Friday, January 26, 2018

Henri Michaux

Henri Michaux: No Coração da Cidade, Jardins da Alma

1.
Primeiro o poema, com o seu título:

En Occident
Le Jardin d’Une Femme
Indienne

 Entre de hauts murs, en une grande grise ville
habitée à l’extrême
luttant contre l’enfermement
un jardin de peu d’étendue
exalte
élève
emplit

Un continent lointain il appelle
il rappelle
il exhale
annulant l’environement

Le Serré se desserre

Se développant
s’offrant
jardin donateur
Comme ayant reçu mission
chaque année plus compact
en végétation innattendue aux jets surprenants
en nappes aussi et rampements
en enlacements, étalements, soulèvements
...aux résurgences éperdues

Par des espèces au port majestueux
propres aux climats comblés
il parle

Retiré en cette rare plantation,
porteuse des aspirations insaciables de la patrie d’Asie
secrètement on perçoit
on revient entendre le chant sans paroles, sans notes
du PERMANENT,
de l’Indicible

Dépassement
désirs infinis de dépassement

Sans effigie, sans pierres gravées
 BEAUTÉ  EN PRÉSENCE DES DIEUX

Variantes em prosa:
1.
 Krishna R. en ce jardin unique fait oublier la ville, l’Europe, l’époque.
Autant qu’aspiration, ce langage-là exprime resplendissement.
Par les plantes il dit la magnificence d’être en ce monde.
Plus que les fleurs lesquelles ailleurs prennent souvent une place excessive, trop distrayante, ici règne l’infini ineffable du foliacé.
Feuilles de multiple sorte, nuance, genre, se nourrissant toutes de lumière, axées invariablement sur une étoile-soleil à des centaines de millions de kilomètres là ardente inimaginablement
feuilles jusqu’au bout, au rebours des fleurs simples étapes pour le fruit à venir.
Apaisantes, égalisantes, protégeantes feuilles du jardin de l’esprit.

2.
 Krishna R. en ce jardin unique fait oublier la Ville, l’Europe, l’époque.
Autant qu’aspiration à dépassement, il est langage, expression de Plénitude, de surabondance.
Resplendissement des êtres  - Par les plantes, il est dit encore et encore la magnificence d’être au monde.
Avant sa venue il paraissait exigu. À présent, il est étendu, il est étendu comme une plaine du Gange, lié à son inoubliable terre natale, comme le Mahabarata aux centaines de couples pris et repris.
Surprenante concrétisation d’on ne sait quoi.
Grâce à ses partenaires végétaux, ce jardin a une présence singulière, chaque espèce qui s’y trouve, énigmatiquement vient, vous approche.

Plus que des fleurs qui ailleurs par un goût général un peu maniaque prennent tant et trop de place, de place colorée excessivement distrayante, ce jardin est infini ineffable du foliacé.Feuilles de toutes formes
de verts de toute nuance, sorte de pacification sensuelle, mais toujours vert, ramenat au vert

feuilles, leur mystère, se nourrissant de lumière axé sur le solaire, à des millions et millions de kilomètres qui au contraire des fleurs demeurent feuilles jusqu’au bout, sans se transformer, sans devoir passer à une autre formation, comme les fleurs (... ) n’être qu’une étape, préparant à une autre étape.
du moins ne la paraissant pas pareillement, inéluctablement avant de mourir.
Este texto teve uma primeira publicação em L’Ire des vents, ns. 11-12, 1985, p. 115-116.
Em 1986, quase dois anos depois da morte do poeta, será feita uma edição de luxo de tiragem limitada, com ilustração de Zao Wou-Ki, na mesma L’Ire des vents. O poema é de novo retomado em Affrontements, nas edições Gallimard, 1986, p.267-268, e actualmente na edição da Obra Completa, nas edições da Pléiade (3 vols.).
Imbuído de mistério próprio, daí a sedução que exerce sobre o leitor, não chegou a ser preparado para edição pelo próprio Michaux, ao contrário de todos os outros textos que o precederam. O poeta tinha o maior cuidado com as suas publicações, acompanhava de perto tudo o que era feito, mas neste caso faleceu antes de o poder fazer.
Ficam assim, o poema e suas variantes, abertos ao nosso próprio entendimento do que poderiam significar.
Lemos nas Notas do vol. III da edição da obra completa de Henri Michaux na edição da Pléiade, entregue aos cuidados de Raymond Bellour, que o texto teve, como ele diz, “ une histoire chargée, et tout montre que Michaux l’aura corrigé jusqu’au bout”(p. 1858).
A pessoa que o inspirou, Krishna Riboud, mulher de um industrial francês que Michaux conhecia por ser um dos seus grandes coleccionadores, era indiana, de casta brahmane, tendo estudado nos Estados Unidos e vindo a instalar-se em França onde como especialista da arte do têxtil indiano publica vários livros. Tinha concebido um jardim “à indiana”, no centro da sua casa da Av. de Breteuil em Paris, com a ajuda de uma arquitecto amigo, M.Bazelaire. Michaux tinha a maior admiração por esse jardim.
Continuando ainda com as preciosas notas de  Raymond Bellour, encontrou-se nos arquivos do espólio de Michaux uma carta dirigida a Krishna, datada de Setembro de 1984:
“ Ce lieu, (votre jardin) qui m’a tellement et tant d’années différemment émerveillé, je ne pouvais plus retenir de le louer. Il me fallait faire ressentir ce qu’on y éprouve lorsqu’on s’y trouve, faveur accordée à quelques-uns. Il est temps que, supérieur à tant d’autres, il ait sa place en littérature”.
Já no fim, uma pergunta sobre o último verso com que fecha o poema: “le dernier vers pourrait être plutôt ‘beauté en présence de dieux’, qu’en pensez-vous ?”
Os papéis conservados (cartas dirigidas a outros amigos) mostram, como sublinha Bellour, que Michaux hesitou muito quanto à extensão, à forma e ao título que daria ao poema.  (p. 1859).
As diferenças não são, a meu ver, substanciais, a não ser  que os títulos possíveis teriam sido  Jardin de Krishna e que temos a imagem de Beauté a substituir finalmente, em última escolha, a de Jardin en présence des dieux que também tinha ponderado.
De qualquer modo o que ficou no poema, na sua forma estrófica, é o que nos interessa, também a nós, reter.
E o verso da conclusão é, traduzindo:
“Sem efígie, sem pedras gravadas,
BELEZA EM PRESENÇA DOS DEUSES” (Pléiade, vol.III, p.1454).
Os primeiros versos do poema estabelecem a imagem da cidade em que o jardim foi erguido, entre “muros altos”: é uma cidade grande e cinzenta, demasiado populosa, é a cidade de Paris, naquela década de oitenta, já tão parecida com o que é agora.
O jardim ergue-se como forma de lutar contra a asfixia de uma tal cidade.
É um jardim “pouco extenso”, que “exalta/ eleva/ enche” - depreende-se que a alma de quem o habita, ou visita, como é o caso de Michaux.
Ele dissera (na carta a Krishna, que citei acima) que tais visitas eram reservadas a alguns poucos eleitos: de algum modo aludindo ao sentimento de iniciação que a entrada e permanência nele provocariam. Era um jardim especial, no coração da cidade.
Faz apelo a um “longínquo continente”:

