Sunday, October 27, 2019

Fausto, de José Manuel Castanheira, um livro de artista




José Manuel Castanheira: Fausto revisitado em Mefisto...
O mito de Fausto, que no século XVI pela mão de Marlowe adquiriu dimensão universal foi ampliado com Goethe muito para lá da tentação do poder da Magia e da perseguição do Belo, oferecendo à nossa reflexão um poder maior: o da Livre Escolha entre o Bem e o Mal, e o da transformação do mundo pela crença no valor do Trabalho, no Serviço dos outros, já na segunda parte da tragédia, onde está cego e Mefisto espera vir a roubar-lhe a alma.
Se nas primeiras formas, nos primeiros momentos, tudo se centra no egoísmo do desejo (Fausto irá, ainda que sem se dar logo conta, sacrificar Margarida ao seu desejo) já na segunda parte da tragédia Goethe, bebendo nos ideais do século XVIII de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que adoptou como maçon, orienta o seu pensamento para uma esfera em que Mefisto, o demónio tentador, não poderá penetrar. E assim se salva o herói, e é Deus, que no seu alto trono ganha afinal a aposta, feita no homem e nessa qualidade só dele de querer sempre mais, numa luta incessante pelo Conhecimento.
É por aqui que seguirá Fernando Pessoa, o poeta da interrogação e busca permanentes. Evoco os versos que já em 1913 traduziam um pendor filosófico marcante, em Além-Deus:
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
( I, Abismo)
 A interrogação sobre o Eu, esse eu que se perde num devaneio que súbito permite uma iluminação (o encontro com Deus) é muito semelhante às interrogações de Fausto, em quem Pessoa concentra perplexidades e interpelações, negação e busca permanente, nos fragmentos que nos deixa. Se tivemos em Marlowe, ao gosto renascentista, a perda da alma em troca de uma beleza antiga, a da Helena clássica por quem tantos deram a vida, e em Goethe a aquisição de um saber alquímico, hermético e profundo, figurado no Eterno Feminino, e no valor do Símbolo como portão do Uno e do Todo, Pessoa, que leu Goethe (está na sua biblioteca pessoal) não consegue elaborar um verdadeiro sistema que contenha uma lição paralela à dos outros, ainda que de pendor modernista, logo mais céptico e de leitura mais aberta. O que nos deixa, e só podia mesmo ser  desafio incompleto, fragmentário, é um conjunto de interpelações, de interrogação sobre a essência do ser e do eu, a que os seus versos não darão nunca resposta.
Podemos aqui louvar a arte do fragmento, como fez Novalis, o grande romântico, contemporâneo de Goethe, ou a utópica busca da flôr azul, também ela, como Deus, mistério inacessível. Mas na inquietação de Pessoa há mais do que isso. Um Fausto que é seu alter-ego, e cuja busca assumirá outras formas, outros nomes (os múltiplos heterónimos) dos quais terá sempre consciência, enquanto a de si próprio se esvai. O que é ser ele, e estar ali diante do rio, a vê-lo? Ou seja, o que é ver o rio (ter consciência de outro, de outra coisa) enquanto em simultâneo desperta a consciência de si?
Consciência é a palavra-chave, a porta que se  abre para o conhecimento.
Entre os papéis que se encontravam na famosa arca, e que tanto trabalho deram a alguns estudiosos que organizaram e decifraram uma letra por vezes muito difícil, há um conjunto que nos interessa especialmente, para este caso do Fausto :
” O conjunto do drama representa a luta entre a Inteligência e a Vida em que a inteligência é sempre vencida. A Inteligência é representada por Fausto e a Vida diversamente...” ( Teresa Sobral Cunha, Fausto, ed. Relógio d’Água, p. 11).
Falemos da Vida, como faz Mefisto, numa conversa com o estudante que procura a sabedoria junto de Fausto: “ Pálida, amigo, é toda a teoria / mas a árvore da vida é verdejante” (Paulo Quintela, ed. Universidade de Coimbra, p.89).
