Tuesday, September 10, 2024

JUlián Ríos, Puente de Alma, ed. 2009

 O seu primeiro livro, que li ainda em Madrid, numa estadia em que fui falar da obra de Fernando Pessoa, os inéditos sobre ocultismo e esoterismo em geral, deixou-me logo "agarrada", pela invenção, criatividade e originalidade. Não havia nada de semelhante no que tinha lido até aí. Ficámos a conhecer-nos melhor no jantar que o meu cunhado, João Aurora, ofereceu nessa noite, na Embaixada de Portugal. No dia seguinte foi o Julián que me convidou para um café. Falámos de tudo o que líamos, de tudo o que gostávamos, e já tínhamos lido, coincidindo como era de esperar na obra de Joyce, que eu já tinha devorado e em que ele se inspirara, sendo o mais Joyceano dos escritores que li, até hoje. Falou-me da escrita feminina do antigo Japão, os contos de Gengi, de Murakami (séc. XII) e as reflexões por vezes severas, críticas, das Notas de Almofada de Sei Shonagon, do mesmo século, mas de olhar bem diferente do de Murakami. Eu, com grande espanto dele, nãs conhecia, mas cheguei a Lisboa e encomendei logo. Hoje conheço. E como já era moderna a prosa feminina naquele tempo da corte japonesa!

Julián brincava, no seu texto, com as notas de almofada colocadas ao lado do corpo principal, e a nós de decidir se parávamos mais no principal ou nas notas...afinal íamos parando em tudo o que a página nos oferecia. Rara capacidade de absorção de um corpo alheio, feito de palavras e de uma reflexão permanente sobre o que isso significava.

Têm corpo as palavras na obra de Julián, têm sexo, ora se abraçam ora se despegam, a contragosto, umas das outras, procurando em devoração polígama, outras que as substituam. Reais? Imaginárias? Mas nada mais de dentro do imaginário oculto do autor do que aquilo que escreve. Inventou a sua fórmula, que não esqueço: escriviviendo.

Aplica-se a todos os que escrevam, dando a vida pela escrita, escrivivir. 

Assim me sinto, quando  escrevo: forma de vida, ou morte se não resulta.

A escrita - junto com a leitura- alimento - sustenta a prosa de Julián.

Serve tudo o que a imaginação lhe traz à boca, voraz e sem contemplações. Mastiga, absorve e devolve para nós algo de transformado, comida feita na altura, nele não há pronto a servir, o que é servido foi primeiro muito preparado. Difícil? Muito. Reler tantas e tantas vezes. Mergulhar não tanto no sentido, por vezes aleatório (bebido no surrealismo) mas na corrente de pensamento, mergulhar fundo, deslizar com ele, para chegar ou não chegar a nenhum lado.

Que pode ser algum lado...e passamos então para o seu livro de ALICE, obra que também a mim me seduziu, anos a fio, até que percebi o seu lado excêntrico, quântico, e me fixei no gato que ora está ora não está, como suprema imagem do que afinal todos somos : vivos, mas tão perecíveis como se já a morte fosse já a nossa substância primeira.

A minha Alice surge na ópera, na pintura, nas múltiplas variações. Talvez seja Bob Wilson o meu preferido. Mas Julían usa os múltiplos chapéus com idêntica dignidade, a de ser, ou poder ser e não ser, conforme.

Leio agora a sua PONTE. Que imagem mais complexa, lembra-me a TERCEIRA MARGEM do conto de Guimarães Rosa.

Houve antes a ponte de Goethe, no conto da Serpente Verde, ponte alquímica, unindo as duas margens do rio como um todo concebido para servir os povos de um e outro lado, em comunhão.

Mas não espero nada disso em Julián: espero separação e desordem, pandemónio, como na Babel de Larva, perigo iminente de ruína, como nas almas que se entregam e se perdem, elas próprias, nas confusões do ser.

Ser é penas isso, não é saber.

Está por aqui uma outra noite de São João, parisiense, muito com os tiques da moda dos eventos, onde todos se desejam presentes, se espreitam para novas relações logo desfeitas. Não é uma noite de inspiração shakespearana, rica de magia e ilusão, nem muito menos pessoana, embora Julián me tenha dito outrora que admirava muito a obra de Pessoa. Este seria aqui mal vindo. 

Conceptual, pensador filosofante, com ele o texto seria de conter e nunca de contar. E Julián, vertiginoso, quer contar, e no ritmo do que conta arrastar-nos com ele. Assim descobrimos que a alma aqui é a PONT d'ALMA, em Paris, onde os festejos da noite babélica decorrem. Nada de simbolismos, tudo de pós-modernismos e para lá disso, se a correria permitir. 

A sua prosa não é de conter, mas como já disse, de contar.

Abrir os grandes portões dos impulsos, das visões, dos desejos. Sendo que o centro é o corpo, não a alma, que anda desviada por aqui. O corpo que se esgota nos arremessos da escrita.

Uma escrita que vou descobrindo em acumular de nomes, de personagens, de situações que se cobrem por vezes de ridículo para quebrar empatias. Não há aqui sentimento e pergunto se pode haver mesmo desejo. Talvez o rápido e fácil, que não prende, embora arraste, mas só isso. 

Não se cansa, o autor? Não, porque já vai ele mesmo arrastado na corrente que soltou. Teremos de seguir com ele, sem saber como, nem até onde. É preciso amar esta prosa, é preciso amar tanta cultura e invenção. Julián não quer mudar o mundo, rola com ele e irá se fôr preciso até à exaustão. 

Agora mudo o discurso, passo a escrever-te uma carta, que nunca escrevi, a muita, de que me lembro foi ao Henri Michaux, que conheci bem, me ajudou com as pesquisas para a minha tese, que encontrei tantas vezes em Paris, que trouxe a Lisboa para uma exposição na São Mamede, que a pedido dela apresentei a Natália Correia, a diva da revolução portuguesa. Mas em geral sou reservada.

Agora, que a nossa geração se vai devagar, ora uns ora outros, extinguindo, e que tu, um ou dois anos mais novo do que eu também és dessa geração, preciso de notícias, desde o ano em que nos falámos pela última vez. Arredores de Paris: quais e porquê? Estarás de pincel na mão, à frente de uma enorme tela, como as de Robelin, ou Anselm Kiefer no intervalo da escrita e seu tumulto? E estarás bem, pergunta óbvia que agora todos fazem, por bem ou por obrigação? Se escreves estás bem, mas estarás, como eu, diante daquela porta que se encontra ainda não aberta, mas entreaberta, rangendo um pouco, na espera. Dá-me notícias , eu não sou de massacres, mas tenho gosto em que percas uns minutos a ler o que escrevo. Leio menos romances, teriam de ser empolgantes, como este teu de agora e não há, entre nós. Quando falámos a Inglaterra, Londres, era a tua matriz. E continua, embora estejas em França. Porquê França? Um Rabelais, o seu livro cinquième, pouco estudado, porque muito hermético, chamou a tua atenção? É-me difícil situar-te em novas leituras, de Lautréamont já falei e da sua cópula com a tubarão gigante. O elemento Água, diria Bachelard, que conheces. Mas os  outros? a Terra certamente, és elemento terra e de terra moldas as tuas personagens, com aquele primordial lodo que no Génesis é descrito e a humanidade nunca mais sacudiu de si. Lês, nos mitos primordiais, como a Jeová foi difícil chegar a um modelo aceitável para Adão, que recusou as primeiras tentativas. Escrevi em As Mulheres de Adão a esse respeito, mas ficou no meu blog de literatura e arte. Como era fácil no outrora dos tempos, conversar, discordar, discutir com as divindades.

E agora tu, com que divindades da palavra te envolveste neste últimos anos? Menos com Diónisos ou Baco noutra versão, a romana, que não desejava a cidade ordenada e se viu enfiado numa cavalariça (encenação em Berlin, de Peter Stein)  o deus das orgias, o das bacanais que na dança frenética das Bacantes despedeçariam o rei ordenador.