 Um continente longínquo é o que ele evoca
lembra
exala
anulando a vizinhança

O Apertado desaperta-se

Ampliando-se
oferecendo-se
jardim doador
Como tendo recebido essa missão
cada ano mais denso
de vegetação inesperada de jactos surpreendentes
e também em extensão de rastejantes
de entrelaçamentos, desdobramentos, apariçes
...de resurgências desvairadas

Através das espécies de porte majestoso
próprio dos climas satisfeitos
ele fala 

Estando embora no coração duma cidade, Paris, num continente que é a Europa , somos de repente mergulhados na Ásia, na Índia, no Oriente da Alma, cuja abundância e generosidade na distribuição dos seus dons é figurada na vegetação densa,  ao mesmo tempo vertical e horizontal (lembrando a união do céu e da terra) desse jardin que “fala”.
O que diz, quando fala?
Evoca as “aspirações insaciáveis da pátria da Ásia”, que nos transportam ao cântico  do “PERMANENTE / do Indizível” (p.1454).
Culminando, nos últimos versos:

Ir mais além
desejos infinitos de mais além

Sem efígie, sem pedras gravadas
BELEZA EM PRESENÇA DOS DEUSES
Em resumo, eis o que diz: a busca do Permanente, do Eterno indizível, sendo a busca da Beleza centrada e concentrada, sem futilidades nem desperdício, nem sequer no excesso de vida que aquela vegetação traz consigo.
É um excesso contido, como o sopro dos Mestres de Yoga que Michaux conheceu na célebre viagem feita nos anos trinta que nos conta em Un Barbare en Asie ( Pléiade, vol.I ).
A epígrafe colocada na descrição da viagem à Índia,Un Barbare En Inde (vol.I, p. 283 e segs.) já diz muito:
“ En Inde, rien à voir, tout à interpréter”.
Cita depois um poema de Kabir, célebre místico e poeta indiano (1440-1518):
Kabir tinha cento e vinte anos e estava a morrer, quando cantou:
Estou embriagado de alegria
da alegria da juventude
os trinta milhôes de deuses estão aqui.
Vou ter com eles- Felicidade! Felicidade!
Atravesso o círculo sagrado...
A viagem começa por Calcutta, “ a cidade mais populosa do Universo”.
Mas, tal como em Paris, a cidade transbordante permite que nela se encontre um Centro, uma Via, - outros caminhos- que levem à presença infinita dos trinta milhões de deuses. Pois o que são eles se não a imagem mesma do universo na sua infinitude que só alguns abarcam, sentem, exprimem?
Michaux não perde o seu olhar de ácido humor e crítica, em muitos dos pormenores que descreve, na sua exasperação:
”Nunca, mas nunca, o Indiano saberá a que ponto exaspera o Europeu.O espectáculo de uma multidão hindú, de uma aldeia hindú, ou mesmo só a atravessar de uma rua...é irritante e odioso” (p. 285).
Continua:
“Olham-vos com um auto-controle, um bloqueio misterioso e, sem que se saiba porquê, dão a impressão de intervir algures em si mesmos de um modo que a nós   seria impossível”( p.285).
Adiante dirá que o Hindú é “ religioso, sente-se ligado a tudo”; e mais, alargando aos outros povos a sua ideia:
“ Árabes, Hindús, até os últimos dos parias, parecem impregnados da ideia da nobreza do homem  (...) Os Europeus, por seu lado, parecem precários,  secundários, transitórios” (p.287).
E para não me alongar mais:
“ Todo o pensamento indiano é mágico.É necessário que um pensamento aja, aja directamente sobre o ser interior, sobre os seres exteriores.
...
As filosofias ocidentais fazem cair o cabelo, encurtam a vida.
A filosofia oriental faz crescer o cabelo e prolonga a vida.” (p.287).
 Michaux conhece e cita os grande textos da espiritualidade hindú: os Upanishad, o Mahâbhârata, o Rig Veda, o Baghavad Gita; de todos retira a lição de uma outra dimensão da alma, a que ele mesmo procurou toda a vida, e se exprime no desejo de “Ir mais além” no final do poema dedicado a Krishna, a indiana com nome de divindade: Krishna e Arjuna são os heróis divino e semi-divino do Baghavad Gita).
Recorda ainda a doutrina de Vivekananda, sábio hindú falecido pouco tempo antes de Michaux fazer a sua viagem: “ele tinha, segundo me afirmaram, atingido a divindade pelos métodos ‘maometano, cristão, boudista, etc.” ( p.289). O que significava que a santidade é um estado aberto a todos os que a procurem, seja qual fôr a religião seguida.
Mas Michaux procurou também outras vias, muito mais perigosas, de ir mais além.
Robert Bréchon, na biografia de Henri Michaux publicada em 2005, HENRI MICHAUX.La Poésie comme Destin abre o seu livro com um poema intitulado Emportez-moi, de 1929, incluído em Mes Propriétés. Levai-me,  em tradução possível. Os primeiros versos já dizem muito do seu desejo, que nunca cessaria, de sair, ir embora, ir para bem longe de uma vida que não a conhecendo, já temia.

