Monday, July 22, 2024

A JUVENTUDE

 

A JUVENTUDE

(para a Joana, nos seus 25 anos)

Seduz a Juventude porque é bela

seduz porque ilumina a nossa vida

a nossa estrela

Sunday, July 21, 2024

O que sou eu

 

Fosse eu a Oliveira de Creta 

e onde enterraria a minha raíz

para que não fosse cortada

e eu nunca mais crescesse

de copa elevada para os céus?

Nem toda a terra é fecunda

nem toda é venerada

como aquela que ali ficou

regada por sangue oculto

e cada vez mais se aprofunda...

Friday, July 19, 2024

 A OLIVEIRA de CRETA

Não foi certamente por acaso

que alguém me colocou no Facebook

a imagem da oliveira de Creta

com mais de dois mil anos

e que ainda está viva, pois dá fruto.

Foi para me mostrar neste dia

em que estou abatida

uma imagem especial de força

e resistência.

É essa força da natureza

 a força que nos dá o exemplo

do que deve ser sempre a nossa vida.

Não é perfeita a vida que vivemos

mas tem de ser plenamente vivida

terá de dar sempre fruto

estejamos ou não ainda vivos,

alegres ou abatidos.

A vida é na natureza vida eterna

é de terra de água e de raízes

tão fortes e penetrando tão fundo

que do lado de lá tocam o céu

negro e em chamas

que algum fogo alimenta

no seu ninho de estrelas

onde se formam os corpos

que ao partir

renovam as suas vidas

e lhes dão permanência

18 de Julho, 2024

 

A VIDA

 

 A VIDA

Nascemos sem saber.

Não pedimos a vida

foi-nos dada por um deus

que em nós quis ver-se

 ao espelho

onde não via nada.

Depressa se cansou

da sua imagem

quebrou o espelho

que perdera o encanto

e de novo tenta refazer-se

noutra imagem.


19 de Julho, 2024

Wednesday, July 10, 2024

Rui Couceiro: A morte, os medos, os fantasmas e as formas


 

A nomeação de alguns intervenientes surge, e dá substância ao discurso que estava, na continuação da narrativa, a tornar-se muito abstracto, numa prosa tão figurativa e realista.

Assim Luísa é a amiga a quem a narradora se dirige, Elisabete é o seu nome, abreviado em Beta pela avó, surge um amigo que orienta com bons conselhos, o Dr.Belarmino e a inefável e sempre presente já a conhecemos bem, desde o início, D. Lisete. Define-se como uma alcoviteira de Gil Vicente, mulher que leva e traz, ou a vizinha que no Fausto de Goethe propicia o encontro fatal entre o herói amaldiçoado e  Margarida que se tomará de encanto por ele e por isso, no Fausto I, será condenada pelos humanos ( cometeu o crime de infanticídio) mas redimida por Deus. Com Goethe, onde há amor há perdão.

Mais corriqueiro nos vai parecer o caso de Beta. Amava e era amada pela sua avó, e para uma criança, e mesmo para um filho, uma avó prefigura uma espécie de eternidade, poderá adoecer, envelhecer, mas morta nunca se imagina. E contudo morrem...

Beta perdeu a sua avó e agora é acometida de visões, ao fim do dia, quando vai para casa, e de súbito lhe aparece uma forma que evoca essa presença ausente.

A forma é de susto, é feia como uma bruxa, maltrapilha de roupagem, deitando um cheiro nauseabundo que Beta não suporta, e na narrativa surge assim: " Diante de mim estava uma figura baixa, curvada e toda vestida com uns andrajos pretos. (Não preciso de trazer de novo para esta figuração a fase dita de nigredo, e que faz parte do processo de evolução, na psique do adepto, da sua Anima). Continuando: " Parecia ter-se besuntado com um unguento fétido, porque o cheiro que emanava, não sei se do corpo, se da boca, era insuportável, e o rosto, ou o que parecia ser um rosto, era brilhante e pastoso. Não se lhe distinguiam feições, nem expressões, nem a boca se abria para falar, apesar de dizer muito mais do que eu queria entender. A princípio não percebi quem era, mas depressa me lembrei de que só poderia ser ela, não poderia ser outra, certamente seria ela. E se fosse?(...) E se ela estivesse ali para me levar, uma vez que já tinha levado a minha entrevada avó? Aquela monstruosidade bexigosa e pestilenta só poderia ser a morte. A morte estava à minha frente, ainda que não totalmente nítida, mas estava. Só poderia ser ela. Só poderia ser a morte, eu já estava certa disso quando, aproveitando um raro abrir e fechar de olhos a que me permiti, deixei de a ver, desapareceu" (p.252).

A figura assustadora voltará de novo, Beta estava a sofrer alucinações que a gelavam de pavor.

Também aqui o autor escreve pela narradora uma memória antiga a da tremenda peste negra que assolou a Europa durante o séculos XIV e XV, e deixou no nosso imaginário (dos que leram ou ouviram contar) o terror de que algo assim pudesse voltar a acontecer.  Descobrimos sempre, ao longo desta leitura aparentemente simples e directa, o suporte antigo de uma cultura que é a nossa, por muito arcaica e esquecida. Surge com a sua presença forte nos momentos mais inesperados, mas tem de estar lá...a cultura é o suporte da Arte.

A narradora relaciona então esta aparição com uma mulher, a D. Aldina, cujo marido, o Fernando, morrera nas obras da Expo 98, soterrado sob uma camada de cimento despejada para uma sapata que estava a ser betonada, e dado o trágico acontecimento ninguém se atreveu a falar dele,  para retirar o corpo, o que atrasaria a obra, algo impensável. 

Talvez fosse o imponderável deste trágico acidente que estivesse a causar a Beta as sua assustadoras alucinações, como a da figura dançante que ao regressar a casa, já no fim do dia parecia fazer troça dela e dos seus medos. Agora a heroína da história já tem uma terapeuta a quem vai contando o que lhe acontece, o medo, por um lado e o desejo de não acreditar, por outro.

Mas já entretanto o autor nos apresentou fundamentos de um imaginário que na espécie humana permanece desde que existe, ainda que sofrendo sensíveis transformações: a Morte. Dos tempo modernos iríamos buscar o célebre Grito, de Munch, que teve várias versões, todas possíveis para a primeira alucinação, de formas vagas, mal definidas ainda, até a esta dança macabra, de tantas origens arcaicas e todas relacionadas com a visão e o temor da morte. 

O temor da morte está presente desde que nascemos, desde que há consciência da vida na nossa espécie. É o que nos diferencia dos animais de que descendemos, que não o têm.

Recomendo a entrevista de Hariri, que está no youtube, para quem deseje conhecer a sua opinião. 