A escrita como desordem, a escrita como dança e delírio das palavras, não cabendo nas tábuas de Moisés, nem noutras que se pudessem conceber, nesta definição de pós-modernismo que tudo aceita, tudo relativiza, e embora seduzindo é de pouca duração. Em breve sairemos da Waste Land para outras paragens. 

Pensando em Portugal só me lembro de Agustina, seus Ternos Guerreiros ou Os Incuráveis, para teu contraponto de escrita de arrastão. Ou os surrealistas, mas da tua França de agora já tens que chegue, não seriam novidade. Do Brasil? Ah, tanta produção. A última obra de que me ocupei foi a Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Foi mesmo a sua última, morreu pouco depois.

Estará esta tua Ponte de Alma, perto da sua Hora da Estrela? Ou é de novo um recomeço, um arremesso, que bate contra nós, a sociedade, com a ironia de um Proust ou de um Wilde e seguirá em frente, num comboio japonês de alta velocidade que leva consigo todos os Eus possíveis?

Eis-me no capítulo VII, OUTRA VIDA.

Nem de propósito...pois de outra vida se trata, pelos menos para mim há já algum tempo e para ti, que passeaste por uma Londres amada, a seguir à tua Galiza onde nasceste e por isso me lês em português e a Madrid, a respiração da criatividade. Descobriste a França da pintura, da literatura surreal, das brincadeiras dos OULIPO, e chegas a uma das minhas pátrias muito amadas, a Alemanha! É mesmo outra vida, a grande cultura, teatral, musical, filosófica, literária...estiveste convidado como só eles sabem convidar, em residência. Aí me reencontro agora, de longe, no que dizes. Eu fui muitas vezes à Bienal de Bona, onde confluíam os encenadores do mundo, tantas outras à Philarmonie, de som único, inesquecível, ao teatro e da ópera, já depois de Berlin livre, do mais experimental ao mais clássico em tudo me reencontrando como agora dizes que te encontras. Livre e realizado, escrevendo sem pressão.

Diriges-te ao teu caro Mestre, de Yoga, como eu outrora a Michaux e a Perrot, meus mestres de alquimia. Anos de aprendizagem, como no Wilhelm Meister...e segues com a tua narrativa mais tranquila, ainda é rio, mas corre mais suave, não te afogas nem afogas os outros. É o efeito da música. Nunca te veria, nem tu (a coisa do Yoga foi mais piada do que outra coisa, tu serias mais do Kamasutra, isso sim, mas não vamos por aí) procuras no desfilar de nomes as reacções de quem reconhece, dizes Munch, eu vejo o Grito, dizes Mãe Coragem e eu vejo todo o Brecht que traduzi, passas para a discussão do que é ou não um género literário, os alemães adoram discussões teóricas, tu nem tanto, e embora não refiras o movimento estás com os Internacionais Sensacionistas, os fundadores do grupo Cobra, e outros. Uma arte de expressão social, universal, que toque em todos, e traga uma nova Vida. Com que então a Alemanha, a sedução musical de Berlin, tão amada!

Recordo Celan, a quem perguntaram um dia por que razão escrevia na língua do inimigo. Não há inimizade nas línguas, todas as palavras são  puras e nuas à nascença, nós é que depois as vestimos de negro, ou de ouro. E de chamas douradas falará ainda, mais adiante, o nosso Julián. 

Mas fico por aqui.   












Thursday, September 05, 2024

José Luís Ferreira, E é Tremendo o Desejo de Mar e de Tempestade, ed. 5 livros, 2024

 Tenho em mãos, em simultâneo, dois livros, um sobre o qual já trabalhei, para expôr na obra um grande artista, na arte da pintura (fundador do grupo COBRA, que depois abandonou por achar que a novidade se estava a esgotar) e no exercício do pensamento livre e aberto a que chamou de Situacionismo, com escritos que foram mais recentemente compilados num volume único, em francês e de que já existe também uma edição em castelhano. Trata-se de Asger Jorn, dinamarquês, que vai para Paris em 1937 juntar-se a outros, todos modernistas, que desejavam conhecer e trabalhar no atelier de Férnand Léger. Falo dele no meu livro, também deste ano de 2024, a editar pela glaciar: GUENIA /ASGER.

O outro livro que tenho à minha frente, acabado de ler, é de um autor sobre o qual escrevi já neste blog, José Luís Ferreira, E é TREMENDO o DESEJO de MAR e de TEMPESTADE. Primeiro elogio, o da edição cuidada, de letra que posso ler, mostrando que deseja ser lido, sem poupar papel, mantendo no entanto uma dimensão que fica agradavelmente fácil de segurar na mão.

Não faço crítica literária, por princípio, sendo eu também escritora. Escrevo aqui no blog, a minha leitura dos autores que me vão chegando. Naturalmente ora gosto mais de uns, ora de outros, e até do mesmo autor. Pergunta-me o José Luís se gostei deste seu livro, pois tinha referido aqui o anterior.

A resposta é simples, e pode não agradar: não se trata de gostar ou não gostar. Trata-se de ver, ao ler, em que consistiu a mudança, a diferença, o acrescento e a novidade que nos traz, neste novo exercício de escrita. É uma escrita muito intencionalmente surrealista, " de criação aberta" diriam os Situacionistas, de fluxo do inconsciente, desarticulado, em que o narrador assume uma voz de mulher (quem sabe na senda de um Joyce, com a sua Molly Bloom? ) algo que Clarice Lispector, sobre quem escrevi, faz em sentido contrário na HORA DA ESTRELA, a narração passando a ser de voz masculina, e a que eu na altura achei que era um subterfúgio pouco convincente, pois por trás dele se sentia a voz sempre filosofante da autora.

Se não fosse buscar Joyce, poderia trazer a este nosso convívio um outro grande criador, Julián Ríos, de que saiu agora, de LARVA, sua obra-prima, a tradução portuguesa. Um imaginário solto, eivado de ambiente surrealista, capaz como Joyce, de inventar e alterar o sentido das palavras, quando isso lhe era útil, sem nunca no entanto deixar que se perdesse, no emaranhar da narrativa, o seu fio condutor, que não se perde.

Ficando com José Luís e o seu exercício proposto, de voz feminina, que ora alude ora não a momentos do seu passado ou do seu presente, da juventude apaixonada por um Ele que nunca adquire contornos definidos, ou de uma idade madura em que os sentimentos e os desejos com o tempo se transformam, que podemos dizer?

A narrativa é voluntariamente desarticulada, descontinuada, levando o leitor a interromper o que estaria pensando, ou concluindo, sobre o texto -pretexto - oferecido. Cultiva-se a contradição, a ambiguidade, a repetição na abundância de imagens que podiam ser estas ou outras, e não se ganha, pois não estamos com O'Neill, um passo a mais no estilo que se escolheu de irónica brincadeira. Tudo nessa voz inventada de mulher se prende mais ao trágico, sem o ser. Ao desejo do outro, sem o ter.

E se alguma coisa podemos procurar é o ritmo, que havia no livro anterior e aqui não encontramos, pois não é o que a sua prosa rápida nos pede.

Então o que nos pede? Uma adesão incondicional a este novo modelo (que não é novo, já vimos) e que não perderia força se a voz fosse a natural do autor, transposta para um narrador, seu alter - ego - que em toda a Situação alargasse o seu pensamento, livre ou mesmo libertário, a um espaço para ele novo, e para todos, tornando-se universal, inovador.

Modelo aberto, reversível, ao gosto de autor e leitor, na definição dos antigos, cada vez mais modernos, Situacionistas, cujo pensamento libertador acompanho.

Até que....como diz o Luís!



  

 



 

Monday, September 02, 2024

CORDAS

 CORDAS

São cordas

e são muitas

invisíveis

ocupam todo o espaço

em nós de marinheiro ou

entrançadas

quem se enrola nas cordas

ou se desdobra ou

não volta nunca mais.


Sunday, September 01, 2024

Era bom...