Emportez-moi dans une caravelle,
Dans une vieille et douce caravelle,
Dans l’étrave, ou si l’on veut, dans l’écume,
Et perdez-moi, au loin, au loin,

Dans l’attelage d’un autre âge,
....
Emportez-moi, ou plutôt enfouissez-moi.

Assim foi o caminho: entre o fugir e o afundar.
No intervalo, a obra, o dizer infinito do indizível, pela palavra como pela pintura, pelo exercício inclusivé da composição musical, fracturada e fracturante, em experiência única, Poésie pour pouvoir ( 1958 ) feita com Pierre Boulez. Sempre à frente do seu tempo, de que afinal gostava de  se isolar, foi talvez encontrar no abrigo daquele jardim indiano, evocador de outras paisagens mais secretas, o místico centro onde poderia sentir-se “transportado, ou afundado” na onda dos seus poetas mais lidos quando jovem, Rimbaud ( Le Bateau Ivre) Lautréamont ( Les Chants de Maldoror).
Mas aqui teriam lugar outros abismos, outros percursos.

2.
 Nos grandes mitos de fundação - primitivo animismo mágico,  paganismo sumério, asiático em geral, germânico,  greco-romano, monoteísmo judaico-cristão ou muçulmano - o que nos é contado é o nascimento e organização das diversas civilizações, já nos ritos de cada culto o que se define é o pacto estabelecido entre o homem a sua divindade, para garantir, nessa troca, o benefício desejado, em regra alguma forma de ordem, em si e no mundo à sua volta: boa saúde, prosperidade nos seus bens e na sua progenitura.
Muito diferente será o papel do símbolo: imagem primordial ela também, ou não será simbólica, é produto da memória arquetípica, faz a ponte e liberta, mais do que prende, ao contrário de qualquer do ritual, de qualquer culro, mais antigo ou moderno.
Se com a laicização dos espíritos a Igreja ou a Mesquita parecem ter perdido a influência ( o que de resto é muito discutível, os radicais do islamismo estão a mostrar o contrário) - vemos como até para os deístas, racionalistas, no caso dos maçons, o espaço de um templo-substituto, a Loja, se tornou indispensável, havendo também aí um conjunto de rituais a ser cumpridos;  já sem falar dos partidos políticos, com as suas sedes e normas .
Assim, desde os tempos mais remotos que sem mitos, ritos, símbolos, o homem não parece capaz de viver bem.
Poetas como Michaux, pois é dele que estamos falando, beberam onde puderam todo o conhecimento relativo à mente humana, sua e alheia.
A paixão do Conhecimento orientou a sua vida. Talvez pudessemos até falar de Gnose, no seu caso: pois sabe-se como sofreu também, na sua juventude belga, a marca dos místicos mais célebres (Ruysbroeck foi um deles).
A cidade antiga organizava-se entre o templo e o palácio: havia o jardim; havia a horta, as terras cultivadas, a floresta, os lagos e os rios,  mais longe. Mas sempre o jardim ali esteve, se não como realidade imediata, visível e palpável, como imagem sonhada.
Assim se descreve em Gilgamesh o célebre jardim dos deuses :
“À sua frente surgiu o jardim dos deuses, com árvores de pedras preciosas de todas as cores, maravilha de se ver.Havia arvores de rubis, árvores com flores de lapis-lazuli, árvores com cachos de corais gigantes como se fossem tâmaras.Por todo o lado, brilhando em todos os ramos havia jóias enormes: esmeraldas, safiras, hematites, cornalinas, pérolas.Gilgamesh contemplava tudo deslumbrado”.
Este é o jardim que um rei- herói conquistador imagina como prémio de todas as suas batalhas. É um jardim-tesouro, é um jardim que respeita à conquista, aos despojos do outro, e apenas em último lugar à vida eterna. Mas o jardim da vida é um jardim natural, onde crescem plantas e árvores de verdade, e não de pedrarias. Na Jerusalém Celeste o importante são as árvores que dão fruto doze vezes por ano, ou seja todos os meses, sempre. Nesse fruto da vida reside a eternidade, a sua imagem.
O jardim indiano de Michaux é um “jardim doador”: é uma dádiva de vida, permanentemente renovada.Não perde tempo com o detalhe da flôr, ali se vai directamente à essencia, ao mistério da criação. E o continente longínquo, se por um lado é a India, por outro é o lugar da Alma, o espaço turbulento a integrar numa ordem ulterior, superior, no “mais além”.
Robert Bréchon, no cap.VII do seu livro, escreve que Michaux espera da sua viagem ao Oriente “uma lição de moral, uma regra de vida” :
“ É um banho de espiritualidade o que ele retira da Índia, um modelo estético o que encontra na Indonésia, uma nova ideia, muito antiga, da inteligência que vê ao vivo na China”(p.47).
Em Idéogrammes en Chine, obra que dedica a Micheline Kim Chi, que viria a ser  sua segunda mulher, escreverá que a China é um país em que “se meditará sobre os traços de um calígrafo como noutro país se meditará sobre um mantra, sobre a substância, o princípio, ou sobre a Essencia. Caligrafia junto da qual simplesmente ficamos como junto de uma árvore, um rochedo, uma fonte” (ed.Fata Morgana,1975).
Num poema de 1984, Fille de la Montagne, iremos encontrar uma espiritualidade simples, quase infantil na sua singeleza:
uma pequena guardadora de cabras tem a visão de uma bela dama de luz, a quem se oferece.E do encontro com essa Presença diáfana, a jovem regressa “instruída”:
....
Beauté comme connaissance
un degré supérieur de connaissance

