Tuesday, April 28, 2020

Peter Levitt, uma centena de borboletas, trad. Sérgio Ninguém, ed. Eufeme, 2020

Recebi esta edição bilingue da EUFEME, com as traduções de Sérgio Ninguém de um conjunto de Haikai de Peter Levitt, autor que não conhecia e que seduz por várias razões: a escolha da beleza dos Haikai, em primeiro lugar, e em segundo a fidelidade que demonstra em relação às doutrinas do Tao, o Caminho, The Way, - que deveríamos, de seguida ir ler, se não o fizemos já, no célebre Tao Te King (uso a tradução francesa de Étienne Perrot, mas há várias, excelentes, em inglês).
Esta centena de borboletas, têm também elas, o seu significado simbólico: pertencem a uma esfera de beleza e leveza, tanto poisam na flôr como levantam vôo, seguindo para um céu pleno, misterioso, onde abunda um luar que em silêncio acompanha a meditação do poeta:
1.
Trazes-me um maço de poemas.
A lua levanta-se num,
põe-se noutro,
e há flores espalhadas
entre as demais,
molhadas na erva recente.
Em troca fico sentado sem pensar, dias a fim.

Fiz uma ou outra pequena mudança na tradução do Sérgio, mas que é na mesma uma homenagem à sua interpretação. Sem ele a tradução não existiria.
Neste poema a entrega à meditação do Tao, o Caminho, que se alcança  ou se persegue pela via da contemplação, da ausência de ruído que o fluir do pensamento provoca, ficou bem expressa. E do modo mais belo, o do maço de poemas.
2.
quatrocentos pelos de um pincel
pintam uma folha de bambú
a pincelada dura dez mil anos

O número 100, o número 10.000, significam a abundância da existência, a vastidão do universo, para o qual o Tao nos chama a atenção. E a arte, como o universo, é a forma de eternidade concedida ao homem, no seu caminho.
No seu pincel, na finura do ideograma que desenha, se condensa o que há de espiritualidade a descobrir. O Espírito é eterno, possa embora o bambú em que se materializou apodrecer.
3.
Esta água corre o ano todo
mesmo no Verão
sem destino.
Na boca do rio
as pessoas reúnem-se para a beber.

Cumprem-se nestes versos duas das normas que definem o Haiku, e que é a alusão a um dos elementos (são cinco na China, a madeira é o quinto): água, terra, céu, fogo, ou ainda,  a referência às estações do ano, Verão, Inverno, Primavera, Outono.
Atrás o bambú seria emanação da terra, ou da madeira; aqui temos a água e o Verão, mas a água corre o ano todo, ou seja, abarca o todo do tempo que se vive.
No número 16 encontramos uma alusão muito especial ao Vazio que é a aproximação do indicível Tao.
Eis no original de Peter Levitt:
The page is full of words
the well is full of water
night full of dreams
all this
empty my heart.

A arte de condensar, na pincelada ( que imaginamos) como no dizer, leva-nos à meditação do Vazio no coração do artista. As muitas palavras na página, o poço cheio de água, a noite cheia de sonhos - são tudo o que lhe esvazia o coração. Esse Vazio é um dos mitos nomes do Tao, a Via, o caminho.
A meditação desta doutrina é mais metafísica do que mística, e a criação que no Haiku reúne conceito e imagem, é-lhe perfeitamente adequada. É o que encontro no nº40, que de novo deixo no original de Peter Levitt:
No life but this one.
Tall grasses
bow in the wind.
Só uma vida.
Ervas altas
curvam-se no vento.

O Tao exprime a vivência do momento, a poesia taoísta é resultado do Presente, no interior do Tempo eterno, do Ser que sendo embora luminoso contém em si o oposto da treva, como lemos no poema 42:
Antes do amanhecer
trocamos a luz de um
mundo de sonho
pela escuridão de outro.

