Saturday, August 27, 2016

O Morcego do Vale

Escrevi este conto para ser lido à noite, no escuro do Alentejo, pelas netas...
Aqui fica, um dia será ilustrado....
O MORCEGO DO VALE

Era uma vez um Príncipe...

Reparem, muitas histórias começam assim, com Era uma vez, e a seguir um Rei, ou Rainha, ou Príncipe ou Princesa...
Fazem-nos entrar num mundo de encantamento, onde tudo pode acontecer, de bom ou de mau.
Mas preferimos que tudo o que venha a acontecer não seja assim tão mau...
Dizemos que as histórias, se possível, devem ter um final feliz. Mas claro, há muitos modos de felicidade, há muitas maneiras de acabar uma história. Por vezes o final da história escapa ao que tínhamos pensado, e a história, com os seus príncipes e princesas, acaba como entende e nada podemos fazer contra isso.
Por exemplo, na história da Casinha de Chocolate, os meninos, depois de matarem a bruxa má, empurrando-a para dentro do fogão carregado de lenha, voltam para casa. Mas não teriam gostado mais, se calhar, de ficar ali a comer todo o chocolate que havia por dentro e por fora da casa? Eu ficava ali um bocadinho a comer chocolate! Mas claro, eu não estava  nessa história, não podia fazer nada, as histórias são assim mesmo, como cada um gosta de as contar.

Voltando ao nosso Príncipe:
Era uma vez um Príncipe que resolveu sair do seu palácio na cidade, porque a cidade se tinha tornado tão grande e tão barulhenta que não o deixava ouvir o canto dos seus pássaro preferidos no jardim.
O jardim era grande, mas a cidade com o seu barulho de carros, autocarros e  aviões tinha-se tornado ainda maior : ensurdecedora.
Os melros apareciam ao fim da tarde, mas o Príncipe não dava por eles, e era pena. Dos rouxinóis nem se fala, andavam muito ofendidos, por já não conseguirem que se ouvisse os maravilhosos trinados de tenor e mesmo de contratenor, chilreios ainda mais raros.

O Príncipe podia ter pedido ao Rei que multasse ou mesmo proibisse a entrada de tanto carro e autocarro na cidade. As pessoas que andassem de metro, um transporte mais limpo, dizia-se, e mais rápido. E os Reis podiam mandar o que quisessem: eram reis...
Mas não.
Preferiu ir-se embora para longe.   Sendo um Príncipe do ocidente preferiu procurar o oriente.

Saiu do palácio às escondidas, numa bela noite de luar, sem dizer nada a ninguém, para que não insistissem com ele: fica, meu filho, fica, veremos o que se pode fazer, para ouvires melhor os pássaros do jardim. Repara, eles não se foram embora, ficaram e cantam, aguardam...
Mas o Príncipe era impaciente, não queria esperar e foi-se mesmo embora.

O Rei não viveria sozinho. No palácio havia ainda a Rainha, a pequena Princesa de belas tranças compridas que ele gostava de puxar, havia ainda o Preceptor, um maçador que lhe dava aulas, falava, falava, nunca os ouvia a ele e a irmã, nunca os deixava espreitar pela janela, nunca os deixava perguntar coisa nenhuma, se tinham percebido, se era preciso explicar um pouco melhor, enfim. O que o Preceptor gostava era de fazer queixa ao Rei e de os pôr de castigo, proibindo-os de brincar lá fora no jardim. Ora o jardim era a alegria do Príncipe.

 Mas aqui tenho de dar uma opinião:
Os meninos, sejam Príncipes ou Princesas, devem todos estudar, estudar como deve ser, aprender a ler, a escrever bem, a contar, sabendo as tabuadas de cor e tudo o mais que fôr preciso, para não crescerem sem educação, sem inteligência, sem imaginação e sem competência  (o que mais  tarde pode criar  grandes dificuldades na vida).
A vida não é só feita de rosas, há muitos espinhos por aí espalhados.
O Preceptor só fazia mal em ser queixinhas. Esse é um grande defeito que ele podia corrigir. Talvez com tempo.

A noite em que o Príncipe fugiu era uma noite de luar, o céu parecia de veludo.
Recordando as aulas de astronomia ( afinal nem tudo era mau nas aulas do Preceptor ) procurou orientar-se pelas estrelas : queria seguir o caminho das montanhas que se encontravam a leste. A sua busca era do oriente.
Andou e andou, durante dias e dias, até gastar os sapatos que trouxera calçados do palácio.Tinha dinheiro no bolso, comprou botas de andarilho. Assim ficava melhor.