Dans le jeune et pur visage, le regard initié,
Miroir d’un Savoir
contemplation du vrai, ignoré des autres

Vie continuée différemment
impregnée
aidée, aidant
LAMPE

lampe enseignante...

A jovem converte os que a visitam, faz milagres, é santificada depois de morrer. Assim acaba esta história que o biógrafo achou interessante recordar, mostrando as preocupações ou os interesses do último ano de vida de Michaux. Com mais um pormenor: “Filha da Montanha” é a tradução do nome indiano de “Pârvâti”, uma deusa filha do Himalaya. Esta referência encontra-se na biografia de Robert Bréchon, mas no vol.III da obra completa de Michaux, com inéditos só mais tarde revelados, encontramos outros fragmentos alusivos a esta Filha da Montanha, talvez ainda mais místicos, porque a paisagem da montanha é mais longamente descrita, o afastamento da confusão e barulho da cidade é mais sublinhado, e o verso alusivo à Beleza define-a como “beatitude” e não como conhecimento:

Au pied d’une paroi rocheuse
dans la montagne

loin des rumeurs,hors des sentiers
une dame diaphane est là, soudainement apparue
belle, la plus belle qui soit

Beauté comme béatitude
Pureté l’a découverte; à la pureté s’est découverte

à une fille qui jamais ne se rendit à la ville
n’aperçut dame aucune
Beauté s’est montrée
parfaite, idéale, diminuée par aucune comparaison
unique

Prières dans les pierres, rêveries, aspirations de l’âme
Qui priait-elle lorsqu’elle priait?
Peut-être que les cieux s’entr’ouvrent
Ils se sont entr’ouverts

Dans la montagne, les cieux sont proches,
de partout reviennent
....
(p.1296-1297)
Se este episódio poético, digamos assim, poderia igualmente ser uma descrição das aparições aos pastorinhos de Fátima, já é diferente a descrição que Michaux nos dá em Le Jardin Exalté das visões que provocava com o consumo de droga. O texto, longo, minucioso no processo descritivo, é publicado em 1983 nas edições Fata Morgana.
Depois de o ler, uma das suas amigas, Joyce Mansour, escreve-lhe: “ J’ai eu très peur en vous lisant. Vous êtes allé si loin sur le chemin du Soufi, n’est-ce pas ? J’ai eu vraiment peur en pensant par òu et comment vous êtes passé. J’ai eu vraiment peur. Vous effleurez des choses si secrètes comme ça, du bout du pinceau. (...)Je vous envie ce voyage-là. J’ai peut-être entrevu l’arbre immobile dans la tourmente, l’arbre furieux dans le silence, loin derrière les gigots et la palissade de la santé quotidienne. Assez pour reconnaître le danger de l’entreprise, la beauté du paysage et la sérénité du voyageur” ( Notas do vol.III, p. 1825-1826 ).
Nas cópias enviadas a alguns outros amigos Michaux altera o título: ao pintor Matta envia : Um jardim de repente, Un Jardin tout soudain; a Jean Starobinski, crítico de arte, escreve: sinon le jardin / du moins la transfiguration: não sendo o jardim ao menos a transfiguração ( Notas, 1826 ).
Trata-se, neste texto, da experiência da exaltação provovocada pela droga na química do cérebro, alterando o estado de consciência, causando a sensação de desprendimento, iluminação, transfiguração que o poeta descreve e deseja. O sonho de um paraíso ao alcance da mão, do êxtase libertador, não passará disso, e é o próprio Michaux quem noutras obras, como Misérable Miracle, Connaissance par les gouffres, denunciará a ilusão, o logro, em que se pode cair. No entanto, segundo os seus biógrafos, embora sempre com cuidado, e acompanhado por médicos amigos na maior parte das vezes,nunca deixará a droga por completo.
A inocência da infância pela qual o poeta também se interessou, observando desenhos de crianças, imagens, narrativas, até como as da iluminação da pequena pastora, é um mundo perdido, e que nem sequer a droga permite recuperar.
Essa inocência, em Michaux como em Celan, que foi seu amigo e admirador, não faz parte da consciência íntima do poeta moderno. O mesmo se verifica com Fernando Pessoa: a infância é um brinquedo que se partiu ( alguém partiu) e perdeu para sempre.Terá memória, mas não tem arranjo.
Claude Gallimard escreve a Michaux , no dia 24 de Setembro de 1984, poucas semanas antes da su morte:
 “ J’ai le sentiment que cette oeuvre va encore plus loin dans l’exploration des limites humaines. Cette approche savante, méthodique, soucieuse de réalité et de profondeur nous fait ainsi découvrir la vie dans ce qu’elle a de plus difficile. Mais une grande indulgence de la nature humaine, une sorte d’humour viennent apporter à votre lecteur de vrais moments d’émotion, que j’ai personnellement ressentis, même si je les décris avec maladresse” ( vol III,Notas, p. 1811).
O volume em que o texto se integra tem por título Déplacements,dégaments, e é publicado na Gallimard em 1985, com tiragem de 8000 exemplares. Ainda foi totalmente organizado pelo poeta, embora só aparecesse depois da sua morte.Mais uma vez o título indica o sentido: poderíamos escolher para tradução: Deslocações, libertações.
Poeta de alma deslocada, nas viagens de alteração de consciência que fazia, na escrita como na vida, procurou a libertação, o caminho do centro ( o Jardim indiano, denso e verde ) onde a Luz o acolhesse ao fundo do corredor.
Michaux termina com as seguintes palavras:
“ ... un coeur venu aux arbres, qu’on ne leur connaissait pas, qu’ils nous avaient caché, issu d’un grand coeur végétal (on eût dit planétaire ), coeur participant à tout, retrouvé, enfin perçu, audible aux possédés de l’émotion souveraine, celle qui tout accompagne, qui emporte l’Univers” (vol.III,p.1357-1362 ).

