Friday, November 19, 2021

Nuno Félix da Costa, na ed. Companhia das Ilhas

 Neste momento estou a ler os dois livros. Sabendo que o autor é poeta, com obra publicada, comecei com a Pequena Voz, Anotações sobre poesia. Uma escrita de reflexão descontraída, de forma aforística, sobre o que é poesia, ser poeta, escrever um poema movido por qual impulso. Não se decide ser poeta. É-se poeta, por isso se escreve. Mas de onde, no silêncio ou no turbilhão da alma se forma o primeiro verso? O autor é médico psiquiatra, mas para lá da ciência em que se formou, escreve, pinta, e não desdenha o ensaio como forma também ela de criação. É o que acontece aqui, nestes dois livros, e não há dúvida de que a forma que escolheu, de ir dizendo o que lhe ocorre, ao sabor da mão, partindo de leituras feitas, de filósofos como de autores preferidos nos desafia e leva a "pensar" mais longe. Gosto que me façam pensar - concordando ou hesitando em concordar - porque a leitura deve fazer isso mesmo, provocar quem lê, seduzir num verso, numa ideia, numa imagem. Algo que ao mesmo tempo nos distancie de nós, do que sabemos ou julgamos saber, e nos abra algum novo horizonte, racional ou emocional. Com Nuno Félix da Costa estaremos mais no domínio do emocional, enquadrado em pensamento filosófico, de onde parte, com uma referência que parece casual, ou a que chega, no seguimento do discurso. Há uma preferência pelo pensamento alemão, o que não me admira, uma vez que ele escreve pensando o próprio pensamento, no acto de poetar e reflectir sobre o que é poesia. Um pouco como fez Heidegger, no último Seminário que deu ao regressar à sua Universidade de Heidelberg, depois de perdoado pela sua adesão ao nazismo de Hitler. (Escrevi neste blog um post sobre essas lições de fim de vida, Was ist DenkenO que é Pensar, que abrem com uma citação de Hoelderlin no seu Hino à Memória.

Há algo de semelhante aqui, entre Heidegger e Félix da Costa: a interrogação, que busca resposta (a possível) a começar pela filosofia grega, os pré-socráticos, até aos mais modernos, como um Schopenhauer, no seu tratado sobre O Mundo como Vontade e Representação. No caso de Nuno Félix é feliz esta alusão que faz: da vontade nasce o impulso, o poema será a representação. Porque não há realidade objectiva no poema, há expressão (representação) de uma emoção sentida. Vem à memória o célebre quadro de Magritte, do cachimbo que tem por baixo a frase ceci n'est pas une pipe. Não esperemos pois que na poesia, no acto de poetar e escrever um poema nos devolvam o real. Não é disso que se trata, é do contrário, de dar a ver uma parcela de emoção, de sentimento, de imaginário que só ali se encontra, no poema. Por isso Heidegger, o grande pensador do Ser e do Tempo, Sein unde Zeit, é em Hoelderlin que encontra a primeira inspiração, nos belíssimos versos de Mnemosyne : "somos um sinal, sem sentido / sem dôr e quase perdemos / a língua na distância".

Trata-se, no poeta alemão como aqui, em Nuno Félix, de recuperar ( ou de buscar) o sentido desse sinal que somos, e dessa "língua", perdida na distância, mas que permitirá, uma vez alcançada, exprimir o sentido do que somos, o Ser no tempo dado. Poesia para um, como em Rilke, nascida de emoção e de impulso forte, pensamento em Heidegger, algo de mais elaborado, pois procura "sistematizar" o pensar de cada um,  a começar por ele próprio.

No capítulo 2 das Anotações, Nuno Félix embora sublinhando que " são difíceis de imaginar os primeiros tempos da poesia quando tudo estava por dizer e as palavras eram paisagens paradas com regatos, bosques, veados, rouxinóis. Eram pastores que se apaixonavam e faziam soar as flautas nas encostas dos montes onde ninguém os ouvia". Surge à ideia um Orfeu, figura emblemática por excelência do amor e da poesia eternas. Numa linguagem metafórica, própria de um poeta, diz ainda "Não havia palavras para as coisas leves do pensamento nem para as cores das nuvens do fim de tarde nem para as vibrações do corpo quando não sabe o que quer. Os poemas eram relâmpagos que não encontraram as palavras, ecos de sorrisos no contentamento dos prados quando os amantes emudeciam entre beijos, mas nada do que acontecia ultrapassava o que podia ser dito e, por isso, a poesia carecia de profundidade como reflexos num charco quando, após um aguaceiro matinal o sol irrompe e faz as coisas aconteceram" (p.11). 