 Era bom

que se pudesse morrer

sem sofrimento e sem dôr

era bom 

que se pudesse morrer 

devagar e sem saber

para onde se é levado

para a cova ou para o mar

ou para a fogueira ardente

somos tão pouco afinal

nunca chegámos a ser 

qualquer coisa como gente

que se conhece  e quer mais

do que um prato de lentilhas

ou de migalhas de um bolo

sobras na mesa esquecidas

1 de Setembro, 2024

Saturday, August 24, 2024

CAVALOS

 

CAVALOS

Havia cavalos no meu sonho

cavalos saídos da sombra

que eu era obrigada a tratar

eram cavalos-ideias

que eu levava entre pessoas

que não nos deixavam passar

 Difícil era o regresso:

cavalos à sua sombra

eu a ter de acordar


24 de Agosto, 2024

Thursday, August 22, 2024

CELAN

 


CELAN

(para a Teresa Martins Marques)

O seu olhar não descreve

recupera os pedaços que sobraram

da destruição impiedosa e sem perdão

a que foi assistindo sem a poder impedir

tão jovem que ainda era, e ali mesmo

foi envelhecendo sob um céu tão cruel

tão vazio que o nome de Deus já não se via

mesmo o seu Deus tinha desviado o olhar

assustado e sem poder fugir  e o jovem Celan

se fugisse para onde iria, ele agora perdido

entre os pedaços dos corpos que mesmo sem querer

tinha de nomear, como se nomear lhes desse vida.  

Saturday, August 17, 2024

Paixão II

 


PAIXÂO II

Em casa entristecia.

Era de noite

já não estavas ali

nada dizias.


17 de Agosto, 2024

Paixão

 Caminho devagar para o fim do meu livro de poemas 2024.

Publico o que nunca antes teria publicado.

Mas sinto que posso agora dizer o que senti e mantive em silêncio. É um poema breve que corrigi, lendo os vários prints que ia fazendo até chegar à solução mais simples, directa à verdade do coração. Verdades que se escondem, nem sabemos porquê. Antecipei o dia 10 de Setembro, do nosso casamento,  em 1964, e o dia 22 de Novembro, de 2022 em que morreste.


PAIXÃO

Dei-te um nome

paixão.

Nunca o disse

em voz alta.

Sofrias

não te queixavas

e eu sentada ao teu lado

não adivinhava

16 de Agosto, 2024


Friday, August 09, 2024



AGOSTO

Fim de dia macio

sentimo-lo na pele

é um calor amigo 


9 de Agosto, 2024

 QUIETUDE

 Penso na quietude

quando me entrego à música

ao silêncio

que existe dentro da música

ou de algum quadro que aprecio

em especial e revejo muitas vezes

como se folheasse um livro

já tantas vezes lido, mas em cujas páginas

me sinto protegida do ruído exterior

que vai corroendo as nossas vidas...

de que ansiedade nasce tanta agitação

tanto ruído, tanta pressa num quotidiano

que não chega a ser vivido plenamente

é tanta a exigência, perdem-se os pormenores

as entrelinhas mais preciosas do que as linhas

que nos empurram na vida e fariam se pudessem

da vida uma outra vida, de quietude e silêncio

esse tempo negado porque a pressa o apaga

e o que seria um poema é corpo atropelado.

 

7 de Agosto, 2024 

Sunday, August 04, 2024


 VIVER BEM.

Este foi desígnio do Senhor que concebeu os espaços:

Escolher as cores, os tons suaves,

 sóbrios, que dão tranquilidade

ao corpo que se estende cansado

depois de uma viagem que aspira

àquele momento de fim de tarde esbatido

tardio mas feliz, porque será bem vivido

até que o tempo se esgote e algum regresso

se imponha. Viver bem entretanto é o que

os deuses concedem e até o regresso deixa no ar

a certeza de que haverá outro dia, outro final de tarde

outro voltar. O Senhor dos espaços teve o cuidado

de rasgar aberturas nos telhados e nos terraços

que se alongam sobre um chão desenhado

macio também ele para o recém-chegado.

Ali se pode ver o céu, se pode andar descalço

esquecer que o Abencerragem fora o rei maltratado,

e escondido nas grutas do deserto sonhava também ele

 voltar um dia a ser amado. Sonhava com uma lua nova

e com as ondas do mar que ali se ouviam e o poderiam levar.

Viver bem, amar e ser amado, num espaço aberto ao tempo

que assim foi desenhado.

 4 de Agosto, 2024

 

 

 

 

Friday, August 02, 2024

As Sextas-feiras

 As Sextas-feiras

 

É Sexta-feira. Mais uma.

Acordo a pensar por que razão

terá esta Sexta-feira mais importância

do que as outras em que nunca pensei?

Porque antecede um Sábado

em que também nunca pensei?

Antes íamos por vezes ao fim da tarde à praia,

havia menos gente, a água estava quente e ficávamos

para jantar no único restaurante ali mais perto.

Horas pacatas, com ou sem as crianças

conforme os programas que se tinham feito.

Já não existem esses tempos, que corriam tranquilos

como a água dos rios para o mar. Sem pressa, o mar não fugiria.

E a Sexta-feira de agora parece tão apressada, como se receasse

 não chegar ao Sábado anunciado.

Ora eu, ainda mais que essa Sexta que me pesa, ao acordar,

 não é do Sábado que tenho medo, e da sua manhã tardia, mas das outras todas que ainda faltam, que não sei quantas são, nem o que delas, se nascessem, faria.

 

2 de Agosto, 2024

Sunday, July 28, 2024

O livro da Vida

 Agora folheamos com mais facilidade

o grande livro da vida meio-aberto

à nossa frente. Página a página

foi sendo aberto ora por nós

ora por outros a quem fora dada essa incumbência

sem que a tivessem pedido

como nós agora também não estamos a pedir

mas que as palavras impõem, antes que deixemos

 de as saber ler, e antes ainda de as saber dizer

confundindo coisas e letras, esquecidos que ficamos

que para cada coisa há uma palavra que é antiga

e temos de a conhecer.  Tem de ser lida como a vida

 terá de ser vivida.

 O livro surge-nos feito de letras, e vamos de letra em

 letra descobrindo palavras, as mais importantes com segredos

que são muitos e não podemos deixar que passem despercebidos.

Que segredos são esses saberemos no fim, depois de folheado

o livro todo até àquela página final em que algum Anjo assina

o nome que faltava, que algum deus outrora tinha dado

mas sem dizer a primeira palavra, nem a primeira letra 

sequer, a letra que começava.




Saturday, July 27, 2024

ISABEL

 

ISABEL 

(in memoriam)

Agora dormes

finalmente tranquila

foram limpas com o tempo

as pedras do caminho

não cairás assustada

pois o caminho agora

foi semeado de estrelas

pela mão do Amado

que te aguardava já

com o teu Anjo ao lado

24 de Julho, 2024


Monday, July 22, 2024

A JUVENTUDE

 

A JUVENTUDE

(para a Joana, nos seus 25 anos)

Seduz a Juventude porque é bela

seduz porque ilumina a nossa vida

a nossa estrela

Sunday, July 21, 2024

O que sou eu

 

Fosse eu a Oliveira de Creta 

e onde enterraria a minha raíz

para que não fosse cortada

e eu nunca mais crescesse

de copa elevada para os céus?

Nem toda a terra é fecunda

nem toda é venerada

como aquela que ali ficou

regada por sangue oculto

e cada vez mais se aprofunda...

Friday, July 19, 2024

 A OLIVEIRA de CRETA

Não foi certamente por acaso

que alguém me colocou no Facebook

a imagem da oliveira de Creta

com mais de dois mil anos

e que ainda está viva, pois dá fruto.

Foi para me mostrar neste dia

em que estou abatida

uma imagem especial de força

e resistência.

É essa força da natureza

 a força que nos dá o exemplo

do que deve ser sempre a nossa vida.

Não é perfeita a vida que vivemos

mas tem de ser plenamente vivida

terá de dar sempre fruto

estejamos ou não ainda vivos,

alegres ou abatidos.

