Friday, September 29, 2006

Terceiro Acto

Sieglinda dará à luz Siegfried, por isso a Valquíria desejou salvá-la,mandando agora que conserve os bocados da espada quebrada.Virá a ter depois o seu papel.
Mas isso pouco importa a Wotan, abandonou a raça dos Waelsung e agora só quer castigar a afronta que a desobediencia lhe causou. As irmãs não conseguem protegê-la, Wotan irá expulsá-la para sempre do reino dos imortais, fazendo dela uma simples ( mas muito corajosa ) humana.
De certo modo Brunilda é uma variante, mais complexa, da FREIA do OURO DO RENO. Deusa da natureza, do verdejar da Primavera, figuração da Vida que Wotan já naquele prólogo estava tentado a desrespeitar, fosse qual fosse o custo. Guardou consigo o Anel, símbolo do Poder que desejava e tudo lhe permitiria, como se foi verificando.
A Valquíria é uma guerreira humanizada pela ligação à Terra, de quem nasce, e aos valores humanos que aprende a reconhecer sobrepondo-os a outros , neste caso a ambição de poder.Nascida de ERDA tem a sua substancia: forte, fiel, capaz de FAZER FRENTE ao ambicioso Wotan, seu pai.
No terceiro Acto contrapõe-se a Wotan como seu alter-ego desejável ( mas não exequível...)ao explicar que obedeceu às ordens que ele primeiro tinha dado, e provinham do coração e não de sentimentos menos nobres .
Aí, cumprindo o seu destino, fora filha obediente.
Vê-se em Brunilda a face obscura, dos afectos ignorados, recalcados, de um Wotan abismal e suicida. A sua Vontade de Poder, para além do Bem e do Mal ( ecos da leitura de Schopenhauer e de Nietzsche ) levarão ao Crepúsculo final : morrendo os valorosos heróis caem os deuses, como cairá o mundo, abrindo-se a uma cobardia sem nome, poucos anos depois.

Para a interpretação de Gwyneth Jones, na produção Boulez/Chéreau não tenho palavras que cheguem: terna, ingénua,quase infantil, nas primeiras cenas; e amadurecida pela compaixão, e decidida e grave na aceitação do castigo implorando que só
quem a mereça ultrapasse a barreira de fogo e a conquiste. Será Siegfried.

Tuesday, September 26, 2006

SIEGLINDE



Sieglinde é a Sedutora, como fora a bela Eva.
É ela que dá o primeiro beijo na face do desconhecido que vem cair exausto no chão da sua casa.
Olha-o, como dirá depois, reconhecendo-se nele ( a outra metade, do Andrógino de Platão).
Ajuda-o a desvendar a sua origem, que se verifica ser a origem de ambos.
DÁ-LHE O NOME ( fá-lo renascer como Siegmund ) e ao indicar-lhe a espada faz dele um cavaleiro e um homem. Será ele a dar o nome à espada: Nothung.
Temos nesta trama simbólica a recuperação do mito edénico e do mito platónico - ainda que venham a desfazer-se no fim.
Percorrendo um pouco mais do Libretto veremos como do frio Inverno da alma se passa à mais cálida e sensual Primavera do corpo.
Homem e Mulher, Mulher e Homem - ecos felizes do Papageno-Papagena de Mozart, o inesquecível .
Um excerto da Ária final do 1.Acto :

Sieglinde.

Bist du Siegmund,
den ich hier sehe-
Sieglinde bin ich,
die dich ersehnt:
die eig'ne Schwester
gewannst du eins mit dem Schwert!

Siegmund.

Braut und Schwester
bist du dem Bruder-
so bluehe denn Waelsungen- Blut !

És noiva e irmã
do teu irmão-
pois que floresça o sangue dos Waelsung !

Estão lançados os dados do destino, que acabará por ser trágico.
No 2.Acto, encontramos Wotan e Bruennhilde ( que se apronta a obedecer às ordens do pai, para que proteja os amantes) ; e logo de seguida a severa e ciumenta Fricka pedindo que sejam castigados.
Belíssimo, na cena que agora representa a morada dos deuses, a esfera pendular fazendo rodar o tempo e o destino que nele vai contido. Também pode ser lida, é óbvio, como a esfera terrestre que os deuses desejaram dominar.