O autor não ignora que nessa aurora rosa da linguagem primordial a poesia " era a única linguagem: a da memória, dos mitos, dos costumes, das crenças, das normas, mas também a do desejo, da angústia, da aversão, do medo, num mundo mal compreendido" (p.11). Estaremos aqui com a obra de Homero, que tudo recolheu.

Mas as anotações vão seguindo de reflexão em reflexão, de forma ora mais livre ora mais condensada, lembrando Rochefoucauld, ora em parágrafos mais alargados ora numa única frase incisiva onde podemos ver como o seu pensamento sobre poesia incide muito no sentido do que se diz, recusando o sentimentalismo, o supérfluo, o redundante da auto-satisfação contemplativa - algo que Rilke nas suas Cartas a um Jovem Poeta não deixa de fazer. A poesia é uma escolha de vida ou de morte, e só na consciência do que isso representa se pode vir a ser poeta. Sobre o poeta diz, a páginas tantas: " o estilo é a sua presença na obra" (p. 177). Aqui podemos perguntar: existirá estilo sem sentido? O que foi o programa dos surrealistas, a escolha do cadavre-exquis como exercício de grupo, o Manifesto futurista senão uma tentativa de abolir estilos, para alcançar uma nova liberdade de expressão, desconstruindo, abolindo normas por demais gastas? Dir-se-á que nesses novos caminhos que o Modernismo abriu, em cada artista (poeta, pintor) se verá um estilo, que é seu, a sua marca distinta de autor. Imitando um pouco o nosso poeta, recordarei Boileau: le style c'est l'homme - o estilo é o homem. Mas esse era o tempo da racionalidade cartesiana, e continuando a ler descobriremos que Nuno Félix prefere Spinoza a Descartes. Há nele uma atenção especial, um apelo da natureza, dos sentidos, para lá do sentido que a linguagem, poética ou outra, filosófica, nos conceda. 

No outro livro que leio, A Clínica e a Patologia dos Sistemas, mais recente, por um lado o médico torna-se mais presente mas o prazer da escrita solta permanece  e com ela a presença do corpo (não é por acaso que se fala de patologia e de sistemas).

A edição é cuidadosa, tendo antes de cada capítulo uma gravura que é colagem do autor, e em que o ambiente Goyesco ( o negro, os pesadelos da noite) ou o das tábuas de Bosch, prevalecem  com formas disformes, rostos de pavor, uma dimensão onírica que será abordada no decurso do ensaio. 

Podemos ver pelo Índice que estão presentes, em conjunto, a clínica e a cultura. E esta abordagem será por certo o que confere a este estudo uma dimensão diferente das habituais, no tocante à medicina, às suas práticas, e ao comportamento de alguns médicos do sistema, que Nuno Félix não se coibe de censurar  com alguma acrimónia. Evoca, como é natural, Hipócrates, a dimensão ética do juramento, e o que considera desvios actuais de práticas que ignoram o corpo, a dôr (que é também frequentemente da alma) e não se resolve apenas com a prescrições de algumas drogas. 

As colagens que antecedem os capítulos, é para isso que apontam: a deformação dos sistemas, perante a deformação tremenda da condição humana.

 Pode a cultura (filosófica, artística) de algum modo ajudar ? Eu concordo com o autor, a Arte (literária, pictórica, ou outra, a música, a dança ou o teatro) é salvífica. Freud sabia, também ele se interessou e analisou um célebre quadro de Leonardo da Vinci, descobrindo na posição do braço de Santa Isabel algo de um movimento que ele viu como alusão sexual. Mas temos no seu discípulo, depois dissidente, Carl Gustav Jung, uma verdadeira recuperação, seguida por Marie Luise von Franz, dos mitos arcaicos e dos símbolos de várias civilizações, de tradições populares, como nos contos de Grimm cunhando um novo conceito o de inconsciente colectivo, que Freud não aceitava. Podemos seguir a correspondência de ambos, em que discutem as suas diferenças, até ao rompimento final. Nuno Félix, ao valorizar como vai fazendo ao longo deste estudo os contributos de filósofos e criadores aproxima-se mais de uma visão junguiana, embora não a refira, do que do nosso pioneiro e brilhante Freud.  Félix fecha o livro com uma reflexão sobre o que é tratar. Conceito que não tenho competência para abordar mas que me faz também a mim reflectir sobre a importância do amor, do carinho, da presença generosa e disponível para o outro, que pode ser uma criança, um adulto, um idoso que se entrega com a esperança de ser curado e salvo. Freud já dissera a Jung, com alguma frieza: nunca os poderás salvar a todos... é bem verdade. Mas basta que se salve um para que a profissão de médico já se valorize.