Mas cito antes, por magnífica descrição, que inicia, com outros, o chamado Modernismo na literatura, que se inicia em 1910, mais ano menos ano e se manterá, segundo os especialistas, até 1935 ( morte de Pessoa, no nosso caso). Rilke, com os seus célebres Cadernos de Malte Laurids Brigge (existe a tradução de Paulo Quintela) oferece na sua narrativa da vida e descoberta de uma cidade dolorosa, Paris, mulheres com quem se cruza na rua e cujo rosto prefigura o da Morte, assustadora, mulheres cujo rosto se desfaz nas mãos tornando-se ferida (a ferida da miséria da vida) e acima de tudo na memória que traz consigo do seu antepassado, o Conde Brahe, cuja morte é descrita como algo de atroador que quando se manifesta invade o castelo inteiro com o seu sofrimento, a que nem os cães resistem, embora sejam tão próximos e já habituados

Rilke escreve esta sua obra-prima em 1910 e marca a diferença na narrativa do seu tempo, inaugurando o que chamamos de Modernismo no século XX. 

Vive pobre, ele que é aristocrata, numa cidade que descreve ao pormenor, como Rui Couceiro faz com o seu Porto e o seu Morro, só que não tem morro, tem um quartinho para onde se retira depois de ter secretariado o irascível Rodin, e toma as notas que formarão o Caderno tal como o conhecemos. Tudo, quando se encontra sozinho, o remete para a busca de uma identidade que ficou no castelo da sua família, e por onde ele vê passarem o pai e a mãe, tias, primas, fantasmas, criadagem que acorre quando o Senhor do castelo está presente.

Assim, pela recuperação de uma vida outra, revive o jovem Rilke, perdido na Paris implacável, o que procura na mudança, na diferença, no choque de dois mundos, o de outrora, em extinção, apenas vivo nas evocações ou alucinações da memória, e o do seu agora, em que ele tenta encontrar o seu lugar e destino de criação artística, justificação da sua alma, isto é da sua verdadeira e real existência. Lemos em Rilke um Baudelaire que também Rui Couceiro pode ter lido, La Charogne, a podridão do cadáver, mas lemos sobretudo magníficas páginas sobra o medo, os vários medos que de todo lado o acometem e ele não chega a entender. Percorre-se uma memória longa de um passado recente, onde perpassam jovens mulheres que poderiam ser amadas mas não o chegam a ser, e para total surpresa do leitor desprevenido, eis que o final dos Cadernos é precisamente com amor que termina, o amor que Beta também descobre. Mas ela, ao contrário do que acontece com Rilke será amada de volta, ao passo que ele não tem a certeza de nada. Ainda não. 

 

  



Monday, July 08, 2024

Ainda o Morro do Rui Couceiro

 Acordei a pensar que outro livro, de que me lembre, tem uma densidade tão grande sendo ao mesmo tempo forjado na actualidade do nosso quotidiano, com personagens que nos dizem muito do que somos e vivemos (do pequeno e do grande mundo) e do que partilhamos com vizinhanças primeiro desagradáveis, invasivas do nosso sossego, e depois gradualmente  trazendo do bairro tudo o que pode ser mais interessante e ela dá a conhecer, a grandes e pequenos.

Falo da Dona Lisete, que é quem mais fala na obra com a Beta (Elisabete de seu nome verdadeiro) tornando-se conselheira, condutora, amiga de verdade e de que a narradora se ocupa quase até às últimas páginas do que escreve. Personagem que é tratada com cuidado, mas também com uma ironia escondida a que o autor não consegue resistir, a ironia que alimenta o que vemos e nos faz não digo rir, mas reagir. Puxa pela acção, e na verdade ( se eu voltasse a falar das figuras centrais da alquimia) seria definida como Mãe da Obra (que vemos no Conto da Serpente Verde de Goethe, hoje já disponível em português pela tradução do João Barrento. Eu escrevi sobre o Conto um pequeno ensaio, dedicado a Paulo Quintela, o Prof. e amigo que ia comentar a minha tese de doutoramento e me disse explica lá isso que eu de alquimia não percebo nada, e fiz esse ensaio para ele. 

No cap.105, p.284,  a Dona Lisete tem direito ao seu momento de explosão popular, que não direi que é bipolar, porque conheço como aqueles vulgares desabafos de zanga momentânea são normais no Porto, não chegam a ser considerados palavrões, saem de bocas finas, como a da aristocracia que ali ainda predomina, e eu aprendi no âmbito da minha família de Ponte de Lima: a fúria da Dona Lisete até assustou por momentos a narradora, mas como ela própria diz, depressa se acalmou, e eu deixo ao leitor a curiosidade de aprender com ela...

A verdade é que todas as explosões a que se assistiu eram desabafos de impotência perante algo de desagradável sucedido, como a falta de água nas torneiras por exemplo. Não mais do que isso. Não havia maldade, havia revolta justa, pela incompetência, ou pela apetência e abuso de alguns que podiam, sobre os outros, que não podiam. O palavrão libertava.  

Ao contrário de alguns comentadores, que no seu entusiasmo quase paroxístico me deixam entender (é da idade...) que se atiraram ao Morro de cabeça, não a partiram mas não voltarão lá, outros interesses logo se apresentarão, eu acho e é o que vou pelo menos tentar, que se deve  voltar a esse Morro, ou melhor, a esse livro, até perceber que fio nele se esconde e nos conduz até ao momento em que a heroína, com o convívio do Dr. Belarmino, a sempre presente Dona Lisete, que a aconselha a ir pedir leitura de tarot a uma cartomante para adivinhar o que o futuro lhe reserva, chegar a conhecer e conviver com o Professor, que é colocado ali, onde ela vive e se apaixona por ele e ele por ela. Depois de tanto negro atravessado na sua vida , o peso da avó nos seus dias e nas suas noites, fica a saber que essa avó a protege, lá do céu onde se encontra e propicia um final amoroso e feliz com o seu Professor, que é delicado, não força a relação sexual quando ainda não desejada, mas antes a acaricia docemente e lhe envolve e aquece o corpo, como uma segunda pele. 

Da infância por vezes sofrida até à maturação de um corpo feito para amar e ser amado, assim vai o relato encaminhando a nossa leitura,  lembrando que em toda a vida, pobre ou menos pobre, de alguém como Beta, para lá da aparição assustadora da imagem da Morte, a vida afirma-se como vida mais plena ali oferecida para  viver, e pelo amor entregue a ser vivida plenamente. 

Chegou o momento mais difícil, o de entender o Morro como símbolo de uma cidade envolvente, feita de sobreposições variáveis, permanentes, inquietantes por vezes, quando a Morte, a grande, era de súbito avistada.

E de entender a Cidade como um grande coração que batia, desde que na Bíblia, ainda no Antigo Testamento, se descreve como Cain, depois de matar Abel é expulso do Paraíso, já amaldiçoado também pelo pecado de Adão e Eva. Cain, o "construtor de cidades".  Por que razão estariam as cidades ligadas ao pecado de Cain, ao  assassinato brutal de um irmão inocente? Queria Jeová, no tempo em que todos ainda falavam, castigar uma humanidade com um Mal permanente? Pois os alicerces que Cain erguia estavam viciados desde a origem.