A vida é na natureza vida eterna

é de terra de água e de raízes

tão fortes e penetrando tão fundo

que do lado de lá tocam o céu

negro e em chamas

que algum fogo alimenta

no seu ninho de estrelas

onde se formam os corpos

que ao partir

renovam as suas vidas

e lhes dão permanência

18 de Julho, 2024

 

A VIDA

 

 A VIDA

Nascemos sem saber.

Não pedimos a vida

foi-nos dada por um deus

que em nós quis ver-se

 ao espelho

onde não via nada.

Depressa se cansou

da sua imagem

quebrou o espelho

que perdera o encanto

e de novo tenta refazer-se

noutra imagem.


19 de Julho, 2024

Wednesday, July 10, 2024

Rui Couceiro: A morte, os medos, os fantasmas e as formas


 

A nomeação de alguns intervenientes surge, e dá substância ao discurso que estava, na continuação da narrativa, a tornar-se muito abstracto, numa prosa tão figurativa e realista.

Assim Luísa é a amiga a quem a narradora se dirige, Elisabete é o seu nome, abreviado em Beta pela avó, surge um amigo que orienta com bons conselhos, o Dr.Belarmino e a inefável e sempre presente já a conhecemos bem, desde o início, D. Lisete. Define-se como uma alcoviteira de Gil Vicente, mulher que leva e traz, ou a vizinha que no Fausto de Goethe propicia o encontro fatal entre o herói amaldiçoado e  Margarida que se tomará de encanto por ele e por isso, no Fausto I, será condenada pelos humanos ( cometeu o crime de infanticídio) mas redimida por Deus. Com Goethe, onde há amor há perdão.

Mais corriqueiro nos vai parecer o caso de Beta. Amava e era amada pela sua avó, e para uma criança, e mesmo para um filho, uma avó prefigura uma espécie de eternidade, poderá adoecer, envelhecer, mas morta nunca se imagina. E contudo morrem...

Beta perdeu a sua avó e agora é acometida de visões, ao fim do dia, quando vai para casa, e de súbito lhe aparece uma forma que evoca essa presença ausente.

A forma é de susto, é feia como uma bruxa, maltrapilha de roupagem, deitando um cheiro nauseabundo que Beta não suporta, e na narrativa surge assim: " Diante de mim estava uma figura baixa, curvada e toda vestida com uns andrajos pretos. (Não preciso de trazer de novo para esta figuração a fase dita de nigredo, e que faz parte do processo de evolução, na psique do adepto, da sua Anima). Continuando: " Parecia ter-se besuntado com um unguento fétido, porque o cheiro que emanava, não sei se do corpo, se da boca, era insuportável, e o rosto, ou o que parecia ser um rosto, era brilhante e pastoso. Não se lhe distinguiam feições, nem expressões, nem a boca se abria para falar, apesar de dizer muito mais do que eu queria entender. A princípio não percebi quem era, mas depressa me lembrei de que só poderia ser ela, não poderia ser outra, certamente seria ela. E se fosse?(...) E se ela estivesse ali para me levar, uma vez que já tinha levado a minha entrevada avó? Aquela monstruosidade bexigosa e pestilenta só poderia ser a morte. A morte estava à minha frente, ainda que não totalmente nítida, mas estava. Só poderia ser ela. Só poderia ser a morte, eu já estava certa disso quando, aproveitando um raro abrir e fechar de olhos a que me permiti, deixei de a ver, desapareceu" (p.252).

A figura assustadora voltará de novo, Beta estava a sofrer alucinações que a gelavam de pavor.

Também aqui o autor escreve pela narradora uma memória antiga a da tremenda peste negra que assolou a Europa durante o séculos XIV e XV, e deixou no nosso imaginário (dos que leram ou ouviram contar) o terror de que algo assim pudesse voltar a acontecer.  Descobrimos sempre, ao longo desta leitura aparentemente simples e directa, o suporte antigo de uma cultura que é a nossa, por muito arcaica e esquecida. Surge com a sua presença forte nos momentos mais inesperados, mas tem de estar lá...a cultura é o suporte da Arte.

A narradora relaciona então esta aparição com uma mulher, a D. Aldina, cujo marido, o Fernando, morrera nas obras da Expo 98, soterrado sob uma camada de cimento despejada para uma sapata que estava a ser betonada, e dado o trágico acontecimento ninguém se atreveu a falar dele,  para retirar o corpo, o que atrasaria a obra, algo impensável. 

Talvez fosse o imponderável deste trágico acidente que estivesse a causar a Beta as sua assustadoras alucinações, como a da figura dançante que ao regressar a casa, já no fim do dia parecia fazer troça dela e dos seus medos. Agora a heroína da história já tem uma terapeuta a quem vai contando o que lhe acontece, o medo, por um lado e o desejo de não acreditar, por outro.

Mas já entretanto o autor nos apresentou fundamentos de um imaginário que na espécie humana permanece desde que existe, ainda que sofrendo sensíveis transformações: a Morte. Dos tempo modernos iríamos buscar o célebre Grito, de Munch, que teve várias versões, todas possíveis para a primeira alucinação, de formas vagas, mal definidas ainda, até a esta dança macabra, de tantas origens arcaicas e todas relacionadas com a visão e o temor da morte. 

O temor da morte está presente desde que nascemos, desde que há consciência da vida na nossa espécie. É o que nos diferencia dos animais de que descendemos, que não o têm.

Recomendo a entrevista de Hariri, que está no youtube, para quem deseje conhecer a sua opinião. 

Mas cito antes, por magnífica descrição, que inicia, com outros, o chamado Modernismo na literatura, que se inicia em 1910, mais ano menos ano e se manterá, segundo os especialistas, até 1935 ( morte de Pessoa, no nosso caso). Rilke, com os seus célebres Cadernos de Malte Laurids Brigge (existe a tradução de Paulo Quintela) oferece na sua narrativa da vida e descoberta de uma cidade dolorosa, Paris, mulheres com quem se cruza na rua e cujo rosto prefigura o da Morte, assustadora, mulheres cujo rosto se desfaz nas mãos tornando-se ferida (a ferida da miséria da vida) e acima de tudo na memória que traz consigo do seu antepassado, o Conde Brahe, cuja morte é descrita como algo de atroador que quando se manifesta invade o castelo inteiro com o seu sofrimento, a que nem os cães resistem, embora sejam tão próximos e já habituados

Rilke escreve esta sua obra-prima em 1910 e marca a diferença na narrativa do seu tempo, inaugurando o que chamamos de Modernismo no século XX. 

Vive pobre, ele que é aristocrata, numa cidade que descreve ao pormenor, como Rui Couceiro faz com o seu Porto e o seu Morro, só que não tem morro, tem um quartinho para onde se retira depois de ter secretariado o irascível Rodin, e toma as notas que formarão o Caderno tal como o conhecemos. Tudo, quando se encontra sozinho, o remete para a busca de uma identidade que ficou no castelo da sua família, e por onde ele vê passarem o pai e a mãe, tias, primas, fantasmas, criadagem que acorre quando o Senhor do castelo está presente.

Assim, pela recuperação de uma vida outra, revive o jovem Rilke, perdido na Paris implacável, o que procura na mudança, na diferença, no choque de dois mundos, o de outrora, em extinção, apenas vivo nas evocações ou alucinações da memória, e o do seu agora, em que ele tenta encontrar o seu lugar e destino de criação artística, justificação da sua alma, isto é da sua verdadeira e real existência. Lemos em Rilke um Baudelaire que também Rui Couceiro pode ter lido, La Charogne, a podridão do cadáver, mas lemos sobretudo magníficas páginas sobra o medo, os vários medos que de todo lado o acometem e ele não chega a entender. Percorre-se uma memória longa de um passado recente, onde perpassam jovens mulheres que poderiam ser amadas mas não o chegam a ser, e para total surpresa do leitor desprevenido, eis que o final dos Cadernos é precisamente com amor que termina, o amor que Beta também descobre. Mas ela, ao contrário do que acontece com Rilke será amada de volta, ao passo que ele não tem a certeza de nada. Ainda não. 