M.C.Escher




Ainda não é o RING de Wagner, mas é o igualmente interessante RIND de Escher - qualquer das imagens apontando para o Anel, se fechado em círculo pressupondo a perfeição, Wagner, se aberto em fita que se enrola ou desenrola pressupondo que a perfeição é desejada mas não ainda encontrada,Escher.
A imagem que se esconde é num e noutro a do Andrógino platónico, que se tornará mais explícito na gravura de cima " Laço de União " que une os dois amantes.
E na Valquíria a história de um par (perfeito) de cuja união nascerá o novo herói trágico, Siegfried, o protegido de Bruennhilde, a Valquíria, que pelo seu amor trocará a imortalidade de que poderia gozar no castelo de Wotan.

Logo nas primeiras cenas dos dois primeiros actos toda a informação simbólica é transmitida por Wagner, à boa maneira das obras de iniciação. O par Sieglinde-Siegmund não é mais do que a figuração do andrógino primordial e o seu incesto é um incesto ritual, a marca de origem de todos os heróis míticos.
No amplo salão onde Siegmund se acolhe ergue-se a enorme raiz de um freixo, árvore da Vida de um paraíso terreal, que abrigará a descoberta e a paixão dos amantes.
Siegmund retira a espada que enterrada na árvore lhe fora destinada desde o princípio (uns ecos aqui da Távola Redonda e do Rei Artur ) . E assim como a sua irmã gémea lhe acode, no início, com uma taça (o cálice do Graal, em embrião) ele lhe acudirá a ela, amando-a, com a sua espada (a força ) recuperada. Não fazem falta grandes considerações freudianas que a direcção de Chéreau também teve o bom gosto de não sublinhar, deixando a nossa leitura em aberto.

Mas como dirá Fricka, a mulher de Wotan ( o deus "indecoroso" que teve este gémeos fora do matrimónio ),a traição matrimonial de Sieglinde, que foge do marido com o irmão, terá de ser castigada.
Algum eco do próprio remorso de Wagner, que "roubou" Cosima ao marido ? Pouco importa, o homem passa, o génio musical ficará para sempre, envolto nas brumas dos fantasmas heróicos que criou.

( a continuar )

Monday, September 25, 2006

Falando de Musica



Em momento importante de discussão do que deve ser o ensino, da literatura como da música, não fará mal ler ou reler este soneto de Florbela Espanca. Pela Tarde de Música, fala-se de amor.

TARDE DE MÚSICA

Só Schumann, meu amor! Serenidade...
Não assustes os sonhos...Ah, não varras
As quimeras...Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade...

Lizt, agora, o brilhante; o piano arde...
Beijos alados...ecos de fanfarras...
Pétalas dos teus dedos feitos garras...
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!
...
...

( in Florbela Espanca, SONETOS )

Ao contrário de Fernando Pessoa, que ouve ao longe a música de um piano, ouve o instrumento, não um compositor que de verdade o apaixone, Florbela, mais sensível e tão frágil que perde a sua vida de tão apaixonada que a viveu -ouve os compositores e com eles se vai identificando enquanto declara o seu amor. Primeiro suavemente e depois com uma violência arrebatada, própria das almas românticas do tempo.