Pode a cidade viciada tornar-se o verdadeiro símbolo do mal? Acontece com a Torre de Babel, e deus a castigará a seu modo, o mesmo com Sodoma e Gomorra, que não serão perdoadas pelos seus vícios, e será que o mal nunca erradicado se infiltra ainda hoje nas guerras, nas grandes catástrofes climatéricas, num planeta cuja zanga com os humanos é cada vez maior e parece não ter perdão nem ter fim?

Não chegou o momento ainda, para a narradora feliz, de assistir ao fim de um mundo que é o nosso, como diz Hariri, que vê na I.A. um mal ainda pior. Se no antigo Éden o primeiro par não tinha senão um arremeço de liberdade, pois duas árvores lhes estavam proibidas, que liberdade teriam os modernos pares em que o verdadeiro e o real podiam a todo instante ser modificados, e induzir em perigosos erros ? E Deus e a sua criação, no meio disto? Também a sua identidade poderia ser modificada? Hariri abre a discussão, mas deixa-a em aberto. Aconselha a que não se perca tempo a pensar o que é o significado da vida, pois isso apenas conduzirá a uma história e uma história não nos dará esse significado. Pensemos antes no que é o Sofrimento, o significado do Sofrimento (que vemos por todo o lado).

Por que razão existe e o que significa o Sofrimento, na vida? E sabemos como cada ser humano o que busca é a certeza, não a dúvida metódica da filosofia de outrora...

Tudo mudou no mundo.

Mas no Morro, por via de um amor simples e partilhado poderá haver salvação, sonhar com um futuro distante mas aguardando no fio do horizonte que o Criador acorde do seu sono zangado e nos perdoe. 

 

  

Saturday, July 06, 2024

Rui Couceiro, MORRO DA PENA VENTOSA, 2024

 Rui Couceiro é um escritor desta nova geração que não hesita em publicar um primeiro livro e logo de seguida um segundo, em que se procuram algumas raízes de memória vivida, e não podem ser muito antigas, dada a sua juventude. É um romance com marcas físicas de uma cidade, o Porto, e o seu morro ventoso. Suponho que ler é ir subindo devagar até esse morro que ele amou, com as suas pessoas próximas, de família, de vizinhança ou amizade. Mas sendo hoje, apesar de tão novo ainda, já alguém com espaço próprio conquistado, é EDITOR e AUTOR ao mesmo tempo, e a sua última obra (a primeira não acompanhei, como gosto de fazer com as obras que abordo, não me foi possível, tenho o meu morro onde ainda vou subindo devagar, estou a meio do caminho) - a sua última obra, dizia, explodiu logo em todo o facebook com anúncios de lançamentos,  apresentações e eventos vários por todo o lado, que o deixam feliz e sorridente nos retratos que vão sendo colocados para quem gosta de ver a cara de quem escreve. Mas é bom não esquecer que a pessoa real é uma, o narrador é outra coisa, um alter-ego também fazendo parte da ficção, um eu que se projecta ali por razões que escapam muitas vezes ao leitor. Neste caso, e no início, é de uma narradora que se trata. Uma jovem (assim a estou a imaginar) a quem uma avó apoia e ajuda com uma frase cheia de significado: " Beta, filha, tu não precisas de ser como os outros para seres certa" (p.13). No cap.4 percebe-se que está ali um anseio, ou mesmo um receio, de que a escrita não chegue a preencher o vazio que a noite traz consigo. Mas sabemos, quem já viveu e leu o bastante, que é na noite que por vezes os sonhos nos preenchem, que se formam os sentidos que mais iluminam o caminho dos sinais em que as pessoas e os seus múltiplos eus se perdem, ou se encontram. 

Não é pois um mero acaso a escolha de uma voz feminina para assumir esta narrativa, não como heterónimo pessoano, demasiado conhecidos já todos eles, mas como impulso vital de uma necessidade íntima, a Anima que Jung seguindo os velhos alquimistas define como a oposição do feminino ( área do sentimento, da emoção) que complementa, por oposição, a racionalidade do masculino (Animus) que tem no nosso equilíbrio outras funções.

Na psique humana, tanto na mulher como no homem ora predomina  um desses elementos ora outro, e isso definirá comportamentos, escolhas, mesmo destinos. Por aqui, por esta voz, onde seremos conduzidos? Onde se esconde o sentido? E evoco o meu já tão habitual Hoelderlin (não tenho umlaut no computador, escrevo à antiga), no seu célebre verso do Hino à Memória (Mnemosyne) : "somos um sinal que perdeu o sentido..."

Rui procura, como Jung também salientaria, na projecção do feminino, o tal sentido que falta. Escreve a sua narrativa no feminino e na primeira pessoa, para não deixar dúvidas, pelo menos por enquanto.

Mas assim como Clarice Lispector, na sua HORA DA ESTRELA deseja fazer a experiência de uma voz masculina, entremeando e alterando a prosa que decorria, fluente, deixa ver que a voz afinal era sempre a mesma, a dela, e a introdução de um rapaz que olha e descreve o que vive em nada melhora ou altera o que é a voz - aqui entra a marca de estilo -  de uma só criadora, Clarice e só ela.

Veremos com Rui Couceiro. 

No cap. 6. intitulado DO FUNDO DO MEU CAIXÃO, intensifica-se esta ideia, ou este sentimento, que é do negro ( os alquimistas , ou Jung, herdeiro legítimo desse imaginário, designariam no processo de sublimação por nigredo), que é preciso absorver essa negrura da depressão para poder libertar-se e seguir para outra fase: a escrita? a ideia de assim, tal como se é, ser feliz? ou de necessitar em absoluto de recuperar um espaço habitado por múltiplas vozes e deixar que se cruzem.

 Não vou escolher um sentido para a escrita, mas deixar ao leitor o que pode em qualquer momento ter despoletado esta imagem do caixão em que a narradora se deita: a série do CSI one sabemos que a jovem Abby, gótica assumida, se esconde para dormir? Influência do romantismo negro de Poe? ou uma das frequentes imagens alquímicas em que surge o adepto deitado num caixão, indicando que a "morte em vida" conduz à sublimação que se procura? Há muitas e não vou citar aqui. O importante é que é reconduzida ao regaço da sua avó, já referida, e tem a ideia, que considera redentora, de refazer com a imagem dela no seu caixão, um caixão para si, que encomenda (estando nos tempos de hoje...) on line a uma firma de confiança. 

"E não é que funciona?" exclama. Recomeça a escrever.