Bebeu água das fontes e riachos, comeu fruta das árvores do caminho, até que chegou, sem saber como, a um vale enevoado, escondido entre duas montanhas tão altas que não seria fácil que o procurassem ali.
É aqui mesmo que fico : pensou, disse, e melhor o fez.
Com os ramos das árvores ergueu uma casa de troncos de madeira. Fez-lhe um tecto de canas de bambú, que depois cobriu com  folhas grandes de bananeira. Quando tinha fome ia comendo bananas, um óptimo alimento, que alguns macacos que por ali andavam também gostavam de comer.
Não sei se já disse, o Príncipe agora estava no oriente.
Não havendo mais ninguém a viver à sua volta, o Príncipe não precisava de fazer portas nem janelas.Tudo era, na casa, um belo espaço aberto, onde se sentiria plenamente livre e realizado. A temperatura era sempre amena, só acendia lenha para cozinhar alguma erva, algum legume ou raiz que lhe viesse à mão.

Interrompo oura vez:
Será possível alguém viver só, para sempre, e  julgar-se feliz e realizado? Não precisaremos dos outros, do seu olhar, da suas reacções, para percebermos melhor o que somos de verdade, o que fazemos da nossa vida? Não há histórias felizes sem que possamos somar mais alguém e mais alguma coisa à nossa vida.

Continuando, com o Príncipe:
De verdade ele sentia-se bem assim, mergulhado na natureza, naquele vale profundo, de vegetação tropical, abundante, que o escondia por completo.
Não tinha saudades do palácio e ainda menos da agitação barulhenta da cidade de que fugira à sucapa.
Ah, mas sentia falta do canto dos seus pássaros.
Pena que não fossem aves migratórias, para que o pudessem seguir...mas não. Melro é melro, rouxinol é rouxinol, não há nada a fazer. Ficaram lá, com os seus outros companheiros. Os pavões, por exemplo. Mas ele detestava o grito dos pavões.

Teve então uma ideia.
Procurou uma cana com que fez uma flauta.
Ao nascer e ao pôr-do-sol sentava-se junto à casa, tocando as melodias de que se lembrava, algumas de suaves trinados, como os do rouxinol, outras mais complicadas, mas todas do seu agrado, fazendo recordar o seu jardim de outrora.

Reparou que sempre que se sentava a tocar havia animais que se aproximavam dele.
Aranhas, lagartos de várias cores e tamanhos, e um dia até mesmo um morcego gigante que o deixou intrigado. Havia ali morcegos daquele tamanho? Mas não metia medo. Pareceu-lhe apenas curioso, atento, simpático, se é que se pode achar logo simpático um morcego tão grande. Trazia fruta na boca e o Príncipe viu assim que ali naquele vale, para além das bananas que tinha comido, poderia encontrar outras árvores de fruta e outros alimentos. Porque aranhas e lagartos não era coisa de que ele fosse gostar e muito menos comer...
Ah, ficarei aqui para sempre, suspirou.
A menos...

A menos que este morcego não seja um mamífero, mas um demónio encantado, um vampiro sugador de sangue, que esteja a fingir que gosta da minha música mas na verdade deseje apenas morder-me o pescoço e matar-me, quando eu estiver distraído. Aquela fruta na boca pode ser um disfarce...

O Príncipe lembrava-se de ter lido nos livros do palácio, que o Preceptor lhe fazia estudar, que os franceses chamavam aos morcegos ”ratos carecas“ ! Era injusto, era depreciativo.
O morcego que o visitava parecia um rato, mas não era careca. Era um rato voador, embrulhava-se nas longas asas quando queria dormir, sempre de dia, e só à noite a fome e a curiosidade o levavam a grandes passeios pelo vale. Era assim que ele acabava por ir ter com o Príncipe.
Foram ficando amigos, pois também o morcego gostava da casa de madeira com o seu tecto de canas e de folhas e o Príncipe apreciava cada vez mais aquele convívio com os vários bichos que o iam rodeando, ora de dia ora de noite.
As aranhas fugiam dele, escondiam-se nos cantos, aguardando insectos distraídos que pudessem prender nas suas teias; os lagartos eram mais atrevidos, mas o que preferiam era ficar ao sol, a aquecer enquanto o sol não se punha. Esticavam-se ao comprido nas pedras que lhes serviam de cama. Ficavam assim horas, a preguiçar, meio adormecidos.