Alberto Caeiro, XI

Aquela Senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

Saturday, September 23, 2006

SHOSTAKOVICH


Também em Portugal começou a Saison.
Nos clássicos da EMI podemos encontrar , nos great recordings of the century, a gravação da única ópera que o compositor escreveu, humilhado como foi pela imprensa stalinista do seu tempo que no Pravda lhe deu a ler, em 1936, a seguinte apreciação: " é lama, não é música ". O Ditador não tinha gostado de tanto grito, menos ainda do naturalismo agressivo, cortante, mais expressionista que qualquer expressionista.
Mas o maior incómodo vinha do facto de no "estrangeiro" a ópera ter conhecido tanto sucesso como na Rússia desde 1934, data da produção, a 1936.
Memórias do passado...lição para os artistas, então como hoje.Foi preciso morrer o ditador para o génio da obra voltar a ser reconhecido e apreciado. Na gravação, que ouço enquanto escrevo, a direcção é de Rostropovitch, que foi amigo íntimo do compositor.
O libretto é escrito a partir da novela de Nikolai Leskov (1831-1895) LADY MACBETH DO DISTRITO DE MZENSK, publicada em 1865. O autor traça um quadro impiedoso e brutal da classe média do seu país, na repressão do povo e dos pobres. A heroína trágica será a vingadora, pela sua mão serão castigados os caricaturais representantes da opressão.
Leskov acentua na sua heroína a violência necessária.
Mas Shostakovich trata Katarina como vítima da podridão de uma sociedade que precisava de ser salva de si mesma. Faz da sua heroína uma verdeira figura trágica, que terá seus pecados, mas não resultantes de malformaçao moral e sim da imoralidade do meio que a rodeava.
O compositor descrevia a sua ópera como sátira trágica. Sendo tragédia a vida e morte da Catarina; recordo Wozzeck (de Buechner-Berg) aqui a tragédia reside também na vida e morte de um soldado demasiado ingénuo (puro) para poder viver numa sociedade sem escrúpulos.

Encontro no final de ambas as óperas um momento especialmente intenso, em que o escuro das águas de um lago figura a escuridão da alma possuída de uma violencia que será sem retorno, pois se vira contra si própria. Catarina matará uma última vez, empurrando a companheira de prisão que a traíra com o seu amante (entretanto marido) para o lago escuro onde de seguida se matará também.
Deixo uma versão da ária,feita a partir da tradução. Lamento não saber russo, todo o ritmo do canto se prende com o ritmo belíssimo desta língua que tal como a alemã exige vozes especiais.

cena 27

Há um lago perdido no bosque
quase redondo e de águas profundas,
de água negra
como a minha consciência,negra.
Quando o vento sopra no bosque
erguem-se ondas no lago,
gigantescas de temer.
No Outono há sempre ondas no lago.
Água negra, ondas gigantes.
Negras ondas gigantescas.

Thursday, September 21, 2006

Carlos Ferreiro


Desenho de Carlos Ferreiro, 1989.
Expôs em Portugal na década de 70, com forte marca onírica, surrealista, na sua obra.
Os desenhos revelam uma invulgar capacidade de exorcizar demónios da alma, aproximando-o do mundo "negro" dos expressionistas. A citar alguém escolheria Kubin.
Roscas, parafusos, maquinaria vária enquadram os rostos e os esgares que nos surgem da sombra.
A modernidade de Carlos Ferreiro integra os sustos da alma, não deixando que se esbatam nas luzes da aparência.
A sua obra FAZ PENSAR.

Ed. ERATA, de Leipzig


Saiu nas Edições ERATA a tradução alemã de OS PASSOS EM VOLTA de Herberto Helder.
Consultem a página, vale a pena ver o que os outros fazem pela nossa literatura, neste caso Markus Sahr, o tradutor. Mais obras se seguirão em breve: Jorge de Sena, Manuel Alegre, Helder Macedo, outros.

Thursday, September 14, 2006

TAO TE CHING



n.40

Returning is the motion of the Tao.
Yielding is the way of the Tao.
The ten thousand things are born of being.
Being is born of not being.

Regressar é o movimento do Tao.
Ceder é o caminho do Tao.
As dez mil coisas nasceram do ser.
O ser nasceu do não ser.

O movimento do TAO ( CAMINHO ) é como o da maré que flui e reflui.
As dez mil coisas representam a totalidade do universo criado.
Quanto ao não ser, origem do ser, para além dos textos sagrados, dos filósofos e dos poetas que têm elaborado essa questão, talvez só os astrofísicos nos possam agora ajudar .
Enquanto a nossa vida flui e reflui também ela, contemplemos apenas, pastoreando a alma, como faria o nosso Alberto Caeiro :
" Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
....
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho."