"Foi já dentro deste caixão qu escrevi o texto que antecedeu este. Devo clarificar, todavia, que não escrevo apenas quando estou dentro dele, no qual me deito com duas almofadas sob a cabeça" (p.17). E continua: " Também gosto de escrever sentada na sanita". Ah Joyce, tão citado mas entendido por poucos, é difícil de ler, dizem, mas não têm culpa, são más as traduções e poucos sabem ler o original. Não chegam ao explosivo monólogo de Molly Bloom, que Graça Lobo, grande actriz do meu tempo, representou com a sua voz grave mas tão bem articulada, no Teatro Nacional Dona Maria II.  Um monólogo em que James Joyce adquire a sua voz feminina, carregada de desejo e frustração, intercalando essa voz sem abdicar da sua.

Continuando numa cidade que viveu como sua e da sua avó, Rui Couceiro descreve com pormenor realista o espaço que também ele se relaciona (acharão que exagero?) com a alma e o sentimento de perda, no passado e no presente, a perda da sua avó, que deseja evocar e a sua, que não encontra caminho, por isso se prende aos pequenos e muitos pormenores das pequenas divisões de um apartamento sem lareira nem banheira, num quarto andar de um prédio estreito, como eram outrora muitos dos prédios antigos, carregados de vida, digo eu, como se fossem colmeias a produzir vida incessante. 

Adiante entrará o prazer de um banho de verdade numa banheira a sério. Serve de novo para evocar o amor de uma neta (foge-me a mão para neto...) pela sua avó, envelhecida, corpo enrugado, "amarrotado" escreve ela/ele, cabelo comprido definhando tal como o corpo, é fácil de supôr. Crua, não digo cruel, mas crua, por ser verdadeira, a observação das unhas dos pés que a narradora também descreve, admirada quase por crescerem tão depressa. É minuciosa a descrição de todos os detalhes de um corpo velho, que tem de ser cuidado, da roupa que lhe vestem, da paciência, neste caso, com que pintam uns lábios de vermelho para que se possa perceber melhor que há sangue a correr nas veias, a avó está velha, mas não morta. Couceiro escolhe a narrativa da tradicional, no século XIX sobretudo, literatura negra, do pormenor que entristece ou mesmo repugna, num desafio à produção da moda actual, de pura (fingida) alegria permanente. Não é alegre o mundo dos velhos, o seu corpo não apetece e o riso desapareceu gradualmente. Rui não quer fingimentos, contudo assumiu outra voz para uma narrativa que ia ser pesada. Amara assim tanto a sua avó, esta heroína de ficção que se situa num imaginário doloroso quase de tão voluntariamente realista? As páginas alongam-se nos pormenores que são os de uma Cuidadora, que vão dos banhos às toilettes, à memória de alguma canção antiga, a um  pequeno passeio na rua, uma ida à Igreja, enfim a rotina que toma conta das horas. E um conselho para que não se chore a morte, pois nos descendentes a vida é eterna. Deduzo que esta avó era crente, e que a suposta neta respeitasse a sua fé, para não a magoar em fim de vida.

Mas o que nos vai dizendo o romance sobre o seu autor, o Rui Couceiro? Por trás de que biombo se esconde e desafia a verdade que é ou será ou já foi, a sua? Entramos no miolo do livro, onde supostamente a narrativa avançará, não para um desfecho prematuro, mas para uma mudança que mantenha no leitor a curiosidade e o desejo de continuar. A curiosidade, digo mais, o espanto, a admiração surpreendem o leitor pelo súbito desabar de situações escolhidas a dedo para esse efeito, como se de súbito houvesse ali a meio do percurso narrativo uma crise de forte bi-polarismo explodindo nm divã freudiano, a meia luz, numa longa série de palavrões de efeito grosseiro, mais do que rude, brutal, como se passássemos de um Proust a um Bukowski que diz, cito de cor, "na minha obra só escrevo o que vejo". Parece ser o que Rui deseja, escrever o que vê, e só. Mas há aqui apesar de tudo alguma coisa de incoerente, porque tem nas páginas a que me refiro não apenas o que vê, mas o que cheira, o que ouve, o que a espanta (só pode ser) uma criança descrita na evocação desse passado, entre os 4 e os 8 anos. Dirão, sim e não: agora quando escreve é um adulto a meio da vida, e no início de carreira, que se adivinha frutuosa. Como leitora atenta que sou, a paixão descrita com ênfase pelo Futebol Clube do Porto na pessoa do seu Presidente, não permite que se fale do Macaco, não o do Jardim Zoológico, mas o que se revela, na mitologia desse clube, um dos seus valentes guardas e protectores? Digo, com o Herman José  - não havia necessidade...enfim, continuemos, o livro pede leitura. 

A narradora, cuja paixão e carinho pela avó levava a uma estranheza, onde estão pai, mãe, avô? Justifica no seguimento das suas evocações os traumas de infância e rejeição sofridos e como chega então à bruta necessidade de contar, quase gritar, com rudeza este apontamento que ficara para trás, não esquecido, mas ao modo freudiano, recalcado bem no fundo do seu inconsciente, como se nunca tivessem existido esses e outros personagens que habitaram a sua vida, ainda que por breves tempos. É o autor que nos diz que hoje em dia o Morro é condomínio de luxo, algo que os lisboetas como eu também já descobriram nos seus bairros antigos populares. Os que ainda não são de luxo aguardam para vir a ser.

Por outras palavras, a narradora cuja infância é evocada do interior de um caixão ou da sanita, quando de outras necessidades (eu lisboeta diria retrete, como aprendi, mas perdoo esta escolha, que vem da escola, ou do bairro, ou até da família, é possível num meio de pequena burguesia (e sem ofensa, lembra a canção da pronúncia do Norte...) por outras palavras aguarda-se agora o momento que marque evolução e mesmo mudança no processo narrativo, devolvendo alguma feminilidade à voz da Beta, a figura da heroína escolhida, pois o que ficou para trás é altamente masculino, os homens exprimem-se de modo diferente das mulheres, mesmo nos palavrões, na rudeza e nas situações expressas de modo intencional e provocatório para o leitor imaginário que Rui Couceiro terá na sua cabeça. A verdade é que a crueza existe e continua, certamente, mas numa obra literária actual fará ainda sentido? A perversidade não será mais psicológica, hoje em dia, do que o palavrão que se encontra em dicionários? Mesmo num enorme, de sinónimos? Mas entende-se contudo que há de facto ali, na narradora, uma exigência de descarga emocional e verbal que a liberta do peso contido que a abafa, o que faz sentido, dado o caixão em que se fecha parte da sua existência. Aqui está uma escolha da palavra que tinha faltado, a da existência fechada. O autor (narradora) abre a existência por via da descrição do Morro, que conhece e dará mais tarde a conhecer a outros, como guia.

Voltando a Bukowski, ele ensina que o difícil é dizer o complicado em palavras simples. E de facto assim é. Nada mais difícil do que o simples...A experiência ensina. E quando não, assassina o que foi um primeiro impulso genuíno e se perde no caminho dos sinais e do sentido.