3.
 A primeira mulher de Michaux, Marie-Louise Termet, que conhece em1937, tem em 1948 um terrível acidente de que virá a falecer: morre queimada. É deste modo que Michaux descreve o seu sofrimento e como teve absoluta necessidade de o transportar para uma pintura de rostos deformados, distorcidos, emergindo de um nada abismal, sem remissão:
“Un accident. Grave. Très grave. Touchant une personne qui m’est proche. Tout s’arrête. Ça n’a plus beaucoup de sens, le réel, l’autre réel, le réel de distraction, qui n’a pas affaire à la Mort. Dans un hôpital le sort ne se décide pas. Ni à guérison, ni à abandon.” (Emergences-Resurgences,Skira, 1972)
Este texto acompanha um conjunto de aguarelas e tintas, em que rostos desfigurados por cicatrizes atrozes operam nele a necessária catárse do desgosto, da impotência, da dôr. Ao tempo do encontro com Mrie-Louise já o poeta se interessava pela religião, pelos místicos do oriente e do ocidente. Faz parte da direcção da revista Hermes, onde colaboram, entre outros, Cioran,Heidegger, etc.
No seu artigo sobe o Vazio, “Ineffable Vide” ( in Hermes, LE VIDE, Expérience spirituelle en occident et en Orient, n.6 ) escreve Michaux:
“ Quelque chose partout, on ne sait où, rétrocède. Une impression aérienne remplace l’impression du compact. La matière a cessé d’être indiscutable.(...) Le profane alors se retire.Rien ne le retient plus.C’est le tour du sacré maintenant, de l’immateriel (...) 
 La participation au divin aussitôt est offerte à toute foi. D’un coup, en cette minute, est reçue la Révélation magique de l’insignifiance de la vie courante”.
O Vazio, que também é, ao mesmo tempo, completude carregada de energia, é definido como
“ Vazio beatífico.
Vazio que é libertação.
Sem fim, convertendo ao que é Sem Fim.”
Passará bastante tempo até que Michaux consiga sentir-se liberto, não pela via mística, ainda que essa lhe interesse sempre, mas pela via da criação pictórica e poética.
A  descrição do hospital , onde vê muito sofrimento e pouca ajuda à velha miséria da condição humana, atira-nos para as imagens da cidade de Paris que encontramos em Rilke, nos Cadernos de Malte Laurids Brigge: cidade onde circulam pessoas de rosto desfigurado, cabeças que se descarnam ao esconderem-se nas mãos.Verdadeiras marcas do grito expressionista, que no entanto não será a marca de estilo de Michaux.
Este, é certo que com alguma ajuda artificial, ora de umas drogas  ora de outras, liberta-se de facto e a prova será dada pelas últimas publicações, já póstumas.

Se o Jardim ocupa lugar central no seu imaginário poético, não menos interessante é, por contraste, o que ele imagina ser uma cidade possível, em Voyage en Grande Garabagne (1936, reed. em Ailleurs, 1948 ) . Na descrição da moral e costumes dos Emanglons lida-se com o modo de “ajudar” a chegar ao fim da vida um dos habitantes que respire mal.
É curioso que Michaux, que tem um sopro cardíaco e se queixou sempre de uma saúde frágil ( os seus biógrafos dizem que ele era hipocondríaco ) venha precisamente, com ironia, desenhar uma morte simplificada, mesmo a calhar para quem não respire.:
“Quando um Emanglon respira mal, eles preferem não o ver  viver. Pois acham que ele não pode atingir a verdadeira alegria por muito que se esforce. O doente, pela simpatia natural dos homens, só poderá trazer confusão à respiração de uma cidade inteira.Por isso, sem que haja qualquer aborrecimento, asfixiam-no”.
O processo, no campo, é mais rude e directo, mas na cidade terá outra delicadeza.
Assim:
“ Para asfixiar escolhe-se uma bela jovem, virgem (...) Fazer com que um doente se extinga suavemente, entre mãos agradáveis é, dizem eles, um excelente preságio de devoção aos filhos, de caridade aos pobres, e quanto aos bens, de uma gestão segura. Num instante encontra mais maridos do que os necessários e é-lhe permitido que seja ela a escolher.
A dificuldade reside em ser doce e ao mesmo tempo apertar com força.
Uma coquette não o conseguirá, uma brutal também não.São necessárias qualidades de fundo, uma natureza verdadeiramente feminina”.