 

  



Monday, July 08, 2024

Ainda o Morro do Rui Couceiro

 Acordei a pensar que outro livro, de que me lembre, tem uma densidade tão grande sendo ao mesmo tempo forjado na actualidade do nosso quotidiano, com personagens que nos dizem muito do que somos e vivemos (do pequeno e do grande mundo) e do que partilhamos com vizinhanças primeiro desagradáveis, invasivas do nosso sossego, e depois gradualmente  trazendo do bairro tudo o que pode ser mais interessante e ela dá a conhecer, a grandes e pequenos.

Falo da Dona Lisete, que é quem mais fala na obra com a Beta (Elisabete de seu nome verdadeiro) tornando-se conselheira, condutora, amiga de verdade e de que a narradora se ocupa quase até às últimas páginas do que escreve. Personagem que é tratada com cuidado, mas também com uma ironia escondida a que o autor não consegue resistir, a ironia que alimenta o que vemos e nos faz não digo rir, mas reagir. Puxa pela acção, e na verdade ( se eu voltasse a falar das figuras centrais da alquimia) seria definida como Mãe da Obra (que vemos no Conto da Serpente Verde de Goethe, hoje já disponível em português pela tradução do João Barrento. Eu escrevi sobre o Conto um pequeno ensaio, dedicado a Paulo Quintela, o Prof. e amigo que ia comentar a minha tese de doutoramento e me disse explica lá isso que eu de alquimia não percebo nada, e fiz esse ensaio para ele. 

No cap.105, p.284,  a Dona Lisete tem direito ao seu momento de explosão popular, que não direi que é bipolar, porque conheço como aqueles vulgares desabafos de zanga momentânea são normais no Porto, não chegam a ser considerados palavrões, saem de bocas finas, como a da aristocracia que ali ainda predomina, e eu aprendi no âmbito da minha família de Ponte de Lima: a fúria da Dona Lisete até assustou por momentos a narradora, mas como ela própria diz, depressa se acalmou, e eu deixo ao leitor a curiosidade de aprender com ela...

A verdade é que todas as explosões a que se assistiu eram desabafos de impotência perante algo de desagradável sucedido, como a falta de água nas torneiras por exemplo. Não mais do que isso. Não havia maldade, havia revolta justa, pela incompetência, ou pela apetência e abuso de alguns que podiam, sobre os outros, que não podiam. O palavrão libertava.  

Ao contrário de alguns comentadores, que no seu entusiasmo quase paroxístico me deixam entender (é da idade...) que se atiraram ao Morro de cabeça, não a partiram mas não voltarão lá, outros interesses logo se apresentarão, eu acho e é o que vou pelo menos tentar, que se deve  voltar a esse Morro, ou melhor, a esse livro, até perceber que fio nele se esconde e nos conduz até ao momento em que a heroína, com o convívio do Dr. Belarmino, a sempre presente Dona Lisete, que a aconselha a ir pedir leitura de tarot a uma cartomante para adivinhar o que o futuro lhe reserva, chegar a conhecer e conviver com o Professor, que é colocado ali, onde ela vive e se apaixona por ele e ele por ela. Depois de tanto negro atravessado na sua vida , o peso da avó nos seus dias e nas suas noites, fica a saber que essa avó a protege, lá do céu onde se encontra e propicia um final amoroso e feliz com o seu Professor, que é delicado, não força a relação sexual quando ainda não desejada, mas antes a acaricia docemente e lhe envolve e aquece o corpo, como uma segunda pele. 

Da infância por vezes sofrida até à maturação de um corpo feito para amar e ser amado, assim vai o relato encaminhando a nossa leitura,  lembrando que em toda a vida, pobre ou menos pobre, de alguém como Beta, para lá da aparição assustadora da imagem da Morte, a vida afirma-se como vida mais plena ali oferecida para  viver, e pelo amor entregue a ser vivida plenamente. 

Chegou o momento mais difícil, o de entender o Morro como símbolo de uma cidade envolvente, feita de sobreposições variáveis, permanentes, inquietantes por vezes, quando a Morte, a grande, era de súbito avistada.

E de entender a Cidade como um grande coração que batia, desde que na Bíblia, ainda no Antigo Testamento, se descreve como Cain, depois de matar Abel é expulso do Paraíso, já amaldiçoado também pelo pecado de Adão e Eva. Cain, o "construtor de cidades".  Por que razão estariam as cidades ligadas ao pecado de Cain, ao  assassinato brutal de um irmão inocente? Queria Jeová, no tempo em que todos ainda falavam, castigar uma humanidade com um Mal permanente? Pois os alicerces que Cain erguia estavam viciados desde a origem.

Pode a cidade viciada tornar-se o verdadeiro símbolo do mal? Acontece com a Torre de Babel, e deus a castigará a seu modo, o mesmo com Sodoma e Gomorra, que não serão perdoadas pelos seus vícios, e será que o mal nunca erradicado se infiltra ainda hoje nas guerras, nas grandes catástrofes climatéricas, num planeta cuja zanga com os humanos é cada vez maior e parece não ter perdão nem ter fim?

Não chegou o momento ainda, para a narradora feliz, de assistir ao fim de um mundo que é o nosso, como diz Hariri, que vê na I.A. um mal ainda pior. Se no antigo Éden o primeiro par não tinha senão um arremeço de liberdade, pois duas árvores lhes estavam proibidas, que liberdade teriam os modernos pares em que o verdadeiro e o real podiam a todo instante ser modificados, e induzir em perigosos erros ? E Deus e a sua criação, no meio disto? Também a sua identidade poderia ser modificada? Hariri abre a discussão, mas deixa-a em aberto. Aconselha a que não se perca tempo a pensar o que é o significado da vida, pois isso apenas conduzirá a uma história e uma história não nos dará esse significado. Pensemos antes no que é o Sofrimento, o significado do Sofrimento (que vemos por todo o lado).

Por que razão existe e o que significa o Sofrimento, na vida? E sabemos como cada ser humano o que busca é a certeza, não a dúvida metódica da filosofia de outrora...

Tudo mudou no mundo.

Mas no Morro, por via de um amor simples e partilhado poderá haver salvação, sonhar com um futuro distante mas aguardando no fio do horizonte que o Criador acorde do seu sono zangado e nos perdoe. 

 

  

Saturday, July 06, 2024

Rui Couceiro, MORRO DA PENA VENTOSA, 2024

 Rui Couceiro é um escritor desta nova geração que não hesita em publicar um primeiro livro e logo de seguida um segundo, em que se procuram algumas raízes de memória vivida, e não podem ser muito antigas, dada a sua juventude. É um romance com marcas físicas de uma cidade, o Porto, e o seu morro ventoso. Suponho que ler é ir subindo devagar até esse morro que ele amou, com as suas pessoas próximas, de família, de vizinhança ou amizade. Mas sendo hoje, apesar de tão novo ainda, já alguém com espaço próprio conquistado, é EDITOR e AUTOR ao mesmo tempo, e a sua última obra (a primeira não acompanhei, como gosto de fazer com as obras que abordo, não me foi possível, tenho o meu morro onde ainda vou subindo devagar, estou a meio do caminho) - a sua última obra, dizia, explodiu logo em todo o facebook com anúncios de lançamentos,  apresentações e eventos vários por todo o lado, que o deixam feliz e sorridente nos retratos que vão sendo colocados para quem gosta de ver a cara de quem escreve. Mas é bom não esquecer que a pessoa real é uma, o narrador é outra coisa, um alter-ego também fazendo parte da ficção, um eu que se projecta ali por razões que escapam muitas vezes ao leitor. Neste caso, e no início, é de uma narradora que se trata. Uma jovem (assim a estou a imaginar) a quem uma avó apoia e ajuda com uma frase cheia de significado: " Beta, filha, tu não precisas de ser como os outros para seres certa" (p.13). No cap.4 percebe-se que está ali um anseio, ou mesmo um receio, de que a escrita não chegue a preencher o vazio que a noite traz consigo. Mas sabemos, quem já viveu e leu o bastante, que é na noite que por vezes os sonhos nos preenchem, que se formam os sentidos que mais iluminam o caminho dos sinais em que as pessoas e os seus múltiplos eus se perdem, ou se encontram. 