No cap.29, O CORPO LANÇADO, a criança surge crescida, de "corpo lançado", numa adolescência apetecível, e dado o que já se leu do autor e da sua narradora adivinhamos que não poderá ser vivida normalmente, reservando e guardando o seu corpo, que temo, neste momento da leitura, que venha a sofrer violência numa cidade e num ambiente todo ele de extrema violência que só terá o pior para lhe oferecer. Contudo no cap. seguinte o que se verifica é a descrição de um quebranto, uma espécie de depressão, de melancolia instalada como se tivesse sido lançada alguma maldição sobre a mente e não apenas o corpo da jovem. A avó, preocupada, leva-a para um exorcista que fará o necessário para a limpar do perigo. Estaremos com elas e suas rezas e benzeduras no bairro do Cruzinho. 

Portugal, país que se diz de fé sólida, é na verdade um país de crendice, de rezas e quebra-medos, que tem mais folcrole na cultura  do que religião na sua vivência escondida. Ainda há, e haverá sempre, pois o mal existe, padres para fazer exorcismos e vamos ver neste capítulo a descrição da "lavagem" da pobre Beta, digna de um filme, na verdade. O realismo é total.

Interessante, em relação ao conhecimento da cidade, é a descrição que Beta, agora guia turística, vai fazendo dos bairros, das ruas, cobrindo rios que passam por baixo, e encantam os estrangeiros que a ouvem.

O romance foi adquirindo, sem que se dê por isso, pois as personagens que se cruzam também nos chamam a atenção, junto com a doença   progressiva da avó, uma dimensão bem mais do que a puramente literária, sociológica, e permitindo até que alguém se debruçasse para essa dimensão numa tese académica. É de um Porto desconhecido que se trata, e não apenas para os estrangeiros, uma cidade que sofre os desacatos e abusos de outras, como Lisboa, onde também os prédios mais interessantes são comprados e os moradores expulsos para outras paragens, mas na verdade aqui, pela mão de Rui Couceiro o que vem ao de cima é um olhar que vê o real para lá do real, um olhar feito de amor parecendo que é de medo, de horror ou mesmo ódio por vezes.

O mundo ali existe, e não é em ponto pequeno, é numa abrangência larga, que vai das personagens às suas circunstâncias, de que a língua e sua violência vocabular fazem parte, conduzindo o leitor a um conhecimento que ele não detém e a narradora lhe vai página a página revelando.

Estamos perante o reverso de uma Montanha Mágica a que falta, por via do que foi o propósito de Thomas Mann na sua obra gigantesca, o pensamento filosófico, elitista, dos eternos doentes que a habitam, mas que em contrapartida nos oferece um morro de pura vida real, na sua crueza não fantasiada mas vivida. Com Thomas Mann temos o luxo de ficar distantes do sofrimento, neste Morro da Pena Ventosa somos forçados a vivê-lo,  ele se funde-se connosco por via das descrições de minúcia que nada têm de abstracto, pois o fim do livro não é o de nos abstrair do que dói, mas fazer doer ainda mais, se possível. Estamos perante uma anti-Montanha Mágica, e este livro deveria poder ser objecto de estudo em ambas as dimensões que refiro, a sociológica e a de uma certa e nova visão filosófica da cidade real.

Aqui entraria, mas a dimensão do post não me permite grandes elaborações, na questão do que seria hoje a cidade justa de um Platão, por exemplo no livro X da República. Governada por sábios pensadores, ajustada pelas suas mãos às necessidades de cada um, e de onde os poetas teriam sido expulsos por deles não depender nunca a ordem, mas a desordem a que a pulsão criadora os levava. O Morro de Rui Couceiro também neste aspecto poderia (deveria ? ) ser estudado. Há ali matéria que é de amor, mas também de perversão, perseguição e ódio. Um retrato do mundo que não caberia na Tempestade de Shakespeare?  Um Morro onde do alto se adivinha, ou se vive a natureza à solta, que Caliban representa?

O imaginário da cidade (que já foi título de um colóquio) pode evocar uma cidade fundadora, como na República de Platão, ou o mundo que Hobbes descreve onde a guerra ( o mal) é predominante. 

  Terei de ficar por aqui, deixando que o leitor continue, de mente aberta e prazeirosa, como dizem os brasileiros.

 


 




   



  

 

   




  


Thursday, July 04, 2024

Um Último Pedido

 

Um Último Pedido

Desçam devagar pelo caminho

que não cheguei a subir

e agora vou descer

pela vossa mão

sem medo de tropeçar

nas pedras que ficaram.

Chorar não faz sentido,

deitem as cinzas ao rio

e a água que as leve para o mar...


4 de Julho, 2024

 

Monday, June 24, 2024

Morrer

É claro que penso muitas vezes
em como vou morrer.
Não adivinho
não há um deus que diga
um anjo que previna
entretidos no céu
a desenhar nas nuvens
os destinos
os nossos ou dos outros.
Penso que não gostaria de saber
nem de sentir antes de tempo
um tempo que chegará
como já vi
e pode ser tão estranho
e tão inesperado
sem um queixume
sem um lamento sequer
apenas uma entrega
num enorme silêncio
a caminho da treva
quando teve de ser.

Thursday, June 20, 2024

 

FESTAS POPULARES

 

Alguns comeram lagosta

outros não,

bastou a alegria da sardinha no pão.

 

20 de Junho, 2024

Tuesday, June 18, 2024

 ÁGUA DE ROSAS

A minha avó lavava a cara

com água de rosas

que punha num frasco de cristal

pousado na cómoda antiga

que hoje tenho no meu quarto.

Agora há variantes: eu mandei vir

uma água de tangerinas de Itália

com rosas de França

uma água tão fresca e tão leve

que o sol aparece a sorrir

de imediato na varanda.

Será da minha parte

muita frivolidade?

Não acho, é frescura de esperança...

 Mas tenho direito a isso

como tinha a minha avó,

é uma questão de idade...

 

18 de Junho, 2024

 

Sunday, June 16, 2024

 CANSAÇO

Era tão grande o cansaço

naquela manhã de sol

sabia que seria sempre assim

uns dias bem

outros mal e sem explicação

hesitou em sair da cama

 deixar o conforto do colchão

como se fosse a cama de folhas

do Jardim, já preparada sobre a terra macia,

a terra a que o seu corpo pertencia

da terra tinha sido moldada

a ela regressaria

agora com o corpo pesado

de que o cansaço era já o sinal...

fechou os olhos

mas não para dormir

sentir apenas o suave conforto

daquelas folhas amigas

berço que alguém lhe tinha deixado

para que não estranhasse

esse momento do já esperado

 cansaço.