Os empurrões na consciência, nos limites do ser, antecipam a seu modo a desfiguração que a guerra iria trazer  ao mundo e à França da cultura muito em particular.
Estavam mortas as utopias, se é que jamais tinham chegado a existir. No caso de Michaux a utopia permaneceria a da criação: poética, pictórica.
Como observa Bellour nas notas ao conjunto de viagens imaginárias por espaços imaginários, no conjunto incluído em Ailleurs, Michaux “tinha a arte singular de nos fazer sentir como estranhas coisas naturais e como naturais as coisas estranhas (vol.II, p. 1040 ).
Um sentimento perturbador a que Paul Celan, que se reconhece como amigo e discípulo de Michaux dará expressão pungente em tudo o que escreveu até se suicidar, em 1970 .
Michaux escreverá, sobre ele, um texto de compaixão sentida: Sur Le Chemin De La Vie, Paul Celan...:
“No caminho da vida Paul Celan encontrou grandes obstáculos, muito grandes, alguns quase inultrapassáveis, um deles verdadeiramente inultrapassável.Foi neste período penoso que nos encontrámos...sem nos encontrar.Falámos para não ter de falar. Era demasiado grave  nele aquilo que era grave. Não deixaria que penetrasse aí.(...) Tinha um sorriso, muitas vezes um sorriso que tinha passado por muitos naufrágios.(...) A cura, vinda da escrita, não era suficiente, não foi suficiente”. ( vol.III,p.1398-1399 ).

4.
Li Michaux pela primeira vez aos quinze anos, em Paris. Deslumbrou-me a sua inspiração desenfreada. Ainda hoje o livro mais antigo que possuo é o da pequena edição antológica de René Bertelé para os Poètes d’Aujourd’hui, das ed. Seghers. Nunca mais deixei de o ler, até hoje, com a possibilidade agora da sua obra completa.
Na década de sessenta eu lia Jacques Prévert, Boris Vian, Michaux.
Já lera Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, entre outros. Atraía-me em Michaux o seu humor cortante, meio surrealista meio grotesco e sobretudo a sua infinita capacidade de desarticular ideias e palavras, ajudando a que nos distanciássemos da matéria mais íntima do texto. Porque em todos os textos há uma matéria íntima, um coração que se esconde.
Só mais tarde me interessaram os seus outros textos, em que rompia as fronteiras da consciência, descrevendo experiências que até ele só se podiam encontrar na grande literatura dos místicos, orientais ou ocidentais.
Eu estava também, não a fazer aquele tipo de experiências, mas a estudar essas matérias.
Guardo ainda a carta, datada de 1969, em que me envia um tiré-à-part do seu artigo na revista Hermes, referido acima.
Foi também ele quem, noutra carta, me indicou Etienne Perrot, alquimista junguiano, cujos seminários fui seguindo ao longo de muitos anos de estudo apaixonado. Na doutrina arquetípica de Jung e de Perrot me parecia ter encontrado um possível caminho para os destinos poéticos, oníricos, da escrita (de toda a escrita )  da alma.
Guardo ainda na memória um outro episódio, da estadia de Michaux em Lisboa, onde a sua pintura foi apresentada, já depois da Revolução de Abril. Comentou, discreto mas com alguma perplexidade no olhar, o convite que lhe fizera Natália Correia para tomar chá em sua casa:
 “A porta foi-me aberta por uma criada, de farda, e ela recebeu-me quase nua, estendida num sofá”.
Fiquei estarrecida, sem palavras. Ele não disse mais nada.
Não cheguei nunca a falar com Natália Correia sobre este assunto; fui mais discreta do que Michaux foi na altura...
Lendo agora a descrição que Bréchon biógrafo faz do seu amigo, de quem, como diz, nunca chegou a ser íntimo no pleno sentido da palavra, percebo melhor o seu sentimento de respeito quase atemorizado nesses tempos. Eu também me senti atemorizada perante aquele génio que eu idolatrava, devorando o que ele escrevia, tentando perceber o que ele de verdade, por trás das palavras dizia. Mas o que ele dizia era precisamente a Palavra e só a Palavra.
Bréchon conta que Michaux o arrebatou pela obra, tanto quanto pela personalidade, só aparentemente frágil; descreve-o com tendo uma presença “ligeira e diáfana, cortada no entanto por gargalhadas, sussurros, risos abafados”. Mas apontou como tema central de toda sua obra a “preocupação ontológica”.
A biografia termina com a declaração da enorme influência que obra de Michaux teve na sua própria poesia. Bréchon é, também ele, poeta: nasceu em 1939, somos, ele e eu, da mesma geração, não admira que tenhamos um pouco o mesmo gosto nas nossas paixões literárias. Em mim, a dado momento da minha vida, a influência de Michaux foi igualmente grande.Tinha então lido todos os seus livros, acompanhado a maior parte das suas exposições de pintura, em Paris, e também eu entrei “em diálogo” com a sua obra, dedicando-lhe um poema, Henri Michaux, Voyages, que foi publicado na Colóquio-Artes por José Augusto França, com a reprodução de uma das célebres aguarelas dos rostos vindos da sombra, daquele Vazio que ele escrevia, pintava, compunha ou desejava compôr, para preencher.
Leio agora com outra compreensão, que só a idade permite, os belos poemas do seu fim de vida, já aos 85 anos, tanto dos jardins exaltados como do jardim indiano. Julgo que são ambos a expressão de um momento especial,  concedido pelos deuses que regem o segredo das almas, aqueles mesmos a que ele se referia, na carta a Krishna, quando hesitava sobre o último verso , Jardin en présence des dieux...
O Jardim Indiano é  o Jardim exaltado, mas já sem necessidade de romper limites de qualquer espécie, corporais ou mentais, sendo que “tudo é um”.
É  uma escolha (não um escolho) e uma recusa, ao mesmo tempo. Escolha de uma paz que afinal mereceu, fez tudo o que pôde para alargar os limites do conhecimento e da consciência, fez tudo o que pôde para nos transmitir essas experiências.E recusa do frenesim que a “cidade populosa” ( de muitas exigências que o sufocavam, como aos velhos doentes  de Garabagne ) lhe tinha imposto para percorrer uma parte do caminho que lhe conferiu o sucesso desejado. Michaux “viu” o mundo, a Europa, a época, como diz no poema...e não gostou do que viu. Como grande artista que era conheceu, sobretudo enquanto pintor, um enorme sucesso junto de críticos e coleccionadores. A sua pintura era mágica, ele entregava-se às formas que surgiam no papel ou na tela como um místico desenharia os seus mandalas, recitaria os seus mantras, contemplaria as suas visões salvíficas.