O Príncipe, com o passar do tempo, habituara-se a fazer longas caminhadas pela floresta, pelo vale, pelos caminhos sinuosos das montanhas que o protegiam do mundo.
Num desses longos passeios descobriu uma aldeia onde só havia uma casa, parecida com a sua, mas com portas e janelas fechadas. Era junto de um riacho onde ele estivera a beber.
À roda da casa havia buganvílias coloridas, muitas, como que a fazer uma coroa de protecção.Lá dentro vivia um casal de velhos.Pareciam ter mais de cem anos, a côr da pele era da côr da madeira da casa, mas o seu olhar não assustava, era doce e amigável.
O Príncipe pensou: será que o morcego, de noite, também os visita, como faz comigo?
Afinal, há só estas duas casas nesta floresta e neste vale imenso...

Os velhos, ao abrir a porta, perguntaram, és tu o Príncipe Feliz ? E o Príncipe respondeu: na verdade bem pode ser esse o meu nome. Feliz é como me sinto, só posso ser eu, então.
E assim foi.

O Príncipe lembrou-se de que também nos seus livros do palácio se falava dos morcegos do oriente e de que aí, no oriente, o nome que lhes davam era  FELICIDADE. Um oriental nunca ofenderia um morcego com um nome tão humilhante como o do francês, que o deixara chocado pela falta de consideração.
Outras culturas, dissera o Preceptor. Os orientais são muito mais delicados, mais sensíveis.

O Príncipe voltou uma e outra vez, nos seus passeios, a casa dos velhotes, que o recebiam sempre com boa disposição, lhe davam de beber água fresca do riacho, boa fruta, boa comida fresca, preparada de propósito para ele: sopa de legumes, uma ou outra ave selvagem e até, certa vez, guisado de pernas de rã. Mas o Príncipe pediu: só legumes, por favor, a carne não me cai bem, tornei-me vegetariano graças ao exemplo do morcego que me faz companhia.
Conhecem o morcego do vale? perguntou.
Conhecemos, ele também é nosso amigo.

Os velhos tinham de facto mais de cem anos.
Eram velhos e eram sábios, apesar da sua aparente pobreza e humildade. A sabedoria esconde-se de muitas maneiras e, como se diz no refrão, nem tudo o que parece é... Eles na realidade eram pessoas muito especiais, mas não se dava logo por isso, era preciso entrar nos seus segredos, na sua intimidade.
A sabedoria é uma luz que se acende no coração, não tem nada a ver com poderes, riquezas, abundância de luxos exteriores.
É um luxo de dentro, uma espécie de chama dentro da alma.
O Príncipe Feliz, como os velhos lhe chamavam, fizera bem em fugir do palácio na cidade barulhenta, onde já ninguém ouvia ninguém e até o Rei começara a ficar surdo. Por muito que se gritasse ele não ouvia nada.

O morcego do vale gostava especialmente das noites de lua nova. Voava durante mais tempo, saía mais cedo e regressava mais tarde a casa do Príncipe Feliz. Agora era com ele que vivia, fizera da casa de madeira a sua casa, abandonando de vez a caverna escura onde outrora se escondia. Perdera o medo que tinha dos humanos.
O Príncipe gostava da sua companhia, afinal era bom ter companhia, e ele começava a desconfiar que aquele morcego era mais do que isso, havia ali algum mistério que ele um dia havia de descobrir.
Tudo a seu tempo.Tirou a flauta do bolso e começou a tocar e a cantar :

De aranhas não tenho medo
de lagartos muito menos
são discretos
coloridos
comem da minha mão
os insectos preferidos
só o morcego me inquieta
vivendo no meu telhado
quando de noite me espreita
 inspirando algum cuidado
com as suas asas negras
de veludo e de mistério
voando pela floresta
até ao romper da aurora:
olha para mim e chora
chora até que adormece!

Não sei que fazer com ele
perguntarei aos meus velhos
o segredo que consola.


Foi então que o morcego, certa noite, desdobrando as longas asas de veludo negro, revelou ao Príncipe o seu mistério, a razão das suas lágrimas: não era um morcego, era uma jovem princesa, metida naquele corpo nocturno que assustava tanta gente.
Era bela, não fazia mal a ninguém, embora a ela alguém lhe tivesse feito muito mal. Estar presa naquele corpo era o pior dos castigos.