16 de Junho, 2024

 

 

 

 

Friday, June 07, 2024

Sérgio Ninguém, I do insomnia

 Este é um livro de poemas de edição de autor, cujo título se eu tivesse de traduzir me faria pensar: fazedor de insónias, como o escultor na pedra vai esculpindo as suas formas, que podem ser poemas, que podem ser insónias, nascidos, os poemas, de tais pedras, como os poemas que o autor escreveu em PEDRA I e PEDRA II ?

Sérgio oculta-se, não se revela a não ser para o fundo secreto de si mesmo onde como numa caverna arquetípica ( de Platão?) esperasse a última revelação.

A insónia não é para ele doença nem sofrimento, é um estado que lhe é natural e propício à criação. Não precisa de a provocar, ela está nele como a pedra na pedreira de mármore que irá ser trabalhada, oportunamente.

Ora em textos de reflexão mais longa, ora em poemas de influência Haikai, anuncia ao que vem. Não vem entreter ninguém, nem a si mesmo nalgum transe nocturno carregado de sonhos coloridos, ou mesmo só reduzidos a cores e seus significados, que se esbatem mal acorda e o deixam com a travessia do vazio da insónia, motivo central do que o leva a escrever. 

Mas esse seu conceito de vazio tem muito que se lhe diga e devemos ponderar, antes de seguir em frente nos poemas. É o Vazio do Tao, o Todo inalcansável, que antes de se materializar na Criação pairava sobre as águas que nos descreve O Génesis. Obriga-nos o poeta, nuns versos que parecem fáceis, ou simples, a uma meditação inesperada. Foi o fazer e desfazer da Insónia que permitiu a palavra do poema, e é o Vazio do Tao que nos permite o entendimento do Todo que nos é revelado.

  Cita Blake para nos ajudar a ver que é quando o nosso cérebro está lavado de tudo que se abrem as portas da percepção e revelam o infinito. Aqui está o exercício do Vazio que permite o infinito que é o Todo.

Sérgio é um poeta de grande cultura, assimilada, e a que a Insónia alarga espaços e tempos. Difícil? Não é razão para lhe fugir, antes pelo contrário.

Nasce talvez do estado de espírito que Jung e os alquimistas que estudou chama de nigredo, o primeiro dos momentos com que se inicia o caminho da iniciação: a alma ao negro. Travessia que pode levar ao suicídio, como numa depressão não cuidada, ao abandono, ao desalento da energia do pensar e do viver. É preciso atravessar, chegar ao colorido da cauda pavonis, a cauda do pavão, de penas  brilhantes que iluminam o que parecia treva e prenúncio de morte. Está ali o poema:

I am a wreck-

a little blue here

a little yellow over there

and in green I dream.

(p.52)

Desta fase, em que se atravessa o negro, nascerá a rubedo (a obra ao vermelho) que já permite sentir que a iluminação é alcansável, e será a "obra ao branco",  (albedo) na sua fase final.

A obra tem capítulos em que Sérgio não escapa ao severo olhar sobre o mundo em que vivemos, cruel, ávido de poder, por meio de matanças e guerras e que ele inclui na selecção que faz. Dói-lhe a dôr dos outros, como lhe dói a sua.

Mas a sua alma está possuída não do presente sofrido, inevitável, mas da pulsão que o verso mais contido e só esse lhe permite: o Haiku, que vai reunindo no conjunto dos Haikai  com que nos encaminha para o fim da obra.

Foi feita a travessia, o Vazio do Tao preencheu a alma que ambicionava o Todo, enquanto se refugiava no fazer e no viver duma insónia que agora nos é oferecida, a nós os dos olhos abertos, como no Mutus Liber: occulatus abis. Partes de olhos abertos.

Obrigada Sérgio, por esta tarde oferecida...






Tuesday, June 04, 2024

Partituras

 



Partituras:

A Música da Vida

partitura que ficará sempre

inacabada

Sunday, June 02, 2024

Despir a Casa

 

DESPIR A CASA 

Sim,

a dada altura começamos a despir

a casa

como quem despe o corpo

que se lava

para que esteja limpo

na hora de o levar

à sepultura.
 Por que morre uma casa

que em vida foi amada?

E por que a despem agora

um corpo envelhecido

mas que tem vida

que poderia ainda ser

um pouco mais prolongada?

Ainda tem sol a casa

e vozes de pessoas que conversam

e riem, são felizes, à medida

que recordam a casa

antes de ser esvaziada...

 

2 de Junho, 2024

Friday, May 31, 2024

Rimbaud em MAIO

 

É ainda o calor de Maio

no mês que está a acabar.

Vejo Rimbaud no chão

 estendido no milheiral

a preguiçar

enquanto não chega o Amado

e a sua hora de amar...

Rimbaud é jovem ainda

com palavras de esplendor

ali estendido ao calor

na alegria de viver

 o seu passageiro amor

o Amado não sabia

que o Maio iria acabar

e que ele arrependido

só saberia chorar

era pecado esse amor

que ele não conseguia esquecer

mesmo fugindo para longe

enquanto Rimbaud esperava

braços abertos olhando

um azul água do céu

em que podia morrer



Sunday, May 26, 2024

A Palavra

 

24 de Maio, 2024

Há já muito tempo que hesito em continuar com a escrita dos Sintomas, que parei em 2020. Adoeci e pensei não vale a pena, ninguém publicará, só se fôr de novo pelo createspace, que desde 2018 mudou o formato.

Não sei lidar com formatos nenhuns e o meu filho, que é perito, e rápido e seguro, agora não tem tempo, nem paciência. Faz coisas melhores do que ser massacrado pela incompetência da mãe, faz vela, e navegar é tão bom. O meu marido fez os cursos todos, e se fosse vivo ainda continuaria. O mar dá essa maravilhosa sensação de liberdade, limpeza absoluta da alma que a terra quotidiana impede. 

Assim dei comigo a acordar todas as manhãs com a mesma frase, até conseguir sair da cama: vamos lá enfrentar o dia. Que acabam por não ser um dia mas muitos, todos os dias, e sempre com esse pensamento ao acordar.    

Estar doente limita-me e é essa limitação que me impede de acordar bem, de desejar viver o dia em vez de o enfrentar. O dia tornou-se longo, maçador, sei que haverá muitas pessoas como eu na minha idade, a sentir o mesmo, talvez sem conseguir exprimir-se. Murcham devagar até morrer.

Tento enfrentar. Tomo comprimidos. Escrevo, quando consigo. Mas será que o que tenho ainda a dizer não é já redundante e não ajuda ninguém? Todos na minha situação não passam pelo mesmo? Ando por aqui, no blog, a falar de uns e outros quando os seus livros me tocam por especialmente interessantes e me acrescentam pensamento. 

Trazem uma nova ideia, uma nova imagem. Sou feliz quando penso, e consigo escrever. Assim enfrento o dia.

Não se iludam, não se trata de um combate, mas da ilusão de um prolongamento que terei de desejar em cada dia.

