí o interesse de o comparar com outro, de Goethe, seu contemporâneo, que se autobiografou como Filho das Musas. 
As Musas ainda conservavam o seu estatuto de condutoras de almas, de paixões, de suspiros, por muito que nos Salões se discutisse pedagogia, filosofia ou política.

ÀS MUSAS

Co'a frauta agreste os beiços compremindo,
Desde que alva a manhã se despertava,
Ante Febo submissa me prostrava,
O sublime furor ao Deus pedindo.

Iam-se os Céus co'a clara luz abrindo,
Morfeu ao mundo alegre costas dava,
E Délio, sem mostrar que m'escutava
A rápida carreira prosseguindo.

Sobre a tripode em vão triste me sento,
Corro os três tetracordes sobre a lira,
Nenhum iguala a voz do meu tormento.

Musas cruéis, se aquele que delira
Mil vezes em vós acha acolhimento,
Porque não confortais a quem suspira?

A autora alude ao mito de Apolo, aqui chamado Febo, segundo o qual o deus concedia aos poetas, por meio de um furor sublime, uma súbita e incontrolada inspiração. 
Mal acordava, e o sono (Morfeu) perdia, tentava a jovem compôr a música que lhe pudesse alegrar o coração. Délio, outra figura mítica, conduzia o carro do sol, que surgia na manhã clara.
Mas nem flauta nem lira conseguem animar a poetisa. Sente-se abandonada pelas Musas, que parecem não lhe reconhecer a existência.

Diferente é o tom do poema de Goethe, igualmente dedicado às Musas:

O Filho das Musas (1822)

Percorro bosques e campos
levando a minha canção,
e assim vou pr'a todo o lado!
Com medida
 e a compasso
tudo gira à minha volta.

Ansioso aguardo as flores
 que vão brotar no jardim
ou nos raminhos das árvores.
Saúdam a minha canção,
e quando o Inverno regressa
ainda eu estou a sonhar.

Lanço a minha voz bem longe
sobre o gelo mais distante,
onde floresce o Inverno!
Também essas flores se vão,
e novos amigos farão
nas aldeias lá do alto.

Quando encontro sob as tílias
jovens a repousar,
encanto-os com o meu canto:
os jovens enchem o peito,
e as moças dançam contentes,
respeitando a melodia.

Vós dais asas aos meus pés,
 levando-me, vosso eleito, 
a correr montes e vales,
 pr'a longe da minha casa.
Ó belas Musas graciosas, 
quando repousarei nos braços da minha amada?
(versão Y.C.)


Goethe apresenta-se aqui como o favorito das Musas, que não lhe dão sossego, fazendo-o correr montes e vales com a sua melodia, encantatória, que alegra corações e desperta neles os amores e nostalgias que o próprio poeta sente. 
Um outro poema seu, o Canto Nocturno do Viandante,  completaria bem o seu desejo de uma paz que não chega: 

Tu que és do céu,
e todo o sofrimento e dôr acalmas,
que ao duplamente infeliz
duplamente conslas,
-Ah, estou cansado de tanta agitação,
de que servem a dôr e o prazer?-
doce paz,
vem, ah vem aquietar-me o coração!
(versão Y.C.)

Goethe teve a sorte de um compositor como Schubert transformar em obra de arte o seu poema dedicado às Musas.
Para a Marquesa de Alorna aguarda-se ainda uma inspiração igual. A música eleva a um outro patamar de Beleza e Emoção o suporte do canto do poema. Mas Portugal não tem ainda a suficiente preparação, o suficiente desejo de fazer do Ensino da Música uma verdadeira necessidade, para além das vocações que felizmente ainda vão surgindo (com que dificuldade...).
 
O poema da Marquesa contrasta com o de Goethe por várias razões: foi escrito, bem como os outros deste ciclo de Chelas, para consolar e entreter o seu pai, preso às ordens do Marquês de Pombal, com a acusação de ter participado, ainda que indirectamente , no suposto atentado contra o Rei Dom José; tem marca de estilo algo juvenil, muito próxima das leituras que o pai lhe aconselhava, a começar pelos clássicos e a continuar com Camões, o expoente máximo da criação poética na arte do soneto; e é de tom  bem feminino, de melancolia suave, paciente, o que se explica não apenas pela influência camoniana, mas sobretudo pela situação de prisioneira no Convento de Chelas, vítima também ela da perseguição movida à sua família. Como lemos no estudo de Vanda Anastácio, foram dezanove anos de cativeiro que, embora no seu caso permitisse visitas e bastante convívio, nunca tinha longe o verdadeiro horizonte de um castigo injusto e  impiedoso:
"Note-se que o encerramento das três senhoras (a mãe e as duas filhas do Marquês de Alorna) numa casa religiosa foi determinado pelas autoridades políticas como um equivalente da prisão, e que este era um meio correntemente usado na época pela sociedade civil para castigar, pressionar, ou simplesmente controlar os comportamentos da população feminina".
Outro pormenor interessante, que mostra bem como as "Letras" numa mulher não eram apreciadas, é o facto, que Vanda também narra, do pai da jovem poetisa não apreciar muito o que ela fazia...

Esta obra, delicada, merece mais atenção.
Talvez sob a forma de prenda de Natal.