Foram ambos ter com os velhos, a pedir ajuda. Eles eram sábios, saberiam o que dizer e o que fazer.
Os velhos contaram então a sua própria história, que era muito surpreendente:

O velho tinha sido há muitos e muitos anos um feiticeiro-morcego, vivendo em terras distantes. Apaixonara-se por uma bela princesa que, por amor, acedera a ser também ela transformada em morcego para poder voar com ele.
Mas nem o rei dos feiticeiros nem o rei pai da princesa gostaram daquela união.
Combinaram um castigo que fosse lento e pesado: não teriam herdeiro (que só podia ser rapaz ) teriam só uma filha, e também ela morcego, a menos que alguém a visse e  amasse tal qual era.
Quanto ao par desobediente, o feiticeiro e a princesa, só passados cem anos poderiam voltar à forma humana, como a que tinham agora; e de cem em cem anos voltariam a transformar-se, ora em morcegos ora em humanos, e assim por diante, para sempre. Seria este o castigo.
Que estranho, arrepiou-se o Príncipe. E o seu morcego quem era?
Pois era a filha dos velhos, cumprindo a pesada pena de aguardar quem a amasse.
Como seria possível ? Poderia ele transformar-se em morcego, ou a morcego-princesa em Princesa de verdade ? E por quanto tempo ? Cem anos ?
A ideia de “para sempre” era algo assustadora.
Mas na verdade, cem anos ou para sempre...

O Príncipe já começara a apaixonar-se por aquela jovem infeliz, que tinha escolhido a sua casa do vale para ter alguma companhia.
Talvez pudessem viver juntos, ser felizes assim, quem pode saber ao certo o que é ser ou não ser feliz? O nome não quer dizer nada.
Como fazer do morcego uma mulher perfeita? perguntou ele aos velhos seus bons amigos. Os velhos prometeram pensar e ajudar, na medida do possível.
O Príncipe que esperasse pela próxima lua nova.
Ele assim fez.

Noites a fio entreteve-se a tocar na flauta as melodias que mais o comoviam. Melodias saudosas, pois a jovem-morcego entretanto nunca mais o visitara. Teria fugido para sempre ? Se calhar esperara dele melhores palavras de conforto e de amor, talvez mesmo abraços de paixão. Mas abraçar um morcego...não era fácil, não lhe podiam levar a mal.
Aranhas e lagartos tentavam consolá-lo, enquanto ele tocava.
Mas de pouco servia.
Se o seu nome era Feliz, o dela seria Felicidade, como se dizia no oriente...
FELICIDADE, era isso, devia ter adivinhado logo, exclamado logo, quando ela dissera que era uma princesa aprisionada!
Mas agora repetia vezes sem fim : Felicidade, Felicidade...e iria libertá-la e seriam ambos felizes para sempre. De que modo? Pois logo se veria.

Chegou a noite de lua nova.
O Príncipe lá se pôs a caminho, em passo rápido, sem perder tempo, em busca dos  amigos protectores.
Estes já o aguardavam, à porta de casa.
E junto deles a jovem morcego-princesa, ou princesa-morcego, como prefiram dizer.
Felicidade! Felicidade ! exclamou o Príncipe, correndo para ela. Percebi finalmente o que devia fazer! Lembrei-me deste nome, que é o teu, viveremos juntos para sempre.

-Faz falta uma derradeira transformação, Príncipe, disse o velho. Estarás pronto para ela?
-Sim. Sim a tudo o que me fôr pedido.
-Pois então ouve bem: podemos fazer com que vivas com a princesa, transformado em morcego, como ela, nos próximos cem anos. Acontecerá contigo o que aconteceu comnosco, a mim e à minha mulher. Tudo mudando sempre e para sempre de cem em cem anos, nunca depois, nunca antes...
-Sim, sim. Não me arrependerei.

Então, quase ao nascer do sol e antes que Felicidade tivesse de esconder-se de novo, algures na floresta, os velhos foram com o Príncipe Feliz até uma das nascentes mais próximas e ali o despiram, o banharam, o cubriram de seguida com um manto de veludo negro, lhe deram asas e o fizeram voar.

Feliz e Felicidade, assim ficaram a chamar-se os dois jovens morcegos que iriam habitar por mais de cem anos naquele vale profundo da floresta longínqua.