( O GUARDADOR DE REBANHOS )

Wednesday, September 13, 2006

Setembro



1.

Chuvadas de Setembro:
Um arrepio
pelas costas do tempo.



Ao acabar de escrever o poema fui buscar à estante uma das minhas leituras preferidas, que acrescento como sugestão de leitura para tardes tranquilas: TAO TE CHING, de Lao tsu
( trad.de Gia -Fu Feng e Jane English,1976 )
Esta imagem é do n.8:

The highest good is like water
( o bem supremo é como a água )
....

2.

Chuvadas de Setembro:
Cresce o ribeiro
nas pedras da nascente.

Tuesday, September 12, 2006

Melancolia




A MELANCOLIA I de Duerer, de 1514, para além das influencias que são apontadas ao artista - Marsilio Ficino, entre outros- representa um dos tipos de melancolia definidos por Cornelius Agrippa von Nettersheim no seu tratado DE OCCULTA PHILOSOPHIA, que foi divulgado como manuscrito a partir de 1510. Neste tratado descreve-se a "melancolia imaginativa" como própria dos artistas, arquitectos e artesãos; a" melancolia racional " como característica de médicos, cientistas e políticos; e a "melancolia mental" como própria dos estudiosos de teologia e dos segredos divinos. PANOFSKY sublinha a melancolia imaginativa como faceta principal desta gravura: o que permite lê-la como produto, também ela, do imaginário alquímico de que temos vindo a ocupar-nos.
Este Anjo sentado, de cara aborrecida,contrariada, pegando com displicência numa ponta do compasso que tem na mão e com o qual poderia "redesenhar" o espaço que o rodeia, é a imagem mesma da NIGREDO, a confusão de alma que é preciso sublimar, encontrando um caminho. A desarrumação dos objectos à volta de um Anjo que mais poderia ser uma dona de casa incapaz de pôr ordem nas suas coisas é outro dos sinais que o artista nos dá: a confusão do exterior reflexo da íntima confusão, enquanto se aguarda algum sinal, ou que alguma coisa de repente mude, ainda que por acaso, mais do que por intervenção própria.
A esfera pequena,no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal como o possível arco-íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode augurar uma transformação positiva, luminosa.
Quase tão destacado quanto o Anjo, está, sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que tem por trás um anjo mais pequeno, um "putto", semi-adormecido. A nigredo é uma fase da alma em dormencia, e o mesmo sinal é dado pela cão enrolado e dormindo aos pés do Anjo. O cão, fiel companheiro do adepto em muitas das gravuras de alquimia conhecidas, e no caso de Cornelius Agrippa fazendo parte da lenda da sua vida de alquimista e nigromante.
O Anjo tem à cintura uma chave , e é Duerer quem, nos desenhos preparatórios da gravura, escreve que as chaves significam PODER.
Para Erwin Panofsky o poliedro será um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha desde logo a noção do equilíbrio das faces.O que tem todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra polida, quando desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir. E para tal a CHAVE é indispensável, pois todo o proceso é cifrado, é secreto, não é dado a qualquer um.
( E.Panofsky, Saturn and Melancholy, 1964 )

Passemos agora ao maior monumento literário que, na nossa cultura, dá testemunho da melancolia dita imaginativa, própria de artistas, neste caso Bernardim Ribeiro com a sua MENINA E MOÇA.
Pela mão do Professor José V. de Pina Martins foi publicado na Fundação Gulbenkian o fac-simile da edição de Ferrara de 1554 ( Lisboa, 2002 ). Um precioso estudo antecede o fac simile fornecendo aos investigadores, ou simples leitores, toda a informação e todo o historial relativo a esta obra- prima das nossas letras, que ainda não "transitou" para o mundo, como devia, por nunca se ter feito uma tradução inglesa. O momento há-de chegar, como chegou para outros, ainda que com séculos de atraso. Um amigo da blogosfera já colocou no éter a sua tentativa, pedindo sugestões a quem o possa ajudar com boas sugestões. Aqui fica o seu blog : IDIOCENTRISM.