O livro vai contudo para muitas outras paragens. E a mim, o que é natural, seduziu-me em especial o cap.8, sobre a medicina e a arte. Já nas Anotações eu tinha referido  o gosto pela escrita livre, de associação fragmentada ao modo dos aforismos, reflexões que surgem, não necessariamente por ordem, mas só por movimento interno de pensamento. Aqui acontece o mesmo, e o leitor fica à vontade, pode seguir ou ir escolhendo este ou outro momento que lhe diga mais ao entendimento, ou ao conhecimento ou mesmo à descoberta de novas realidades e emoções. Porque se descrever um crise de sofrimento emociona, a arte não emociona menos. Com algo que é importante para se poder continuar a viver: a contemplação da Beleza, o belo tão esquecido por vezes de um Platão que não se lê. No capítulo 6 sobre "incorporação do corpo", p.127, o modo como são criticadas modas e deformações e excessos, esquecendo o todo, ou um todo que é o corpo -terá Nuno Félix lido Paracelso, embora não o cite? Este foi o grande precursor nas suas obras de um visão que hoje é recuperada, por inclusiva, abrangente, não descurando os valores da alma, que na alquimia o mercúrio representa. E quem diz Paracelso diz Cornelius Agrippa, inspirador de Goethe ( o célebre cão que o seguia, fazendo constar que seria de um diabo, como acontece no Fausto).

Mas medicina não é magia, embora se exija dessa arte (termo que Félix rejeita), ou dessa ciência que possa e deva ser um olhar para o todo do ser humano, e não apenas para este ou aquele órgão de que haja queixas. Cito: "n.58 As coisas mais importantes para uma pessoa , não são as rotinas e o estado do corpo, mas o que a pessoa atinge, o que compreende o que realiza. Não são o como se exprime, mas o valor do que exprime; não são as sensações do corpo mas a representação (eis-nos com a representação, inevitável no pensamento ou na arte, como já se referiu) e a compreensão do mundo a partir da qual planeia e organiza a sua vida. O mais importante não é a mão que escreve, mas o poema que resulta". A criação artística, por outras palavras, manifesta-se pelo todo, e assim adquire a sua dimensão universal.

Vou então para a minha área preferida: a importância da arte na cura, ou mesmo na salvação. O autor refere os médicos (e de facto são muitos, penso em Namora, em Torga, só para dar dois exemplos) que exercendo a sua profissão praticam a seu lado, e se calhar com mais felicidade a poesia, a pintura, a música, que lhes preenche a alma. Os exemplos escolhidos no ensaio (que abre com uma colagem onde surgem entranhas e esqueletos, as vísceras da alma? Uma alma que o artista envolveu nas danças da morte medievais?) são muitos, revelando uma grande cultura literária. A demora nos alemães, como já sucedera com os filósofos - Schopenhauer, Hegel, outros - fá-lo escolher Gottfried Benn: "26. Por que escolheu Gottfried Benn a patologia forense? Para decifrar as condições da morte ou para observar a própria perda da morfologia da vida?(...) Em certos poemas sente-se ser a poesia que apela a imagens e vivências que só a experiência clínica e anátomo-patológica lhe poderia proporcionar" (p.184).  De um G. Benn mórbido nas escolhas, passa de repente o nosso autor para um grande, na minha opinião mais interessante, sem dúvida, do que Benn: fala de Rabelais. Leitura de paixão foi para mim o livro 5 da sua obra. Mas a lição de Rabelais que mais seduz, e também neste caso, é a utopia da Abadia de Thélème, que tem como lema "fais como voudras" - faz o que quiseres. Para um jovem que melhor lema, que maior prazer do que seguir na vida aquilo que lhe apraz? Mesmo com riscos. Rabelais, tal como Nuno Félix o entende, estudou e entendeu o corpo humano, a condição que no sacerdócio o espiritualizava e que Rabelais troca-o pela medicina, que do corpo nada rejeitava, "até o mais repugnante e o mais obsceno" (p.185). O convento de Thélème albergava homens e mulheres, "livres, pândegos, estudiosos e bons garfos, notável precursor do comunismo anarquista". Aqui terei de discordar, nunca o comunismo aceitou o anarquismo, nem a anarquia, o seu modelo nunca poderia nascer de Thélème, que antes recuperava, mas ao modo renascentista, a libertinagem dos Monges Vagantes da Idade-Média, bebendo e cantando (algumas das canções estão nos Carmina Burana). Continuando ainda com a reflexão do autor, ele conclui que foi a medicina que lhe forneceu um corpo de conhecimento que ajudou a prolongar o seu humanismo, e lhe permitiu praticar uma moral laica, naturalista, que se descobre na sua ficção (p.185). 