 Y.K.Centeno
 Março 2008






Tuesday, August 23, 2016

Herberto Helder, OS POEMAS COMPLETOS

Herberto Helder, A Morte sem Mestre, para Leonardo Chioda

1
Publicado em 2014, um ano antes da sua morte, com a indicação do editor de que se tratava de um conjunto de poemas inéditos, a seguir incluídos na nova edição da Obra Completa, penso que mesmo assim, e porque um poeta escreve ao longo da sua vida sempre o mesmo, interminável poema...(o próprio Herberto era o que fazia, ao emendar e emendar poemas acabados de editar, emendas à mão, nos livros enviados a este ou aquele amigo...) mesmo assim, digo, entendo que para nos ocuparmos destes últimos poemas vale a pena ler os primeiros, ver o que ficou de uns para outros, ao longo dos anos que foram passando. Fiz esta experiência com Paul Celan, quando saiu a edição crítica dos primeiros poemas - e neles encontrei o embrião do que viriam a ser temas centrais da sua futura escrita poética.
O mesmo fiz com Pessoa, da poesia juvenil, todo um núcleo de preocupações se mantiveram ao longo da vida, dispersas pelos heterónimos, e sobretudo por Pessoa ele mesmo.
Um poeta como Herberto Helder, viajado, lido, a par do que se fazia no seu tempo, leu certamente Paul Celan e pode estar aqui a chave do título que deu a esta Morte sem Mestre: Celan falara do negro Mestre da Morte, ainda que em situação bem diferente.
A Morte de que falará Helder é a sua, a de um poeta que envelheceu, sofre com a perda de um corpo que foi amado e amante, sofre com o que mais receia, a perda dos seus grandes mitos, travessias de palavras luminosas, rosas ferindo a carne com os seus temíveis espinhos, um feminino riso, sangrando e já eterno sobre uma campa vazia. Banalizada, vandalizada, a palavra, num Verbo, numa voz que definhou: é essa a morte que espreita, que aguarda, e de Mestre nada tem. Não é preciso Mestre para morrer...é condenação natural, ainda que a sintamos como violência contra natura.
Não é Manifestação divina, ainda que negra, de tão ausente  e temida - como a de Paul Celan.
É um palhaço risível, em que não se acredita, e se desbunda sobre um corpo já meio decomposto.
Da Colher na Boca , de imagens torrenciais, em que rosas e sangue se misturam e tudo parece rio, um enorme rio de memórias vividas, até à secura de um deserto que é sentido na boca, a boca que já quase não se abre, e não dirá nem mais uma palavra.
Valerá a pena recordar, de passagem, o percurso de Herberto Helder, pelas letras que amou, com os surrealistas, a escrita automática, a poesia experimental, o futurismo combinatório da sua electrónico-lírica:tudo ampliado na química do seu imaginário.
Em a Electrònicolírica (Guimarães Editores, 1964), conjunto de poemas dedicados a António Aragão e António Ramos Rosa, seus primeiros leitores, é ainda a experimentação, o ritmo, o som do que vai correndo pela mão que escreve, que mais nos surpreende.
E a seguir o exercício combinatório a que se refere na nota final do livro, em que nos remete para a experiência, feita em 1961 em Milão, de Nanni Balestrini:
"O autor destes poemas", diz Herberto, "aproveitou da referida experiência o princípio combinatório geral nele implícito.
Assim, utilizando um limitado número de expressões e palavras mestras, promoveu a sua transferência ao longo de cada poema, sem no entanto se cingir a qualquer regra. Sempre que lhe apeteceu, recusou os núcleos vocabulares iniciais e introduziu outros novos, que passavam a combinar-se com os primeiros ou simplesmente entre si.
Devido ao uso de restrito número de palavras, as composições vinham a assemelhar-se, nesse aspecto, a certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo lirismo medieval. A aplicação obssessiva dos mesmos vocábulos gerava uma linguagem encantatória, espécie de fórmula ritual mágica, de que o refrão popular é um vestígio e de que é vestígio também o paralelismo medieval, exemplificável com as cantigas dos cancioneiros.
O princípio combinatório é, na verdade, a base linguística da criação poética" (p.49-50).

 Para além da cultura literária de que Herberto Helder faz prova (mas nunca um grande poeta poderia não ser culto...e nos anos sessenta a cultura que íamos buscar e absorver em todo o lado era também um gesto de ruptura, uma libertação, o afrontamento à opressão cultural da Ditadura...) o mais interessante é o seu modo de se apropriar de experiências e modelos outros, de os assimilar, de os fundir numa linguagem que é a sua, e em que a manifestação do inconsciente é ela mesma "princípio combinatório"...