Podemos agora imaginá-lo, pela mão de Kabir, a atravessar o círculo sagrado e a descobrir ao centro, finalmente,  a “musical” e “dominante” árvore da Vida:
 “...árvore de dupla copa, cheia de folhagem, agitando-se...em movimentos desiguais, abraçada por uma brisa apaixonada, num conjunto espantoso”(...) O jardim transmutado, de repente, em jardim paradisíaco...e eu diante dele, a poucos passos e com tanta naturalidade que não sabia há quanto tempo ali estava,  no Jardim dos Jardins, aquele em que não se pensa em mais nada, que nos preenche e que por nada deste mundo, nem sequer pelo tempo, pode ser ultrapassado, um verdadeiro jardim do paraíso” ( Le Jardin Exalté, ed. Pléiade, vol.III, p.1360 ).

 Y.K.Centeno, 2008-2018
Notas
1. Fortíssima, esta imagem da árvore de copa “dupla” : remete ao mesmo tempo para alguma gravura ou texto alquímico que Michaux tenha visto, mas sobretudo para as duas Árvores do Génesis, a do Conhecimento e a da Vida, que ele funde numa única, sendo esse o mistério da Verdade a que acedeu e nos transmite. 

Friday, January 19, 2018

Os olhos de Mariana ...

Mariana Viana: Os seus Passos em Volta de Herberto Helder
 Sem pretender fazer uma biografia do poeta, pois são muitos os testemunhos que já foram dados pelos seus amigos e contemporâneos, é apesar de tudo útil recordar às novas gerações uma parte do seu percurso intelectual. Viveu o surrealismo português com alguns dos criadores mais marcantes, como por exemplo Mário Cesariny, ou mais desviantes como Luís Pacheco.
Tanto em Portugal como no estrangeiro viveu uma vida de aventura, entregue a muitos trabalhos que lhe permitiram conhecer por dentro o submundo dos explorados, do operariado, e até o dos prostíbulos (de Antuérpia) de que a dada altura se fez guia entre marinheiros que ali chegavam,  para sobreviver.Vivia assim entre a luz e a sombra, o dia e a noite, na penumbra das palavras contadas.
Ler OS PASSOS EM VOLTA, ou APRESENTAÇÃO DO ROSTO, exige que se reconheça que houve ali muito caminho andado: o da vida que empurra e o de um imaginário à solta que a mão livre e as associações ainda mais livres da Escola freudiana de Breton iriam ampliar até à dimensão do que chamamos Génio Criador, também no século XX, o de todas as inovaçõs e rupturas de modelos e linguagens.
Há uma genialidade própria, na obra de Herberto Helder, na poesia como nesta prosa quase hermética de tão densa, porque a sua escrita é permanentemente atravessada pela vida vivida, mais até do que sonhada. Nele o sonho é uma provocação, diferente do que lemos em Pessoa ( o sonho como refúgio e absolvição). A Obra de Herberto é uma obra de viagem, feita de passos em volta e muito caminhar por dentro, como em Rimbaud ou em Lautréamont, os outros criadores que me ocorrem quando penso no nosso poeta.
Era grande a sua formação cultural, apesar dos trabalhos “menores“ que lhe permitiam, a espaços, ganhar a vida. Mas era uma vida ganha sem favor, feita de grande liberdade e independência. Estudou Direito em Coimbra, Letras em Lisboa, e depois, por um tempo, saiu do seu país. Aí a vida caiu-lhe em cima, e ele em cima da vida.
Em 1963 publica OS PASSOS EM VOLTA, em 1966 a APRESENTAÇÃO DO ROSTO.
O Modernismo experimentalista já dava sinais, em Portugal, em pequenos círculos de poetas amigos que se liam entre si, enquanto os assombrava o fantasma da Censura.
A ortodoxia literária mantinha por isso uma presença indiscutível, e os autores que surgiam, inovando, tinham muito que esperar, enquanto caminhavam. Eram passos em volta...de si mesmos, dentro dum país ainda muito hostil.
Como abordar então, na crítica, no meio académico, ou na arte da ilustração, um autor assim, feito de rasgos ora líricos ora desafiantes, ou mesmo chocantes para os leitores aprisionados num imaginário rudimentar, sem verdadeira abertura intelectual? Em Portugal, naqueles anos, pouco ou nada se lia que trouxesse marcas de diferença. Ou lia-se às escondidas, bem como muitas vezes se escrevia mais nas entrelinhas do que directamente nas linhas...