Não cabe no espaço de um post a análise mais detalhada de cada autor citado: deixo alguns dos nomeados: Schiller, Tchekhov, Conan Doyle, Keats, André Breton, que também estudou medicina, embora sem chegar ao fim do curso, que era de neuro-psiquiatria. É como se diz aqui, " um caso interessante de cruzamento da medicina com a literatura e a arte" (p.186). E sem dúvida que a essa formação se deve a sua doutrina do surrealismo, da associação livre que informa a sua obra, do gosto pelo cadavre-exquis, e da sua vocação de activista social e político (um precursor neste campo) Nele sim, encontramos o apelo à anarquia libertária, criadora ( e que ao contrário do que se possa pensar, não era do agrado de Freud, estudioso, e severo conservador).

Continuo com Nuno Félix, que percebemos que gosta mais de Breton do que os outros citados: " O mérito de Breton foi trazer para a literatura e para a arte uma abertura ao irracional que, na época, surgia de vários cantos da Europa, e que a obra de Freud divulgou. A noção de inconsciente e de associações livres de ideias como meio de exploração desse inconsciente no qual alguns sintomas enraizavam (...) Breton analisou de perto os doentes mentais apreciando também o valor estético da sua escrita. A loucura, que sendo ela própria um sintoma, parece levar as figuras da linguagem poética a um limite surpreendente. Este irracional que resulta do descontrolo do pensamento na doença, ele tornou-o o núcleo da escrita automática surrealista".  (p.187)

Assim podemos continuar a ler este estudo, que percorre muitas vias, de ligação da clínica à arte, e despertará, na variedade e formação dos seus leitores, um interesse especial, concordante ou discordante.

Mas é mais de discordância que surgem novas ideias, que farão avançar a ciência e a arte...ficarei por aqui.




 

 

Thursday, November 11, 2021

Ana Marques Gastão, A mulher sem Pálpebras, ed.Letras Errantes, 2021

Como sempre, um livro muito aguardado, a aumentar a já obra notável de uma escritora, poeta, de obra notável  em vários domínios. 

Pego nos seus livros com pinças, pois a imaginação, a par da subtileza que ora revela ora discretamente se apoia em enorme cultura, conhecedora da poesia e das artes, do melhor que se pratica e dá a revelar no nosso tempo, assim me exige. Nadamos em águas profundas, ela e eu, e esta afinidade também me torna mais exigente. Ana lê e escreve por dentro, e neste conjunto agora apresentado a novidade, o gosto de nos surpreender é uma constante, bem conseguida.

Reflicto no que descubro na escrita, de associação livre, onírica por vezes ao gosto de um surrealismo que ela retrabalha, renova, recupera - exemplo para quem julga que tudo foi ultrapassado, ora o que é bom nunca é ultrapassado, mas sim fonte de inspiração. 

São várias as personagens que em dez actos vão surgindo ao lado de uma Libbie, a mulher sem pálpebras que logo por esse facto, inusitado, nos convoca a um mistério e a um novo entendimento do que pode ser a relação com um eu forçado a tudo ver, e entender, se possível, tanto em si como nos outros, no mundo à sua volta, em toda a sua variedade e complexidade. 

Um cego vê porque pressente, apura novos sentidos. Mas quem não é cego e tudo é forçado a ver, como reage? sofrendo, ou inquirindo, inquirindo sempre até aos momentos de maior exaustão e loucura?