Em O CORPO  O LUXO  A OBRA, editado pela e ETC. em 1978, com a indicação de que se trata de um folheto, para nos surpreender bastaria a contraposição das imagens arrancadas por vezes brutalmente a uma linguagem que parece que nos surge do Nada, da Vazio, do Abismo que só Deus poderia conter:
  E é cruel surpreender
  a inocência
  frenética, a taciturna doçura
  com que devora:
 às vezes
 a força dos rostos que tem contra Deus.
 Assim:
 o nervo que entrelaça a carne toda,
 de estrela a estrela da obra.
(p. 18-19)

Carne e estrela, matéria e espírito, no caos que o poeta sabe ordenar em cosmos.
E de novo, na nota final, nos deixa a indicação de que ali se tratou, nessa sua escrita mágica só aparentemente casual, de um "ouro natural e vivo", do erguer de uma árvore cujas raizes estão plantadas no alto, a Árvore da Vida que a todos alimenta.
Diz ainda: "A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os animais e o homem com o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa" .
Um alquimista não diria melhor. E Herberto não esconde o seu saber, neste caso bebido na Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto.
E acrescenta, já na elaboração do que entende ser o domínio do simbólico:
" No âmbito das funções e valores simbólicos, o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra. O poema faz-se com o corpo, no corpo, de baixo até cima, sagitariamente. Ou num ininterrupto circuito zodiacal".

Nós somos a carne de Deus, o corpo em que Ele se reconhece, adquire consciência mais clara de Si Mesmo, como se descobre no Antigo Testamento, nos tormentos de Job. Do mesmo modo é carne do poeta o seu poema, é o seu corpo transmutado em linguagem, o dizer de um Verbo que também se deseja re-conhecer, redescoberto ainda que em sofrimento, em parte da Eternidade.
Em Servidões, agora antecedendo a Morte sem Mestre na edição dos Poemas Completos, de que me sirvo, já a Morte está muito presente (para não dizer sempre) e Herberto nos deixa, a seu modo, subtilmente erudito, um Testamento evocador da Ballade des Pendus, de Villon, que este grande poeta do século XV, considerado o fundador da moderna poesia francesa, terá escrito quando foi condenado à morte por enforcamento, em 1463. Amnistiado, não morrerá. Com o título de l'Épitaphe Villon (na edição completa da Obra), é a XIV do conjunto das célebres baladas, muitas vezes chamada de Balada dos Enforcados.
 Frères humains qui après nous vivez,
N'ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres avez,
Dieu en aura plus tôt de vous mercis.
....

É dela que Herberto Helder retoma o lamento, e o apelo que, a seu modo, é agreste e mesmo sem perdão (não haverá perdão para velhice e morte...):
irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas nofuturo,
nem
visitas extraterrestres de mulheres,
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só v~e-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
....
livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é insondável,
estou mais pobre do que ao começo,
....
irmãos futuros do génio de Villon, e do meu género baixo,
não peçopiedade, apenas peço:
não me esqueçais só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda,-trepai por ela acima até à vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que melhor há-de medrar na memória do mundo
(p.688-89)

Terminar com mais uma referência, Schopenhaeur e a sua obra mais marcante, não é acaso, é de novo amarga desilusão.Não há "milagres da rosa " na velhice, no desapontamento perante a vida e sua circunstância, e ainda menos no antecipado já torpor da morte.
Villon ainda tem o remorso, o perdão que deseja.
Herberto não quer perdão, nem para si nem para mais ninguém.
O crime é viver demais.