Não é pois um mero acaso a escolha de uma voz feminina para assumir esta narrativa, não como heterónimo pessoano, demasiado conhecidos já todos eles, mas como impulso vital de uma necessidade íntima, a Anima que Jung seguindo os velhos alquimistas define como a oposição do feminino ( área do sentimento, da emoção) que complementa, por oposição, a racionalidade do masculino (Animus) que tem no nosso equilíbrio outras funções.

Na psique humana, tanto na mulher como no homem ora predomina  um desses elementos ora outro, e isso definirá comportamentos, escolhas, mesmo destinos. Por aqui, por esta voz, onde seremos conduzidos? Onde se esconde o sentido? E evoco o meu já tão habitual Hoelderlin (não tenho umlaut no computador, escrevo à antiga), no seu célebre verso do Hino à Memória (Mnemosyne) : "somos um sinal que perdeu o sentido..."

Rui procura, como Jung também salientaria, na projecção do feminino, o tal sentido que falta. Escreve a sua narrativa no feminino e na primeira pessoa, para não deixar dúvidas, pelo menos por enquanto.

Mas assim como Clarice Lispector, na sua HORA DA ESTRELA deseja fazer a experiência de uma voz masculina, entremeando e alterando a prosa que decorria, fluente, deixa ver que a voz afinal era sempre a mesma, a dela, e a introdução de um rapaz que olha e descreve o que vive em nada melhora ou altera o que é a voz - aqui entra a marca de estilo -  de uma só criadora, Clarice e só ela.

Veremos com Rui Couceiro. 

No cap. 6. intitulado DO FUNDO DO MEU CAIXÃO, intensifica-se esta ideia, ou este sentimento, que é do negro ( os alquimistas , ou Jung, herdeiro legítimo desse imaginário, designariam no processo de sublimação por nigredo), que é preciso absorver essa negrura da depressão para poder libertar-se e seguir para outra fase: a escrita? a ideia de assim, tal como se é, ser feliz? ou de necessitar em absoluto de recuperar um espaço habitado por múltiplas vozes e deixar que se cruzem.

 Não vou escolher um sentido para a escrita, mas deixar ao leitor o que pode em qualquer momento ter despoletado esta imagem do caixão em que a narradora se deita: a série do CSI one sabemos que a jovem Abby, gótica assumida, se esconde para dormir? Influência do romantismo negro de Poe? ou uma das frequentes imagens alquímicas em que surge o adepto deitado num caixão, indicando que a "morte em vida" conduz à sublimação que se procura? Há muitas e não vou citar aqui. O importante é que é reconduzida ao regaço da sua avó, já referida, e tem a ideia, que considera redentora, de refazer com a imagem dela no seu caixão, um caixão para si, que encomenda (estando nos tempos de hoje...) on line a uma firma de confiança. 

"E não é que funciona?" exclama. Recomeça a escrever.

"Foi já dentro deste caixão qu escrevi o texto que antecedeu este. Devo clarificar, todavia, que não escrevo apenas quando estou dentro dele, no qual me deito com duas almofadas sob a cabeça" (p.17). E continua: " Também gosto de escrever sentada na sanita". Ah Joyce, tão citado mas entendido por poucos, é difícil de ler, dizem, mas não têm culpa, são más as traduções e poucos sabem ler o original. Não chegam ao explosivo monólogo de Molly Bloom, que Graça Lobo, grande actriz do meu tempo, representou com a sua voz grave mas tão bem articulada, no Teatro Nacional Dona Maria II.  Um monólogo em que James Joyce adquire a sua voz feminina, carregada de desejo e frustração, intercalando essa voz sem abdicar da sua.

Continuando numa cidade que viveu como sua e da sua avó, Rui Couceiro descreve com pormenor realista o espaço que também ele se relaciona (acharão que exagero?) com a alma e o sentimento de perda, no passado e no presente, a perda da sua avó, que deseja evocar e a sua, que não encontra caminho, por isso se prende aos pequenos e muitos pormenores das pequenas divisões de um apartamento sem lareira nem banheira, num quarto andar de um prédio estreito, como eram outrora muitos dos prédios antigos, carregados de vida, digo eu, como se fossem colmeias a produzir vida incessante. 

Adiante entrará o prazer de um banho de verdade numa banheira a sério. Serve de novo para evocar o amor de uma neta (foge-me a mão para neto...) pela sua avó, envelhecida, corpo enrugado, "amarrotado" escreve ela/ele, cabelo comprido definhando tal como o corpo, é fácil de supôr. Crua, não digo cruel, mas crua, por ser verdadeira, a observação das unhas dos pés que a narradora também descreve, admirada quase por crescerem tão depressa. É minuciosa a descrição de todos os detalhes de um corpo velho, que tem de ser cuidado, da roupa que lhe vestem, da paciência, neste caso, com que pintam uns lábios de vermelho para que se possa perceber melhor que há sangue a correr nas veias, a avó está velha, mas não morta. Couceiro escolhe a narrativa da tradicional, no século XIX sobretudo, literatura negra, do pormenor que entristece ou mesmo repugna, num desafio à produção da moda actual, de pura (fingida) alegria permanente. Não é alegre o mundo dos velhos, o seu corpo não apetece e o riso desapareceu gradualmente. Rui não quer fingimentos, contudo assumiu outra voz para uma narrativa que ia ser pesada. Amara assim tanto a sua avó, esta heroína de ficção que se situa num imaginário doloroso quase de tão voluntariamente realista? As páginas alongam-se nos pormenores que são os de uma Cuidadora, que vão dos banhos às toilettes, à memória de alguma canção antiga, a um  pequeno passeio na rua, uma ida à Igreja, enfim a rotina que toma conta das horas. E um conselho para que não se chore a morte, pois nos descendentes a vida é eterna. Deduzo que esta avó era crente, e que a suposta neta respeitasse a sua fé, para não a magoar em fim de vida.

Mas o que nos vai dizendo o romance sobre o seu autor, o Rui Couceiro? Por trás de que biombo se esconde e desafia a verdade que é ou será ou já foi, a sua? Entramos no miolo do livro, onde supostamente a narrativa avançará, não para um desfecho prematuro, mas para uma mudança que mantenha no leitor a curiosidade e o desejo de continuar. A curiosidade, digo mais, o espanto, a admiração surpreendem o leitor pelo súbito desabar de situações escolhidas a dedo para esse efeito, como se de súbito houvesse ali a meio do percurso narrativo uma crise de forte bi-polarismo explodindo nm divã freudiano, a meia luz, numa longa série de palavrões de efeito grosseiro, mais do que rude, brutal, como se passássemos de um Proust a um Bukowski que diz, cito de cor, "na minha obra só escrevo o que vejo". Parece ser o que Rui deseja, escrever o que vê, e só. Mas há aqui apesar de tudo alguma coisa de incoerente, porque tem nas páginas a que me refiro não apenas o que vê, mas o que cheira, o que ouve, o que a espanta (só pode ser) uma criança descrita na evocação desse passado, entre os 4 e os 8 anos. Dirão, sim e não: agora quando escreve é um adulto a meio da vida, e no início de carreira, que se adivinha frutuosa. Como leitora atenta que sou, a paixão descrita com ênfase pelo Futebol Clube do Porto na pessoa do seu Presidente, não permite que se fale do Macaco, não o do Jardim Zoológico, mas o que se revela, na mitologia desse clube, um dos seus valentes guardas e protectores? Digo, com o Herman José  - não havia necessidade...enfim, continuemos, o livro pede leitura. 