A primeira nota, de grande interesse, é que nesta edição a menina diz " menina e moça me levaram de casa de minha mãe" e não de "casa de meu pai" como sempre nos habituaram na escola, devido a outras leituras de outras edições.Faz muita diferença, do ponto de vista psicológico e simbólico, dizer uma coisa ou outra.
Bernardim, seguindo a tradição da lírica de Amigo, falando pela boca de uma jovem que foi separada de sua mãe; projectando-se num universo todo feminino, com seu ambiente e sua psicologia muito próprios; somando a isso a expressão de uma saudade infinita e sem cura. Um lamento pungente.
Não vou transcrever aqui a novela, o que pretendo é deixar uma sugestão de leitura, chamando a atenção para o NEGRO DE ALMA de que ela dá testemunho.
Nos primeiros capítulos descreve-se a partida, sem razão que se conheça, criando um ambiente de mistério .
Depois a paisagem, de montes e vales, os precipícios da imaginação.
Surge o rouxinol, cujo canto melodioso cedo se apagará, também ele.
E logo de seguida aparece também, sem que se saiba ao certo de onde nem porquê, a dama vestida de negro. Toda esta imprecisão adensa a atmosfera de sonho que caracteriza a novela. A dama surge como que de dentro da água que a Menina estava a contemplar :
" E, estando assim olhando para onde corria a água, ouvi bulir o arvoredo.Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo. Mas olhando para ali vi que vinha uma mulher e, pondo nela bem os olhos, vi que era de de corpo alto, disposição boa, e o rosto de dona, senhora do tempo antigo; vestida toda de preto, no seu manso andar e meneios seguros do corpo e do rosto e do olhar parecia de acatamento.Vinha só(...) E entre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma".

Duas figurações da Anima, a juvenil, da Menina, e a melancólica adulta , a Dona que desliza mais como a Sombra que é do que como a mulher que devia ser. Bernardim exprime em ambas, logo nestes primeiros capítulos, a desordem da alma e o desespero de que se sente possuído.

Saturday, September 02, 2006

Paul Celan


SCHIBBOLETH

Junto com as minhas pedras,
que foram crescendo com lágrimas
por trás das grades,

fui arrastado
para o meio da praça,
para ali
onde a bandeira se desfralda, à qual
não prestei juramento nenhum.

Flauta,
dupla flauta da noite:
pensa na escura
vermelhidão gémea
em Viena e Madrid.

Põe a tua bandeira a meia-haste,
recordação.
A meia-haste
para hoje e sempre.

Coração:
dá-te também aqui a conhecer,
aqui, no meio da praça.
Chama-o, ao Schibboleth, grita-o
para o longe da pátria:
Fevereiro. No pasarán.

Unicórnio:
tu sabes das pedras,
tu sabes das águas,
vem,
eu levo-te até
às vozes
da Estremadura.


Um leitor da blogoesfera escrevia-me, há pouco tempo, a propósito de Celan:" não se estará a exagerar o seu judaísmo ao comentar os seus poemas ? "
É claro que não se pode esquecer a sua origem, mas não é a sua origem e sim o sofrimento que ela lhe causou que marca a sua memória e a sua poética de dôr e divisão face a um mundo ( e a um Deus ) que permitiu o horror dos campos de concentração, onde Celan viu morrer quem lhe era querido e quem lhe seria estranho, se não tivesse morrido ali também naquelas circunstancias. Celan escapa, mas não esquece e há imagens que o acompanharão "hoje e sempre".
Tais imagens, e muitos dos apelos e das invocações que faz, dirigem-se a um Olhar Ausente, um olhar cego, que negra nuvem toldou durante demasiado tempo.
Será preciso falar, será preciso DIZER o que muitos tinham decidido que seria indizível, e é o esforço do dizer que estrutura a poética de Celan e não o seu judaísmo.Mas o seu judaísmo, como o comunismo dos espanhóis que foram abatidos na guerra de 1936 é a causa próxima do sofrimento e da perseguição que fazem parte de uma História vivida e não pode nem deve ser apagada.
Jean Bollack, um dos maiores intérpretes da obra de Celan aborda precisamente a questão da escrita e do apagamento contra o qual é necessário lutar. Apagamento do autor, enquanto judeu e não só: voz incómoda, voz que dá testemunho, que tem o direito de julgar porque foi injustamente julgada. " O tempo esconde, mas a escrita não é levada como o resto".
L'ÉCRIT , une poétique dans l'oeuvre de Celan, par JEAN BOLLACK ( P.U.F., Paris, 2003 )