2
TodesFuge /Fuga da Morte

Este é talvez o mais célebre dos poemas de Paul Celan, publicado em 1948, e carregado ainda de todo o horror que conheceu nos campos de concentração de que acabou por ser libertado, em 1945, no fim da guerra, mas de cuja memória nunca se libertou. Não é por acaso que um dos primeiros e mais belos ciclos de poemas se chama precisamente Papoila e Memória.
O vermelho do sangue, a memória do tempo.
A poesia de Celan ganha em ser lida, como observa João Barrento no prefácio à nossa tradução de Sete Rosas Mais Tarde, "à luz das muitas traduções de poetas que fez desde que se instalou em Paris" (p.XXXIII). Mas sem que isso impeça o confronto com a sua própria prática poética, o seu trabalhar numa língua que adopta como sua, não o sendo de verdade, pois é a língua do inimigo. Quem sabe se por isso mesmo lhe ganha uma proximidade que é ao mesmo tempo distância e sofrimento, interrogação permanente. Barrento cita outros poetas tradutores, como no caso português Jorge de Sena ou Herberto Helder (ibid.) para sublinhar que a poesia de quem traduz poetas adquire uma marca peculiar. O que o leva a citar a frase de Celan: "Sou tu quando sou eu", ou seja, quanto mais fiel a si mesmo, na descoberta e tradução do outro, mais perto do outro estará, na fidelidade desejada. E o inverso também será verdade...
Inserido no meio artístico da época (casou com Gisèlle l'Estrange, artista plástica) conheceu e conviveu com poetas como René Char, a quem dedica um poema, Henri Michaux, Cocteau, Picasso, Valéry, Supervielle, traduziu ainda Pessoa, Shakespeare e Rimbaud, para citar apenas estes.
Há vestígios, na sua poesia, de um gosto de escrita livre, de tons surrealistas, mas em que o discurso do sonho é abafado por negros pesadelos.
Para estabelecer alguma ligação, ainda que incipiente, à obra de Herberto Helder, A Morte sem Mestre, teríamos que recuperar do seu poema da Fuga da Morte os elementos de circularidade e repetição alternada que Herberto também escolhe para a sua Electrònicolírica.
A magia, o mistério, resultam da repetição encantatória do verso que abre com o "leite negro da madrugada" no seguimento da narrativa que nos descreve um homem que numa casa brinca com serpentes e escreve ao anoitecer para a Alemanha...
O leite negro é bebido a toda a hora, numa repetição cadenciada e sem limites, os restantes versos vão sendo alternados, de forma aleatória (mas só em aparência) transportando o mesmo funéreo sentido de uma dança da Morte, sendo que a Morte é o Mestre (em alemão o substantivo é masculino) e ali se comanda um destino a que ninguém pode fugir.
De cabelos de oiro ou de cabelos de cinza, ali o rosto feminino de Deus, o da Misericórdia, está ausente.
Vejamos uma parte do poema, em que Celan, com negra ironia, toma para si a Arte da Fuga, que Bach elevou até um inexcedível requinte musical:
Fuga da Morte
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anooitecer para a Alemanha os teus cabelo de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares
aí não ficamos apertados

Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros
cantem e toquem....
 (p.15-19)

Adiante se descrevem os olhos azuis do homem, e se repetem em cadência que amplia ainda mais o horror, os versos do leite negro que se bebe a toda a hora, dos cães que são atiçados para matar, das balas de chumbo certeiro, das serpentes com que o homem brinca, e dos cabelos, uns de oiro, outros de cinza, no sonho da morte que é um mestre que veio da Alemanha...
Adorno, que escrevera que depois do Holocausto nunca mais se poderia escrever poesia, lendo Celan percebeu que se podia, e devia: cada verso um dedo apontado, cada verso uma acusação fatal, um grito que ninguém mais sufocaria.

3
Herberto Helder, da nossa tradição nacional, conheceu vários Mestres: Cesário Verde, um deles, nas palavras de Fernando Pessoa ( o olhar coloquial sobre o mundo, sobre o quotidiano rural ou citadino) e Alberto Caeiro, assim definido como heterónimo iniciador pelo próprio Pesoa, fosse a sério ou a brincar, ao gosto modernista, sensacionista.
O Mestre, em Pessoa, é o resumo de todo um sistema poético e não uma figuração concreta e objectiva de um tenebroso Mal, no limite do impossível dizer, como em Celan.
Já em  Herberto Helder surge um outro discurso, o do corpo, o da carne (que em Pessoa e Cia. não existe) que, mesmo transfigurada no dizer dos poemas, não lhe trará afinal nenhuma redenção. E Herberto, com raiva, queixa-se disso, como se a eternidade sem decadência do corpo a ele lhe fosse devida...
É triste morrer velho, morrer de tanta velhice, mal vivida, e com plena consciência da fronteira inevitável que é forçado a transpôr.
O Homem é o que é: um simples ser sofrido, carne martirizada, a Morte não é seu Mestre, é o seu ponto final, nele, que fora exemplo perfeito de Obra Aberta, quando primeiro se rasgou o clarão de uma escrita poética incontornável e incontida.