O interesse de uma criadora como Mariana Viana, propondo-se ilustrar os Passos em Volta, diz muito da mudança dos tempos e da permanência da Obra de um autor que há anos se tinha remetido a um desaparecimento quase total dos meios literários, por cansaço e por desinteresse.
Na sua escrita densa batia um ritmo que era de Joyce, nos pormenores descritos, em cada canto, de cada lugar, e rasgavam--se os horizontes de um Álvaro de Campos ou de um Rimbaud frenético e ávido de embriaguez. Uma prosa interpelante, e tentadora.
Mariana Viana, tão de outra geração, a dos jovens que já cresceram livres e entregues às suas escolhas, sem impedimento,
soube destacar, de cada conto, de cada canto, de cada recanto mais sombrio de alma, a pulsão que guiava aquela escrita: por vezes o negro mais perverso, ou pelo contrário, outras vezes, o sopro condutor mais luminoso: passos em volta, de facto, de um tumulto central, cuja explosão podia ser temida, como a de um buraco negro que explodisse, contrariando a sua natureza.

 Mariana Viana buscou a animalidade de arquétipos como o dos cães, como o da aranha-mãe, tão significativo de uma relação com o feminino nunca por completo resolvida, ou ainda como o dos peixes, proliferando de várias formas da qual o coelocanto é a mais expressiva, remetendo para o tubarão-fêmea de Lautréamont, ou a baleia de Moby Dick, de Melville, figuração da impossível luta, desigual, do homem, com os elementos de que ele mesmo faz parte integrante. Lutar é desintegrar-se. Mas o poeta, eterno marinheiro, nada teme.
Terra e água surgem, nesta obra, como elementos primordiais: o espaço por onde se caminhou, por onde se viajou, por onde o corpo tantas vezes se perdeu para que a força da alma se encontrasse.
Para os cães, figurações divinas desde os antigos egípcios, pintou a artista uma Árvore que podia ser da Vida. Introduziu, com intuição criadora, o elemento Ar no conjunto dos animais escolhidos. Espiritualizou a energia dos cães, nesse seu quadro, em que até algumas cabeças voam, como que desejando soltar-se da forte coluna que os prendia ao real quotidiano. Não pertencem a um qualquer Hades conhecido, são antes ideias-força (como gosta de dizer o filósofo José Gil) que num vôo onírico de facto se libertam.

De que modo pode um ilustrador abordar a obra que escolheu? Julgo que de todos os modos que o inspirem, à medida que vai lendo e meditando, que é como quem diz ouvindo, a voz que veio de um outro. E no caso de Herberto, a quem se aplicaria facilmente, com sua aprovação, o célebre Je est un autre, de Rimbaud, por maioria de razão.
Ilustra-se como alter-ego, como reinvenção da obra que é dada a conhecer.
Daí que o recurso a uma prática onírica, em Mariana Viana, complete de modo perfeito a figuração arquetípica, quase sempre, da narrativa que flui.
Herberto Helder, aqui, na prosa como em tantos poemas, afunda o pensamento e o seu dizer numa torrente de consciência avassaladora para quem lê, e mais ainda para quem deseja que se visualize a escrita e o escrito, numa ilustração adequada: que não limite, que redescubra a raiz primordial e a amplie, abrindo espaços e tempos no nosso imaginário.

Há nos quadros de Mariana Viana um supreendente Bestiário, quase ao modo das descrições medievais, mas na verdade resultante da muita cultura actual, surrealista e post-moderna da pintora, que não deixa de ser impressionante, e nos força por vezes a revisitar o texto.
Peixes que nos atordoam, soprados, voadores, aranhas que assustam, na representação tão evidente do feminino negado, e em todos as formas desenhadas uma espécie de fina alusão, uma  ironia feroz, contraditória porque quase transparente, que distancia quem olha, como no texto ( ao modo brechtiano) o dizer do narrador nos distancia dele mesmo e do mundo que narra.
Herberto Helder não escreve para que o sigamos, mas para que nos distanciemos.
E Mariana Viana, nas escolhas que fez não quis afirmações, não quis tranquilizar, mas deixar em aberto, sobre o branco desafiador da folha que teve em frente, um mundo imaginário, carregado de sentidos, portador dos elementos base dos textos que foi lendo.
Tomemos como exemplo a TEORIA DAS CORES:
Mariana reúne aqui, como numa súmula do dito, do visto e revisto, ao modo alquímico dos sábios mais antigos, o Sem-Fundo de que falavam Boehme, no século XVII e Paul Celan, no nosso tempo, o grande peixe abissal, do Antigo Testamento,
de boca gigantesca deixando ver as formas da criação futura, já presente, e no repuxo expelido da cabeça mais outro turbilhão, um cardume de peixes, a sublinhar deste modo que o elemento em que a obra mais se manifesta é o da Água primordial, onde tudo se forma e de onde toda a futura vida nasceu e nascerá.
Entre o poeta e a mão que o ilustrou: uma fusão de alquimista, ele que num pequeníssimo texto de 1978 ( O CORPO  O LUXO  A OBRA) alude no fim à Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto, mostrando que sabe do que fala, quando escreve, tal como Mariana sabe do que encontra, quando ao pintar des-articula, desmonta e por fim nos revela nas imagens os mais ocultos segredos.





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