Libbie escolheu - sem saber para onde- seguir o Espírito. Mas que poderá ela descobrir, ainda que de busca incessante, ou mesmo delirante, nessa força feita de energia invisível? Será quem sabe nos vários desdobramentos de outras personagens com que se cruza? Cada qual mais surpreendente, nesses vários inesperados cruzamentos? Saber não será preciso, mas sentir sim: a pulsação, o ritmo, quase poético, nas trocas, nos diálogos, ou nas exclamações que nos deixam em suspenso.

Esta não é uma prosa de explicação e clarificação, é uma prosa de libertação sem peias, corre o sonho, corre a associação livre de ideias e de situações, que nos empurram na leitura para ver, pelos seus olhos despidos o que ela vê e só mesmo ela pode contar.

Num dos capítulos iremos encontrar a meditação de um Rilke lido e relido, e que nos confronta com a absoluta necessidade de falar ou calar para sempre: prosa para o cesto de papéis. Ou então de assumir uma entrega absoluta e que sabemos mortal.

Os Anjos matam, no fogo do seu abraço, cegam-nos, disso fala Libbie, e retoma sua lição "amar é deixar ir". 

Mas é possível amar quando os olhos que tudo sabem ver e sentir, assistem ao contrário, num mundo tão imperfeito? Ana- Libbie deixa-nos em suspenso. Há que ler, para ver mais.

Encontramos, noutros capítulos, a continuação de uma "imaginação activa" como Jung gostava de chamar, em contraponto à ideia da folle du logis : não é loucura que tudo confunde em delírio, mas é imaginário que associa e recupera, seja um Rilke, uma Clarisse Lispector ou outro autor de dimensão universal, Virgínia Woolf, para só escolher alguns que passam, com as suas marcas, pelas associações que vamos descobrindo. Ana é uma grande poeta, uma grande escritora, de grande cultura, filosófica e literária. Há ideia e pensamento elaborado em tudo o que nos dá. Assim passamos de uma situação, de metáfora surrealista a um modo tibetano de vivência, como no 5 Acto:

" A mulher tibetana diz a Libbie para ouvir com a voz da alma: 'sente o meu olhar fixo, olhar de mãe em banquete de vida (p.57). Pensa de ver e não de pensar, pensa de sentir. Ou melhor, clareia as ideias, as do baú (Fernando Pessoa? ). Sente a dualidade, escolhe. Senta-te na rosa." (Dante? Rilke de novo?) E muito adiante, diz ainda a mulher do Tibete: "Põe as letras a dançar".

Assim dançam arquétipos, símbolos, imagens de um puro inconsciente colectivo que a autora personaliza em Libbie, que ora exprime o que vê, ora associa formas inesperadas, figurações que vão de um crocodilo-mãe, como nas sagas dos deuses egípcios a um cosmos de cristais luminosos.

Este imaginário, literário e simbólico, carregado de marcas culturais de suporte filosófico nunca negado, é o que torna este livro uma leitura tão surpreendente e desafiante, no conjunto das obras da autora.

II

Uma leitura mais aprofundada mostrará que para além das referências literárias há um bestiário simbólico,  bíblico e alquímico até, por vezes, que amplia um sentido da narrativa que de outro modo passaria despercebido. Irei de capítulo em capítulo, atravessando o discurso ora apaixonado ora reflexivo, ondulando como as ondas do mar que afogam corações, da nossa Libbie-a heroína que de olhos impossíveis nos dá a ver o que pensa ( o mundo Espiritual) e o que sente, o corpo que se entrega ou se recusa. Logo de início, temos uma descida aos infernos, o reino de Hécate, que com uma flecha lhe atingiu o coração. Não é despicienda esta "descida", pois marca a presença da treva, a assunção de uma fase de nigredo, o negro da alma que pode vir a ser caminho de mutação. 

E na verdade, de acto em acto, assistiremos a uma espécie de " drama em gente", de multiplicação de vozes, de situações, de diálogos interrompidos a que só Libbie vai devolvendo sentido, por via de uma imaginação "que não lhe falta". Não nomeia o temível Cerbero, mas quem sabe, sabe que ele está ali, no reino oculto. Há um Anjo "zangado" evocado adiante, um gigante-fera, um homem-peixe, um monstro marinho. Entrámos no sub-mundo do inconsciente, onde se forma o nosso imaginário, nos acordam arquétipos e símbolos, entre o espiritual e o material mais espesso. Lembro os Cantos de Maldoror, de Comte Lautréamont. Não temos o tubarão-fêmea, que ele desposa, mas temos "um polvo agarrado às rochas, esbracejando como um chicote de medo". O medo é uma reacção contra a qual se lutará. A presença da água, em muitos momentos, evoca o primordial mundo dos elementos. Teremos fogo, o da paixão, mas sobretudo água, a da dissolução. Assim nos surge a serpente "do outro lado", evocando, com a água, o elemento terra, a materialidade que precisará, de olhos bem abertos, de ser finalmente sublimada. Ana-Libbie usará da sua voz, da multiplicidade dos nomes e palavras, para tal exorcismo. Será fiel à "metáfora", que prefere, e por ela entra no domínio do surreal e da prática de um surrealismo inovador e próprio, que só ela domina. Ainda aqui surge o gato: enigmático, hierático, figuração do seu desejo de um Todo primordial.