Já Fausto se declarara, de ínício, cansado e farto de tudo o que tinha estudado ao longo dos anos, e o tornara sábio em matérias várias, como a filosofia, a teologia, a medicina, o direito, para concluir que não passava de um tolo: “ Eis-me aqui agora, pobre tolo, / tão sábio como dantes! “ (p.29).
Reconhece afinal, como Pessoa, que nada conhece, e que é chegada a hora de outra coisa:
“ Teu mundo é isto? Chama-se a isto um mundo? “ (p.30).
Espera, da contemplação do signo do Macrocosmos, uma revelação que o ilumine. Mas não há ali ajuda. Segue-se o sinal do Espírito da Terra:
“ Tu, ó Génio da Terra estás-me próximo!” (p.32). E por fim, a invocação do signo do Espírito, que lhe surge numa chama avermelhada, mas a que Fausto, aterrado, não resiste:
 “Sinto / que o teu aspecto suportar não posso!” (p.34).
E Goethe deixa-nos então com o enorme desalento do seu herói, tão ambicioso de início, tão desapontado agora:
Fausto- Tu, que o mundo vastíssimo circundas,
Quão perto sou de ti, potente Espírito !
Espírito- És igual ao espírito que entendes,
A mim não!
 Com este imenso anseio de alcançar algo mais, muito mais, do que um saber cinzento, se expôs Goethe a Pessoa, que o leu , entrou em diálogo com ele, por assim dizer, e tentou ir seguindo o seu caminho. O da Inteligência, como diz, que a Vida iria derrotar. Iria, mas não foi. Em Goethe ganhou a vida, no final da tragédia, luminosa e simbólica na sua integração. Em Pessoa não se chegou a uma conclusão final, os fragmentos deixam indícios do possível, mas permanece sempre a interrupção de uma inteligência que interfere, reflecte e obriga a reflectir, mas não ilumina nem resolve. No poeta a consciência é disruptiva, não é unificadora. A sua dedicação ao esoterismo, a sua curiosidade imensa, que nem a magia de um Crowley satisfaz, leva-o a ler, a ler tudo o que encontra nestes domínios, mas ao contrário do herói de Goethe o Fausto de Pessoa não se entrega, e quem não se entrega não recebe nada de volta, a não ser inquietação, dúvida, e por vezes revolta. Mas até para a revolta é preciso convicção...
 Retomo, porque me agrada uma versão um pouco mais fiel, a minha tradução da afirmação de Mefisto ao estudante que pretende ser orientado pela sabedoria de Fausto, e que o diabo ali finge ser, ocupando o seu lugar:
“ Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, / ...e verde a árvore de ouro da Vida. É importante a afirmação de que é de ouro a árvore da Vida, e que se contrapõe ao cinzento de toda a teoria. Em Goethe o ouro é o ouro alquímico dos filósofos herméticos, o verdadeiro símbolo da alma sublimada, que também Pessoa tinha lido, nos volumes de A. E.Waite ( The Hermetic Museum, Londres,1893, reed. 1994).
Falemos agora de José Manuel Castanheira e das sua pinturas sobre os fragmentos do Fausto de Pessoa que melhor apontavam os segredos e os anseios da obra do nosso poeta maior.
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Logo na primeira,  a escolha da côr com mistura de treva, para um diabo que sob asas imensas abraça um mundo que é seu, como que define José Manuel o tema central de toda a obra: a aposta de Deus no céu e do seu apesar de tudo fiel companheiro, pois conversam à vontade sobre a espécie humana, e o mundo que ela habita. Será este globo azul o da purificação? Ou o da morte negra, da ilusão esvaída, do Nada em que tudo cai e se desfaz?
Esta é uma primeira imagem–resumo de um sentido simbólico, profundo, que será necessário ir descodificando, com a ajuda dos outros. Deus permitiu que o Diabo tomasse conta do mundo e da espécie que o habita e Fausto-Pessoa-Mefisto vai interpelar?
É uma figura ambígua, hermafrodita, ainda presa ao céu por umas cordas, que a consciência de si que o poeta–adepto adquire poderá romper. Ou com ela afundar-se, aniquilado pela sua impotência, proclamada (como naquele fragmento em que contrasta Inteligência e Vida).