O sábio que medita opera em silêncio a fusão de ambos.
Outro dos grandes livros do taoísmo, o Yi King, desenvolve, nos seus 64 hexagramas, as várias dimensões da vida de quem o consulta, a pessoal e sua circunstância, a social, condicionada também ela pelos comportamentos da comunidade, e a política, que ordena seguindo o modelo celeste o caos que de outro modo destruiria a humanidade.
São livros da sabedoria mais antiga, que no século XX foram encontrando tradutores e estudiosos e que neste momento estão à nossa disposição. 
Agradeçamos à EUFEME a generosidade de lembrar.
86
Um portão aberto-
um campo vazio-
quem quer avançar?


   


Saturday, April 11, 2020

João de Mancelos, os Haikai

Num post mais antigo sublinhei a forma poética mais livre, mais despojada, que encontramos nos criadores de hoje em dia, que já viveram literariamente os Modernistas, Pessoa, Almada, ou os dos anos sessenta, libertários e criativos como um Herberto Helder, um Alexandre O'Neil, Alberto Pimenta, entre outros.
Tenho nas mãos o mais recente livro de poesia de João de Mancelos e encontro uma relação tranquila com um dizer de marca oriental que corresponde a uma outra forma de evolução, à medida que o pensamento taoísta se vai divulgando entre nós, pelas artes marciais, de raiz mística,  e pelos hábitos culinários que nos vão habituando a sabores ora mais puros ora mais subtis e requintados.
 A produção poética, pela via das formas elípticas, condensando em três ou no máximo quatro versos, ideia e imagem, o que é mais natural numa escrita ideográfica, como a chinesa, também tem feito o seu caminho, e deparo agora com um belo livro de João de Mancelos, um livro de Haikai, poesia depurada, evocando nas suas 5 partes momentos especiais em que se demora para os iluminar. A memória, mais antiga ou mais recente ocupa um lugar especial. 
Um Haiku (a forma singular do plural Haikai) é uma condensação de um súbito momento vivido, de contemplação e revelação ao mesmo tempo.
Vive-se hoje em dia muito depressa e mal. O tempo é devorado por uma multiplicidade de apelos e chamamentos que impedem o silêncio e o sossego que se devia conservar nalgum canto da alma. A tirania da imagem, em permanente actualização/exposição, colide com o silêncio, com a contemplação, o retiro onde a criação genuína ( a iluminação) se pode verificar. 
Agora castigados, confinados à força num espaço limitado, talvez possamos apreender a beleza simples das situações descritas neste livro.
São 5 os momentos escolhidos ( e também o 5 tem uma dimensão simbólica no pensamento oriental: é a madeira, o 5º elemento que encontramos nos hexagramas do Yi King. Na alquimia ocidental referem-se apenas 4: a terra, o fogo, o ar, a água. Mas no Yi King encontraremos o poço com o seu balde de madeira ( que nos traz a água que é de vida) ou a árvore, com a raiz e o   tronco,  fortes suportes que ligam céu e terra. Há um lirismo panteísta na poesia dos cultores de Haikai, como Issa, o meu preferido, e outros (aqui remeto para a edição completa da poesia oriental chinesa, da Pléiade, com excelentes traduções para quem, como eu, não pode ler no original) ou Bashô com a célebre rã que se tornou emblemática, e em geral todos citam.
Nas cinco partes em que divide o livro, João de Mancelos faz, um pouco à maneira de Proust, uma recuperação dos momentos da sua vida vivida, da adolescência ( em que quase cada poema respeita uma das normas desta prática,  titulando os meses em que situa os versos ) até ao momento em que escreve, já distanciado das paixões iniciais: as Memórias, "pássaros invisíveis", o Silêncio (forçoso seria neste contexto, aludir ao silêncio), Boca a Boca ( o desejo, a sua finitude), e finalmente a meditação da escrita, nos Poemas Do Lume.
Há que ler tudo, para que o livro no seu todo nos envolva. Abriu com um beijo inacabado, como são todos os primeiros beijos dos amantes de que também Rilke falava: na juventude só amores impossíveis.
Mas termino com o último trigrama, com uma vida já amadurecida, e sob outras influências (Celan, talvez?) e o impulso que leva, no poema, ao desejo mais nú, mais despojado, que só o silêncio permite:
desce os degraus
desce os degraus,
poema a poema,
até ao silêncio.
(2020)