Passemos ao II Acto

"Saber ser escuro, antes da luz..."

Aqui surge um homem sem umbigo: o centro do mundo, ou o despojamento de todo o egoísmo? E de novo o negro, "como um peixe escatológico: sem violência (não será Tiamat), "sem domínio, sabendo escolher". E uma referência em língua que Ana conhece e aprecia: "Nachtsseite": o lado da noite. Ainda por enquanto, a nigredo.

Adiante, a metáfora de um cão, "com pêlo que se solta e invade tudo, até que o nariz rebente nas montanhas sedosas dos invasores. Nada muda". Partiu para outras paragens, o discurso. Importante é fixar que nada muda. E em itálico, "é preciso parar e voltar para o interior".  Mas para isso subir a montanha, tão emblemática ou mais do que a água do mar. Exemplos que nos acorrem, Thomas Mann, Robert Musil. A divagação literária vai conduzir-nos a outras evocações: Celan, com o mínimo é o mais difícil, resposta a um verso em que o poeta diz, menos é mais. E não esquece o grande Hoelderlin, o que busca o sentido que se perdeu, e define o destino da vida humana neste mundo. 

Visita-se o antigo Egipto e dele se evocam os cães, deuses como Thot, o sábio dos alquimistas. E adiante outras imagens, borboletas nocturnas, asas da sublimação, como as dos Anjos que nada dizem.

Chegamos ao III Acto, com Rilke e a impermanência de tudo... com a impermanência, regressa o elemento água: " Já conheço de cor o som da água (diz Libbie) a que entra em túneis pelas artérias e se funde com o sangue numa existência murada". Os muros caem pela evocação de outros, o outro que toca em nós, alimenta o nosso imaginário, que tem de ser ampliado para melhor existir. Surge Clarice Lispector, no discurso de Libbie, A paixão segundo G.H., e a experiência das baratas, fio da meada de uma experiência de quase alucinação: "afinal as baratas têm óculos", diz. E adiante, de novo o negro de que não se saiu ainda: " o ruído do escuro por onde avança o cavalo negro como um corvo". A imagem do corvo é significativa, surge em muitos tratados de alquimia, em Basile Valentin, por exemplo, e é a marca de um negro que tem de ser transformado, transmutado, até chegar a um branco perfeito. Entretanto, neste mesmo Acto, surge de novo a serpente: ouroboros? a que morde a própria cauda, simbolizando a roda do universo? Ou a de Goethe, serpente mágica, dadora de vida e erguida em ponte de união das duas margens de um rio que será de perfeita união? Ana saberá dizer. Aqui torna-se divina. Pelo contrário, a imagem do camaleão não tem nada de divino, tudo de camuflagem e traição, espécie de regresso à dificuldade de entender e aceitar o outro, de preferir o silêncio ou a mentira. A mentira, o disfarce, alimentam o desejo, a sua efemeridade. 

A autora deixa-se levar pelo prazer dos antigos filósofos que foram os primeiros a descobrir e locubrar sobre o fenómeno da consciência, que ainda hoje em vários campos nos intriga, e se vai estudando, como faz Ana, nestes passos da sua obra. Assim surge, na experiência nunca esquecida da água, " o cavalo-marinho de Homero " fonte primordial de mitos que nos alimentam ainda. Mas adiante, à medida que os Actos se vão seguindo, veremos como o despojar das palavras acompanha o desfazer do corpo, os olhos, as mãos, o apelo da música, a articulação dos sons que rompem as cordas do violino, e um discurso que recorre a associações livres, a vozes outras que interferem na relação mais seguida e sempre interrompida com Matias, o interlocutor preferido de Libbie.