Esta primeira imagem com que o pintor nos inicia à sua leitura da obra do poeta, merece um comentário mais aprofundado, do ponto de vista simbólico. Este demónio vindo do céu, ou preso ainda a ele, remete para arquétipos primordiais, da criação do mundo, da criação de um Adão ainda hermafrodita, de cujo corpo feito de lama, e a seu pedido, Deus irá moldar, esculpir, várias mulheres, imperfeitas e que o primitivo homem recusa.
Terrível é aquela que é remetida para um longe que assemelhamos às treva do inferno, um espaço de castigo, de afastamento que a levará a congeminar as piores vinganças contra quem a afastou. Com esta imagem quase brutal, na força que as asas segurando o mundo nos revelam, teremos de contar. É o aviso, é o que diz Castanheira, que tratará a narrativa pessoana de forma aberta e livre (nem de outro modo poderia ser) mas deixando sempre em fundo a pulsão de uma consciência que se procura e se esgota em perpétua interrogação. A relação de Goethe com o Feminino, é a de um desejo que se vai sublimando. A relação de Pessoa com o Feminino é complexa, de difícil aceitação, como a do homem primitivo na discussão com Deus. Teria de trazer para este nosso diálogo uma nota escrita há algum tempo, no meu blog de simbologia e alquimia, citando um belo estudo de Robert Graves, Les Mythes Hébreux (1987) sobre como os arquétipos do Feminino se constituíram há milhares de anos, no imaginário da espécie. E se para alguns o Feminino conduz e ilumina, até hoje pode ser para outros objecto de pavor e recusa.  Não é integrável, é antes disruptivo de uma consciência, como a de Pessoa, que se interroga em dúvida permanente. Outra leitura aconselhável seria, de Siegmund Hurwitz, LILITH, the First Eve, sobre o Feminino negro (ed. Daimon Verlag, 2009).
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O reflexo no espelho traz, como em Oscar Wilde, no Retrato de Dorian Gray, o negro escondido da alma, o horror recusado.
Mas não por muito tempo.
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Fausto aspira ser mais do que é, na contemplação do Cosmos, na evocação do Espírito com o qual se sente identificado, algo que a voz do Espírito brutalmente lhe nega: ele é só o que é, e não mais. Falta-lhe centelha divina. Essa luz poderá vir mais tarde, pelo sacrifício de Margarida, pela revelação do Eterno Feminino desejado e alcançado, definido como o canto estelar do Símbolo.
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Dormir abraçando o mundo...
Entregue a uma vida maior, feita de busca  e quem sabe talvez um pouco de amor, que não seja o cavalgar de uma noite de Walpurgis, de uma Mefisto enganador...
Leiamos o texto DORME, pois no sono, mais do que no sonho, se escondem os mistérios, os arquétipos da Vida, que derrete o gelo da Inteligência...
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E sigamos com a divisão que o sonho introduz no sono...ou não fosse o poeta a súmula de tudo e dos seus contrários, tentando na divisão o Uno e o Todo que Hermes já definira na Tábua de Esmeralda: “o que está em cima é como o que está em baixo” fazendo deste mundo, que o Diabo não abandona, o reverso espelhado do mundo celestial, de onde afinal desceu, e do mundo infernal, a que a Barca da Vida o pode conduzir.
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Há nos textos que também vamos seguindo, uma alusão às Tecedeiras, que em Goethe são as Mães, e que todas tecem a Vida. No escuro dobam, enrolam, cortam os fios que serão do Destino: Inteligência (Conhecimento) ou Vida? Negro chumbo ou ouro puro?
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A consciência de ser ( “o que é eu estar a ver o Tejo a correr?” ) não impede o naufrágio da Vida, são demasiados os escolhos, poucas ou nenhumas as escolhas, que afinal se oferecem. A Água, elemento salvífico, dilui, mas não sublima.
A sublimação virá da última magia das pétalas das rosas com que os Anjos, dispostos a salvar a alma de Fausto, vão seduzir o Diabo. Mas em Goethe, não em Pessoa, o do desassossego sem fim. Retomando a linguagem da simbologia alquímica, Goethe era solar, Pessoa era lunar, e nesses opostos se uniam...