A narradora, cuja paixão e carinho pela avó levava a uma estranheza, onde estão pai, mãe, avô? Justifica no seguimento das suas evocações os traumas de infância e rejeição sofridos e como chega então à bruta necessidade de contar, quase gritar, com rudeza este apontamento que ficara para trás, não esquecido, mas ao modo freudiano, recalcado bem no fundo do seu inconsciente, como se nunca tivessem existido esses e outros personagens que habitaram a sua vida, ainda que por breves tempos. É o autor que nos diz que hoje em dia o Morro é condomínio de luxo, algo que os lisboetas como eu também já descobriram nos seus bairros antigos populares. Os que ainda não são de luxo aguardam para vir a ser.

Por outras palavras, a narradora cuja infância é evocada do interior de um caixão ou da sanita, quando de outras necessidades (eu lisboeta diria retrete, como aprendi, mas perdoo esta escolha, que vem da escola, ou do bairro, ou até da família, é possível num meio de pequena burguesia (e sem ofensa, lembra a canção da pronúncia do Norte...) por outras palavras aguarda-se agora o momento que marque evolução e mesmo mudança no processo narrativo, devolvendo alguma feminilidade à voz da Beta, a figura da heroína escolhida, pois o que ficou para trás é altamente masculino, os homens exprimem-se de modo diferente das mulheres, mesmo nos palavrões, na rudeza e nas situações expressas de modo intencional e provocatório para o leitor imaginário que Rui Couceiro terá na sua cabeça. A verdade é que a crueza existe e continua, certamente, mas numa obra literária actual fará ainda sentido? A perversidade não será mais psicológica, hoje em dia, do que o palavrão que se encontra em dicionários? Mesmo num enorme, de sinónimos? Mas entende-se contudo que há de facto ali, na narradora, uma exigência de descarga emocional e verbal que a liberta do peso contido que a abafa, o que faz sentido, dado o caixão em que se fecha parte da sua existência. Aqui está uma escolha da palavra que tinha faltado, a da existência fechada. O autor (narradora) abre a existência por via da descrição do Morro, que conhece e dará mais tarde a conhecer a outros, como guia.

Voltando a Bukowski, ele ensina que o difícil é dizer o complicado em palavras simples. E de facto assim é. Nada mais difícil do que o simples...A experiência ensina. E quando não, assassina o que foi um primeiro impulso genuíno e se perde no caminho dos sinais e do sentido.

No cap.29, O CORPO LANÇADO, a criança surge crescida, de "corpo lançado", numa adolescência apetecível, e dado o que já se leu do autor e da sua narradora adivinhamos que não poderá ser vivida normalmente, reservando e guardando o seu corpo, que temo, neste momento da leitura, que venha a sofrer violência numa cidade e num ambiente todo ele de extrema violência que só terá o pior para lhe oferecer. Contudo no cap. seguinte o que se verifica é a descrição de um quebranto, uma espécie de depressão, de melancolia instalada como se tivesse sido lançada alguma maldição sobre a mente e não apenas o corpo da jovem. A avó, preocupada, leva-a para um exorcista que fará o necessário para a limpar do perigo. Estaremos com elas e suas rezas e benzeduras no bairro do Cruzinho. 

Portugal, país que se diz de fé sólida, é na verdade um país de crendice, de rezas e quebra-medos, que tem mais folcrole na cultura  do que religião na sua vivência escondida. Ainda há, e haverá sempre, pois o mal existe, padres para fazer exorcismos e vamos ver neste capítulo a descrição da "lavagem" da pobre Beta, digna de um filme, na verdade. O realismo é total.

Interessante, em relação ao conhecimento da cidade, é a descrição que Beta, agora guia turística, vai fazendo dos bairros, das ruas, cobrindo rios que passam por baixo, e encantam os estrangeiros que a ouvem.

O romance foi adquirindo, sem que se dê por isso, pois as personagens que se cruzam também nos chamam a atenção, junto com a doença   progressiva da avó, uma dimensão bem mais do que a puramente literária, sociológica, e permitindo até que alguém se debruçasse para essa dimensão numa tese académica. É de um Porto desconhecido que se trata, e não apenas para os estrangeiros, uma cidade que sofre os desacatos e abusos de outras, como Lisboa, onde também os prédios mais interessantes são comprados e os moradores expulsos para outras paragens, mas na verdade aqui, pela mão de Rui Couceiro o que vem ao de cima é um olhar que vê o real para lá do real, um olhar feito de amor parecendo que é de medo, de horror ou mesmo ódio por vezes.

O mundo ali existe, e não é em ponto pequeno, é numa abrangência larga, que vai das personagens às suas circunstâncias, de que a língua e sua violência vocabular fazem parte, conduzindo o leitor a um conhecimento que ele não detém e a narradora lhe vai página a página revelando.

Estamos perante o reverso de uma Montanha Mágica a que falta, por via do que foi o propósito de Thomas Mann na sua obra gigantesca, o pensamento filosófico, elitista, dos eternos doentes que a habitam, mas que em contrapartida nos oferece um morro de pura vida real, na sua crueza não fantasiada mas vivida. Com Thomas Mann temos o luxo de ficar distantes do sofrimento, neste Morro da Pena Ventosa somos forçados a vivê-lo,  ele se funde-se connosco por via das descrições de minúcia que nada têm de abstracto, pois o fim do livro não é o de nos abstrair do que dói, mas fazer doer ainda mais, se possível. Estamos perante uma anti-Montanha Mágica, e este livro deveria poder ser objecto de estudo em ambas as dimensões que refiro, a sociológica e a de uma certa e nova visão filosófica da cidade real.

Aqui entraria, mas a dimensão do post não me permite grandes elaborações, na questão do que seria hoje a cidade justa de um Platão, por exemplo no livro X da República. Governada por sábios pensadores, ajustada pelas suas mãos às necessidades de cada um, e de onde os poetas teriam sido expulsos por deles não depender nunca a ordem, mas a desordem a que a pulsão criadora os levava. O Morro de Rui Couceiro também neste aspecto poderia (deveria ? ) ser estudado. Há ali matéria que é de amor, mas também de perversão, perseguição e ódio. Um retrato do mundo que não caberia na Tempestade de Shakespeare?  Um Morro onde do alto se adivinha, ou se vive a natureza à solta, que Caliban representa?

O imaginário da cidade (que já foi título de um colóquio) pode evocar uma cidade fundadora, como na República de Platão, ou o mundo que Hobbes descreve onde a guerra ( o mal) é predominante. 

  Terei de ficar por aqui, deixando que o leitor continue, de mente aberta e prazeirosa, como dizem os brasileiros.

 


 




   



  

 

   




  


Thursday, July 04, 2024

Um Último Pedido

 

Um Último Pedido

Desçam devagar pelo caminho

que não cheguei a subir

e agora vou descer

pela vossa mão

sem medo de tropeçar

nas pedras que ficaram.

Chorar não faz sentido,

deitem as cinzas ao rio

e a água que as leve para o mar...


4 de Julho, 2024

 

Monday, June 24, 2024

Morrer

É claro que penso muitas vezes
em como vou morrer.
Não adivinho
não há um deus que diga
um anjo que previna
entretidos no céu
a desenhar nas nuvens
os destinos
os nossos ou dos outros.
Penso que não gostaria de saber
nem de sentir antes de tempo
um tempo que chegará
como já vi
e pode ser tão estranho
e tão inesperado
sem um queixume
sem um lamento sequer
apenas uma entrega
num enorme silêncio
a caminho da treva
quando teve de ser.

Thursday, June 20, 2024

 

FESTAS POPULARES

 

Alguns comeram lagosta

outros não,

bastou a alegria da sardinha no pão.

 

20 de Junho, 2024

Tuesday, June 18, 2024

 ÁGUA DE ROSAS

A minha avó lavava a cara

com água de rosas

que punha num frasco de cristal

pousado na cómoda antiga

que hoje tenho no meu quarto.

Agora há variantes: eu mandei vir

uma água de tangerinas de Itália

com rosas de França

uma água tão fresca e tão leve

que o sol aparece a sorrir

de imediato na varanda.