No fundo, não perder por completo, como outros mais desistentes, a pequena chama de energia que ainda se esconde algures numa dobra do corpo. 

Enfrentar, pois. Esse é o esforço de cada dia.

Em 2022 julguei que nunca mais seria capaz de escrever. Estranhamente, ao longo de 2023, comecei a escrever poemas, dias e dias a fio, sem saber bem por onde se teriam escondido antes, e tive a sorte de encontrar um editor, também poeta, que me publicou os três livros que lhe entreguei: DIZER, EXISTIR e VENTANIAS - todos com inspiração de um pintor amigo, o Pedro Chorão, cuja pintura, desde o primeiro ciclo que vi, me levou pelos versos dentro que surgiam.

Hoje os livros estarão esgotados, foram pequenas tiragens, a editora entretanto fechou, não se pode ser pequeno em Portugal, país que continua com a mania das grandezas, em tudo o que fazem querem ser os melhores e os maiores e não se apercebe, a gente do país, como isso é parolice, não é grandiosidade.

Publiquei ainda mais dois livros, CLARICE, uma mini edição de uma conversa, uma troca de ideias com a Clarice Lispector, que li e cuja obra acompanhei desde o primeiro ao último livro. Ela já falecida nos anos 70 e eu agora, nesta idade provecta. Posso dizer são oitenta e mais...mas o prazer que me deu esse pequeno ensaio foi imenso. Éramos espíritos afins. E o pensamento não tem idade, tem afinidade. 

E publiquei ainda, noutro editor, mais poemas, AINDA, com uma linda capa do pintor Asger Jorn, o grande dinamarquês do grupo COBRA.

O título fala por si: sim, ainda ando por cá, enfrento os dias, escrevo, e a escrita é a maior justificação. Uma neta e um dos filhos são os primeiros leitores.

Agora estou neste Maio de 2024, e preparo mais dois livros. De novo um mini-ensaio, revelando o segredo de uma história de amor que a Guerra interrompeu, entre Asger Jorn e a minha tia Guenia, pouco tempo antes da invasão de Paris pelos Nazis, e outro de poemas, de que o Bernardo, o meu filho mais velho, quer escolher alguns para compôr.

Já escolhi o título, DEVAGAR. Porque é assim que tenho enfrentado os dias, e quando calha um momento feliz, uma hora de estrela, diria Clarice, nasce não sei de que fundo oculto, mais um poema.


26 de Maio

Hoje mais uma notícia triste, das que se tornaram recorrentes, morreu mais uma pessoa da nossa, minha geração, mulher de um amigo nosso, quase família, pela ligação ao Jazz. Farão os media a evocação que ele merece, dando-lhe as condolências de ocasião?

Penso se a mulher faz mais falta ao marido ou o marido à mulher? As filhas são meigas com os pais, espero que ele tenha esse apoio neste momento.

Estou a escrever por aqui porque o portátil é mais cómodo para mim neste momento.

Na verdade isto deveria ser um Sintomas III, mas escolhi a Palavra porque acordei de novo com essa palavra agora definitiva, enfrentar...

Deixo assim, mas mantenho as datas, porque é de um diário que continuo a escrever, na continuação dos outros.

A limitação, a dependência dos outros é o que mais custa a suportar, embora se finja que não, para não estragar o ambiente que se deseja que pareça normal. 

Que pareça, porque nada já é normal, no ambiente que rodeia um doente com dependência. Ele poderá rir, mas não é o riso de outrora, genuíno. É riso de enfrentamento, embora o alegre que faça rir quem está consigo, e que deseja o sossego de saber que está bem disposto.

No fundo, trata-se de sossegar os outros, e quando eles vão embora de regressar ao estado de abandono, que de verdade é o que sente. Abandono, não deles, filhos, netos ou amigos, mas da vida. É a vida que nos abandona, por muito que enfrentemos os dias, um de cada vez.



 



  




 

Friday, May 24, 2024

AQUELE

 

AQUELE

 Por onde anda

que não vejo

aquele que não interroga

mas que o silêncio

em suspenso

nos obriga a procurar...

por onde anda

 espaços onde se esconde

faz-nos falta

mas não podemos falar

as palavras não ajudam

cada momento é especial

não o devemos quebrar

 

24 de Maio, 2024

Tuesday, May 21, 2024

Leituras

 Leituras

Que leitura no dia de hoje

me ajudaria

mais do que não fazer nada?

Estou farta de leituras

e também já estou farta

de nunca fazer nada.

Oiço Pollini ao piano

uma Fantasia de Beethoven

que ainda não conhecia.

Melhor que um livro

sem dúvida, 

a música entranha-se

sem esforço.

Mas o que deixa no fim

a quem perde a memória

de cada nota tocada?

Valia mais a leitura

ou ficar sem fazer nada?

21 de Maio, 2024


Wednesday, May 15, 2024

Luís Bento, DEBAIXO DE TODO O PESO, o Tempo é um processo com brechas

 

É sempre uma grande responsabilidade aceder a um pedido que parece simples, mas não é. Dar opinião sobre um texto, poesia ou prosa que um autor hesita em publicar, tentando uma editora que o aceite, ou, no caso de recusa, uma edição de autor.

Na minha idade, que tive de tudo um pouco, aceitações, críticas boas, silêncios e críticas menos boas e sem me importar muito segui em frente, escrever era-me necessário, dissessem sim ou não, só tenho um conselho como o que Rilke deu a um jovem poeta: se sentes que é vital para ti, escrever, escreve, escreve sempre, é a tua vida que está em jogo. Mas se por acaso não é isso que sentes, então não escrevas, faz outra coisa, há muita outra coisa mais útil para fazer no mundo...

Eu sou se calhar menos severa, mas também os tempos são outros e eu própria já nem sou muito deste tempo... 

Falemos então deste livro de Luís Bento: o título ajuda, por uma vez reflecte sobre o tempo, mais do que sobre o corpo e suas exigências de ser corpo e ser humano (conceitos e experiências que atravessaram um pouco o ano de 2023, em alguns autores). No caso das vivências do corpo, teve antecedentes vindos de um passado já longe, agora que se vive tudo de forma tão rápida e efémera: Luís Pacheco, que não hesita no palavrão (mas sou eu, aos 84 anos, com uma escolaridade que proibia os neo-realistas...) e Herberto Helder que não hesita com coisa nenhuma, traz uma orgia de imagens, uma originalidade  de associação meio surrealista, meio irónica, meio tão lírica que faz tremer o sangue que há nas rosas...e Luís Bento, na sua poesia, traz ao nosso convívio de leitores para que algo mais se acrescente às rotinas de um quotidiano que hoje em dia, tempos difíceis, todos partilham.