São 10 os Actos do livro, como nos Lusíadas de Camões. O 10 tem uma carga especial, pois será na Kabbalah o Um intensificado. De Acto em Acto vão sempre surgindo marcas de figuração animal, que posso alinhar para ir abreviando este post: o polvo e a Medusa, p.49, insectos, p.50, borboletas, crocodilos, p. 57, cães, p.61, besouros, chocos. p. 65, roedores, esquilos, peixes, borboletas, p. 66, um ovo de gansa, p.68, lobos, rãs, p.71, cães, p.72, caracol, p.84, melro, p.85, sereias, p.92, uma pantera, p.104, abelhas, p.112, - um conjunto que é intercalado numa narrativa que se constrói pelo meio de um pensar filosófico, de um imaginário literário e artístico (percorrendo também pintura e música, de contemplação e vivência) que teremos dificuldade em classificar. Não terei aqui tempo de referir toda a simbólica alquímica contida nestas imagens: o cão, fiel companheiro do adepto, na Atalanta Fugiens, ou as abelhas, figuração dos adeptos, bebendo o mel da rosa (a sabedoria) no tratado de Basílio Valentino: dat rosa mel apibus. Rosa que é por certo a de Dante, ou quem sabe a de Rilke, de quem já se falou.

 A autora não pretende que a classifiquem, mas sim que a entendam numa busca que é de matéria e espírito, de corpo (dilacerando-se ao longo da narrativa) e alma que se vai libertando, sublimada,  num mosaico em que muito do dito e do não dito se acumulam, fazendo lembrar uma pintura de Bosch, o genial precursor de todos os surrealistas que Ana conhece bem. Uma escrita que alguns dirão a-lógica mas que se assume como tal. A mulher que tudo vê amplia um espaço que radica também no invisível, e altera para sempre a sua relação consigo, com o outro, com o mundo em geral. Algo que se consegue tendo absorvido muito, tudo, do Todo universal de que fazemos parte.


 

  



 

 



 

Wednesday, November 03, 2021

Crónica do Quotidiano Inútil, de J. Chrys Chrystello, ed. Calendário de Letras

Recebo, com alguma impaciência do autor, o livro demorou mais de 15 dias a chegar, esta crónica que celebra os seus 40 anos da vida literária, começada em 1971 e durando até estes dias, a última data que leio é 2012.

É um belo volume, de belo design na capa e na concepção gráfica, com fotos e ilustração no interior. É agradável, para um leitor, ter na mão um edição cuidada.

A conclusão a que se chega, à medida que se avança, é que nada foi inútil no quotidiano descrito pelo autor, muito pelo contrário: os dias estão marcados por viagens e memórias que os poemas conservam e devolvem, em estilo ora mais evocativo (pelo momento em que são escritos) da revolta e da originalidade quase agressiva de muito da década de setenta, até à descrição, quase de narrativa realista, de um país que se prolonga para lá do continente, nos Açores, em primeiro lugar, mas de Macau, por exemplo, por onde se deambula, ou como depois se divide, em planetas poéticos de anos sucessivos: planeta Chrys ( o seu mundo, com Daniel Filipe, grande poesia), planeta Macau, planeta Timor, planeta Galiza, planeta Açores (iremos ver Natália Correia, a Grande voz do nosso e de outros mundos), um conjunto maior, recuperando Eduíno de Jesus, poeta que conheci como colega na UNL, e com quem se prepara um final expressivo. 

Retomo o final dum poema que quase resume o que é a experiência, ou a vivência, deste autor:

cantarei o arquipélago da escrita

sem títulos nem honrarias

sem adjectivos telúricos

sem versos de rima quebrada

não é açoriano quem quer

mas quem o sente. 

(p.222)


No fundo, como a Modernidade já tinha proposto, e evoco o grande Vitorino Nemésio, como poderia evocar Fernando Pessoa (que a todos nós marcou) o que se pretende é alcançar um novo discurso, despojado, que pulse ao bater do Sentimento, mais feliz ou mais desesperado (Antero de Quental), o sentimento de que todo o poético é real, e imaginária é a vida, o quotidiano que se definiu como inútil. Do início da década de 70, e dos exercícios de associação livre, de inspiração surrealista, até à mais recente, reflexiva e moderada, vai um longo percurso, que um bom leitor gostará de acompanhar. Viajar pela mão de um poeta por dentro dos seus países é uma experiência única, e que nos ajuda a crescer, a ampliar o que somos.