Será da minha parte

muita frivolidade?

Não acho, é frescura de esperança...

 Mas tenho direito a isso

como tinha a minha avó,

é uma questão de idade...

 

18 de Junho, 2024

 

Sunday, June 16, 2024

 CANSAÇO

Era tão grande o cansaço

naquela manhã de sol

sabia que seria sempre assim

uns dias bem

outros mal e sem explicação

hesitou em sair da cama

 deixar o conforto do colchão

como se fosse a cama de folhas

do Jardim, já preparada sobre a terra macia,

a terra a que o seu corpo pertencia

da terra tinha sido moldada

a ela regressaria

agora com o corpo pesado

de que o cansaço era já o sinal...

fechou os olhos

mas não para dormir

sentir apenas o suave conforto

daquelas folhas amigas

berço que alguém lhe tinha deixado

para que não estranhasse

esse momento do já esperado

 cansaço.


16 de Junho, 2024

 

 

 

 

Tuesday, June 04, 2024

Partituras

 



Partituras:

A Música da Vida

partitura que ficará sempre

inacabada

Sunday, June 02, 2024

Despir a Casa

 

DESPIR A CASA 

Sim,

a dada altura começamos a despir

a casa

como quem despe o corpo

que se lava

para que esteja limpo

na hora de o levar

à sepultura.
 Por que morre uma casa

que em vida foi amada?

E por que a despem agora

um corpo envelhecido

mas que tem vida

que poderia ainda ser

um pouco mais prolongada?

Ainda tem sol a casa

e vozes de pessoas que conversam

e riem, são felizes, à medida

que recordam a casa

antes de ser esvaziada...

 

2 de Junho, 2024

Friday, May 31, 2024

Rimbaud em MAIO

 

É ainda o calor de Maio

no mês que está a acabar.

Vejo Rimbaud no chão

 estendido no milheiral

a preguiçar

enquanto não chega o Amado

e a sua hora de amar...

Rimbaud é jovem ainda

com palavras de esplendor

ali estendido ao calor

na alegria de viver

 o seu passageiro amor

o Amado não sabia

que o Maio iria acabar

e que ele arrependido

só saberia chorar

era pecado esse amor

que ele não conseguia esquecer

mesmo fugindo para longe

enquanto Rimbaud esperava

braços abertos olhando

um azul água do céu

em que podia morrer



Sunday, May 26, 2024

A Palavra

 

24 de Maio, 2024

Há já muito tempo que hesito em continuar com a escrita dos Sintomas, que parei em 2020. Adoeci e pensei não vale a pena, ninguém publicará, só se fôr de novo pelo createspace, que desde 2018 mudou o formato.

Não sei lidar com formatos nenhuns e o meu filho, que é perito, e rápido e seguro, agora não tem tempo, nem paciência. Faz coisas melhores do que ser massacrado pela incompetência da mãe, faz vela, e navegar é tão bom. O meu marido fez os cursos todos, e se fosse vivo ainda continuaria. O mar dá essa maravilhosa sensação de liberdade, limpeza absoluta da alma que a terra quotidiana impede. 

Assim dei comigo a acordar todas as manhãs com a mesma frase, até conseguir sair da cama: vamos lá enfrentar o dia. Que acabam por não ser um dia mas muitos, todos os dias, e sempre com esse pensamento ao acordar.    

Estar doente limita-me e é essa limitação que me impede de acordar bem, de desejar viver o dia em vez de o enfrentar. O dia tornou-se longo, maçador, sei que haverá muitas pessoas como eu na minha idade, a sentir o mesmo, talvez sem conseguir exprimir-se. Murcham devagar até morrer.

Tento enfrentar. Tomo comprimidos. Escrevo, quando consigo. Mas será que o que tenho ainda a dizer não é já redundante e não ajuda ninguém? Todos na minha situação não passam pelo mesmo? Ando por aqui, no blog, a falar de uns e outros quando os seus livros me tocam por especialmente interessantes e me acrescentam pensamento. 

Trazem uma nova ideia, uma nova imagem. Sou feliz quando penso, e consigo escrever. Assim enfrento o dia.

Não se iludam, não se trata de um combate, mas da ilusão de um prolongamento que terei de desejar em cada dia.

No fundo, não perder por completo, como outros mais desistentes, a pequena chama de energia que ainda se esconde algures numa dobra do corpo. 

Enfrentar, pois. Esse é o esforço de cada dia.

Em 2022 julguei que nunca mais seria capaz de escrever. Estranhamente, ao longo de 2023, comecei a escrever poemas, dias e dias a fio, sem saber bem por onde se teriam escondido antes, e tive a sorte de encontrar um editor, também poeta, que me publicou os três livros que lhe entreguei: DIZER, EXISTIR e VENTANIAS - todos com inspiração de um pintor amigo, o Pedro Chorão, cuja pintura, desde o primeiro ciclo que vi, me levou pelos versos dentro que surgiam.

Hoje os livros estarão esgotados, foram pequenas tiragens, a editora entretanto fechou, não se pode ser pequeno em Portugal, país que continua com a mania das grandezas, em tudo o que fazem querem ser os melhores e os maiores e não se apercebe, a gente do país, como isso é parolice, não é grandiosidade.

Publiquei ainda mais dois livros, CLARICE, uma mini edição de uma conversa, uma troca de ideias com a Clarice Lispector, que li e cuja obra acompanhei desde o primeiro ao último livro. Ela já falecida nos anos 70 e eu agora, nesta idade provecta. Posso dizer são oitenta e mais...mas o prazer que me deu esse pequeno ensaio foi imenso. Éramos espíritos afins. E o pensamento não tem idade, tem afinidade. 

E publiquei ainda, noutro editor, mais poemas, AINDA, com uma linda capa do pintor Asger Jorn, o grande dinamarquês do grupo COBRA.

O título fala por si: sim, ainda ando por cá, enfrento os dias, escrevo, e a escrita é a maior justificação. Uma neta e um dos filhos são os primeiros leitores.

Agora estou neste Maio de 2024, e preparo mais dois livros. De novo um mini-ensaio, revelando o segredo de uma história de amor que a Guerra interrompeu, entre Asger Jorn e a minha tia Guenia, pouco tempo antes da invasão de Paris pelos Nazis, e outro de poemas, de que o Bernardo, o meu filho mais velho, quer escolher alguns para compôr.

Já escolhi o título, DEVAGAR. Porque é assim que tenho enfrentado os dias, e quando calha um momento feliz, uma hora de estrela, diria Clarice, nasce não sei de que fundo oculto, mais um poema.


26 de Maio

Hoje mais uma notícia triste, das que se tornaram recorrentes, morreu mais uma pessoa da nossa, minha geração, mulher de um amigo nosso, quase família, pela ligação ao Jazz. Farão os media a evocação que ele merece, dando-lhe as condolências de ocasião?

Penso se a mulher faz mais falta ao marido ou o marido à mulher? As filhas são meigas com os pais, espero que ele tenha esse apoio neste momento.

Estou a escrever por aqui porque o portátil é mais cómodo para mim neste momento.

Na verdade isto deveria ser um Sintomas III, mas escolhi a Palavra porque acordei de novo com essa palavra agora definitiva, enfrentar...

Deixo assim, mas mantenho as datas, porque é de um diário que continuo a escrever, na continuação dos outros.

A limitação, a dependência dos outros é o que mais custa a suportar, embora se finja que não, para não estragar o ambiente que se deseja que pareça normal. 

Que pareça, porque nada já é normal, no ambiente que rodeia um doente com dependência. Ele poderá rir, mas não é o riso de outrora, genuíno. É riso de enfrentamento, embora o alegre que faça rir quem está consigo, e que deseja o sossego de saber que está bem disposto.

No fundo, trata-se de sossegar os outros, e quando eles vão embora de regressar ao estado de abandono, que de verdade é o que sente. Abandono, não deles, filhos, netos ou amigos, mas da vida. É a vida que nos abandona, por muito que enfrentemos os dias, um de cada vez.