A propósito de Schibboleth, escreve Bollack ( citando Celan : " nunca escrevi uma linha que não estivesse ligada à minha existência; sou realista à minha maneira " ) que a imagem do Uncórnio apela à unidade, à coerencia que no mundo ( e em muitos dos seus amigos) se perdia. E neste caso, muito concreto, é ainda um apelo ao amigo Erich Einhorn (unicórnio em alemão) a quem escreve para lhe lembrar uma causa comum, a da liberdade (ainda que utópica, como se verá na posterior evolução da causa russa).Este é um poema que deve ser lido a par de outro," in memoriam Paul Éluard " , também ele comunista e cujo canto à liberdade é um dos textos mais comoventes e empolgantes que se podem ler.
Assim se estrutura uma poética da verdade e do dizer a verdade, na sua circunstancia.

Mas para lá de tudo isto fica o poema, e a sua lingua própria, falando com os outros poemas, estabelecendo uma continuidade que obriga a que se leia um e outro, todos em face uns dos outros, completando imagens e sentidos numa cadeia única de percepçaõ.
Citando Bollack " Os poemas absorvem outros poemas, os de Celan e os de outros poetas.Têm uma necessidade de continuação e ao mesmo tempo usam os elementos mais contingentes, mais casuais, tornados significantes no sistema de referencias estabelecido...O encontro mais fortuito é o mais forte...A rede semântica afirma-se ao constituir-se...A obra poética é fabricada com a língua da própria obra" ( p.210 ).
Os poemas são um diálogo contínuo com a poesia " com o seu poder ilimitado de exploração, e as suas limitações; encontram-se neles todas as posições intermédias, entre o proibido e a reflexão mais corajosa e dura, entre a evasão e o bloqueamento, entre o sucesso inesperado e a constatação lúcida da impotência" 
( p. 211 ).

Digo só, para terminar, que esta poética da fractura e continuidade da consciência, que funda o Modernismo, é uma das causas do deleite de ler e reler Rilke, ou Celan ou Pessoa, ao qual se poderiam aplicar algumas das reflexões de Jean Bollack no tocante à poesia que se constitui no diálogo dos poemas uns com os outros, dos heterónimos uns com os outros.
Sempre defendi que para entender Pessoa é preciso lê-lo todo, e em permanente confronto com as suas múltiplas vozes.

On Writing

Pessoa/ Bernardo Soares, THE BOOK OF DISQUIET
( Translated by Richard Zenith )

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" To write is to forget. Literature is the most agreeable way of ignoring life. Music soothes, the visual arts exhilarate, and the performing arts ( such as acting and dance ) entertain. Literature, however, retreats from life by turning it into a slumber. The other arts make no such retreat - some because they use visible and hence vital formulas, others because they live from human life itself.
This isn't the case with literature. Literature simulates life. A novel is a story of what never was, and a play is a novel without narration. A poem is the expression of ideas or feelings in a language no one uses, because no one talks in verse."

If you enjoyed this fragment, go on reading, quite soon you will find that Pessoa, under his many voices, dreams or disguises if you want, will say this and its contrary, for he enjoys the contradiction out of which he built his entire (literary) life. At a point he will disclose his secret way not to forget, but to remember :

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" I don't write in Portuguese. I write my own self."