Neste último texto, A Morte sem Mestre, escrito com a revolta da antecipação da efemeridade humana, presente e sua, não dos outros, não poética (essa ele sabe que será como a de Pessoa bem mais duradoura, um porque se desdobrou em tanto pensamento e tantas vozes, outro, ele, porque não houve palavra que não tentasse devorar, carnívoro e violento como se foi tornando, centrípeto em cada verso tomado de assalto, em cada corpo, juvenil ou maduro, atirado para  o ponto mais excêntrico de si mesmo.
Todo o poeta é egoísta, pois é em cada momento o centro mais negro de si mesmo, o Abismo de que falaram os místicos e também para eles foi um Negro abismal, opaco, sem esperança -enquanto durou.

Mestres de Herberto foram nesta última fase os anárquicos como o Luiz Pacheco de Comunidade, AntónioAragão, Alberto Pimenta (o do Discurso do Filho da Puta) Silva Tavares amigo e editor de vários deles.
Mestres da revolta, e do prazer bebido em excesso (mas pode haver excesso no prazer destes revoltados, ainda assim poetas? ) escreviam no quotidiano, nos bairros e nas tascas de Lisboa, ali perto do Chiado.
Encontros à mesa, bebendo e discutindo projectos literários. Interpelando burgueses, o seu poder bacoco presente na Política, tanto como em poetas que consideravam de há muito ultrapassados, românticos, simbolistas, de obra já lida e relida.
Poderíamos acrescentar, quem sabe, ainda como Mestre um Cesariny, também ele poeta do corpo, que fez da arte surrealista algo de mais humano, não escondendo o desejo, sua fonte, sua fome.
 Mas regressando aos poemas de Herberto: alguma coisa me faz regressar a Os Passos em Volta e à Apresentação do Rosto, seus textos ao mesmo tempo tão antigos e tão  presentes, nesta última evocação (provocação) poética:
"folhas soltas, cadernos, livros, montões inexplicáveis, e cada vez
que lhes toco fica tudo mais caótico e não descubro nada,
às vezes procuro apenas uma palavra que algures na desordem
estava certa,
nos âmagos e umbigos da alma:
brilhava...." (p. 751).
Do quotidiano desarrumado, como a vida, ao brilho da palavra certa, que adiante é descrita como relâmpago, que assombra.
E segue-se um contínuo de "quases....", todos de revelação possível, matéria-prima da transmutação, para regressar de novo a desordem primeira, o caos de livros, folhas soltas, cadernos, etc. e a consciência da morte, da sua banalidade, pois para morrer não é preciso Mestre, morre-se, simplesmente, pensando que está tão cara a bilha de gás...a ideia do gás da morte puxa, neste último poema, datado de 2013 (que pena os outros não terem data) a imagem dos campos de concentração onde o gás abundava, era barato, como a vida de quem iria morrer e pro aqui tenta ir o poeta, não como o Paul Celan que tinha lido, mas como o português daqui, já meio enfastiado consigo e com o mundo:
"tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto
por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,..."
 (p.752).

Ironia perdida em exercício culto, pois em nada se comparam as mortes a que Celan assistiu e a descrição amarga deste poeta velho, e pior ainda mal envelhecido que não se revê senão num burro velho:
" a burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha velha
e uma pouca de água turva,
e como fica jovem de repente durante cinco minutos!"
(p.741)
 Durante quase os mesmo minutos, corre a mão em tumulto por leituras e evocações que já conhecíamos de outros poemas, memórias desordenadas que levam ao verso final:
" estou praticamente morto, mas todo vosso:
nenhures é o meu pouso.
esta é a minha elegia.
A Elegia de um Burro "
(p.744)

Um burro nada inocente, como não foi inocente a referência, banalizando a morte, a um Celan desaparecido.
Herberto Helder conhece os seus autores, e reconhece agora o  seu destino, passar, como todos passam...
E o burro, que ali nos versos se esconde, podia ser o de Apuleio, O Burro de Ouro, o iniciado que pelos cultos de Isis, suas rosas
 ( houve tantas e tantas rosas, no corpo dos poemas de Herberto) atinge uma sublimação que nem sempre se alcança.
Herberto escreve um lamento, é a sua Elegia, não é um Cântico (como os de Orfeu), ainda que último.
E contudo ele já tinha adivinhado antes que o importante era

 "encerrar-me todo num poema,
não em língua plana mas em língua plena"
(p.749)

  Y.K.C.
Lisboa, 2016