Estamos perante uma poesia de estilo narrativo, muitas vezes alargando-se mesmo em curtas descrições que não sendo prosaicas são mais do domínio da prosa do que da poesia, pois a prosa permite alargamentos que o poema prefere exprimir de forma condensada, e buscando, no descritivo e no detalhe do pormenor a realidade ou o seu palpitar secreto, que ali revela e esconde o que vive o poeta.

E vive mal. 

As brechas do seu tempo são feridas mal curadas num mundo em decadência, duro, difícil de aceitar para quem de vez em quando sonhou. Não tanto com um amor duradouro, eterno, feliz, mas com uma simples relação de fugitivo prazer. O olhar do poeta sobre o real à sua volta endureceu, e o seu tempo, quando sente que é seu e não lhe foi roubado, deixou arrefecer ainda assim o que podia vir a ser algum sentimento de maior leveza, sob o peso que refere no título.

Gosto de dar atenção aos títulos, porque ali se escondem, tantas vezes, os verdadeiros fios da leitura.  O que lhe pesa, na vida que vive, tem apesar de tudo uns momentos: as brechas que o libertam e lhe permitam a revelação da escrita, ou do poema.

A influência dos Haikai tanbém neste futuro livro está presente. Os versos curtos, contidos, a lição ou a reflexão que pode ser moral, ou mesmo irreverente.

Voltemos ao título: o que diria Heidegger, no SER E O TEMPO?

Para Luís parece evidente que é a brecha no tempo que permite a existência do ser. A brecha no eterno imaterial permite a materialização que é a do ser humano. A criatura que surpreende, na sua evolução que poderemos ler em Hariri, cuja curiosidade manchou no Éden um tempo que não teria peso, seria de eterna leveza, descontraída e feliz numa inocência que nada devia ter interrompido.

Mas este tempo de Luís não é virgem, a inocência perdeu-se logo nos primeiros momentos da criação, e agora as criaturas que habitam o planeta manchado sentem não a leveza prometida mas o peso de um eterno mal, o do tempo que tem brechas, mas que foi desviado. 

Um post não permite o alargamento de uma página de jornal, por isso não farei como faria normalmente algumas citações dos diferentes poemas em que se mostram diferentes realidades. Escolho um de inspiração oriental, que podia ser de um monge taoísta, ou de alguns poetas japoneses do século XVII mais conhecidos porque já traduzidos na nossa língua, um Bashô ou um que me foi trazido agora, Ryokan, que o Luís gostará de ler, a edição é muito linda e cuidada.

Fiquemos com o Luís: 

NOITE

Esta noite traz vinho

e poesia,

Antes que a angústia nos silencie a voz

e eu não saiba o que fazer comigo.























































 

  

 

Thursday, May 09, 2024

Não nego

 Não nego.

Há dias

em que a ausência

é tão funda

que não há distracção

não há pastilha 

que traga de novo

côr à vida.


NÃO SOU EU

 Não sou eu

é o dia

que está a entristecer


9 de Maio, 2024

Monday, May 06, 2024

Preparação para a Morte

 

OS FILHOS E AS MÃES

Devagar

quase sem dar por isso

há já algum tempo

que estavam a preparar-se

com um afastamento

gradual, quase invisível

mas que as mães sentiam

dia a dia aumentar.

Os filhos não sentiam a falta

entravam e saíam

com naturalidade

e às vezes passava-se

um tempo maior e um silêncio

que elas não interrompiam

pois esse afastamento

fazia parte da vida

e da preparação que a vida já pedia.

As mães sentem que está ali o dia

mas aguardam caladas

não querem que os filhos

antecipem a hora da chegada

uma hora que não sabem marcada

seria estragar a rotina dos dias

e da tranquilidade

que nem sempre lhes é

dada, vivem tempos difíceis

que um dia serão lembrados

e falarão da mãe, do dia especial

que no Dia da Mãe era costume antigo

celebrar.

Crianças, com prendinhas e desenhos

adultos já com filhos e netos

um almoço ou um jantar

que a todos reuniam, ou não podendo ser

um breve telefonema, para num outro dia

combinando lanchar.

 

6 de Maio, 2024

 

 

 

 

Sunday, May 05, 2024

Liberdades

  

AS LIBERDADES

Passaram 50 anos

mas faltam ainda mais 50

ou mesmo 100, quem sabe

os homens tomaram a Liberdade

de assalto já no ventre da mãe

não corria lá sangue

nem o amor natural

das criaturas

apenas uma água suja

impura

deram aos homens uma batuta

por dentro tinha um bastão

nasceram com eles na mão

e hoje são prepotentes

como todos os outros foram

em todos os momentos

que os antecederam

 

5 de Maio, 2024

 

Kantorov

 


O SOM DO PIANO

(calhou ser KANTOROV)

De manhã

Só o som do piano 

o deslisar suave dos dedos

nas teclas que obedecem

acalma o coração desabrido.

Por que razão bate ainda

tão atento a um som tão escondido?

Só o som o acalma

e deixa adivinhar

quem sabe um dia mais tranquilo.

Correm os dedos tão finos

como patas de aranha

tecendo os seus segredos.

Bate o sol nas cortinas

e pousa na varanda um pássaro fiel

mas atrevido.


5 de Maio, 2024

Saturday, May 04, 2024

A Mulher e o Gato

 

 A Mulher e o Gato


Reparo primeiro na mulher.Bastete – Wikipédia, a enciclopédia livre

Sentada no seu jardim

com jacarandás já floridos

à sua volta tudo ainda era seu

e ela uma incarnação renovada

traços tão estilados sem uma ruga sequer

nada que lhe abalasse a  voz

no momento de responder.

Estava a ser entrevistada, sem temor da sua imagem

que não seria deformada, promessa feita e cumprida

naquela tarde tão livre, tarde tão sossegada

que o tempo lhe tinha dado

e ela agora aproveitava sem saber ainda ao certo

que destino o tempo lhe reservava.

Orgulhosa de si

também pouco lhe importava,

dizia na entrevista tive tudo o que queria

que mais posso desejar?

Ao seu colo um gato enorme

dos que o meu filho, que tem um igual ao dela

chama de gato leão, também ele incarnação

do livro dos mortos egípcios

antigo guarda do templo que agora a guardava

a ela, quem sabe sacerdotiza da antiga religião

que nela se revelava.

Não era o gato de Alice, o quântico imprevisível,

era o gato que à mulher se agarrava como criança

perdida e que dela dependia na sua nova função.

Mal lhe cabia no colo, mas tinha a pata bem firme

bem junto ao pescoço do mimo, com a cabeça encostada

que beijava para lembrar que era ele o guardião

a mulher a sua presa, livre do templo de outrora

onde ambos ainda vivos viviam em comunhão.

Agora a vida era outra, mas não se engane ninguém,

a mulher não era a dona, era o gato o seu senhor

que dava calor e mimo, e a protegia dos medos

que de noite a afligiam e a enchiam de terror.

 

4 de Maio, 2024