Saturday, December 21, 2013




Absolvendo o Anjo ( ainda Rilke) na Vida de Maria)

E pode o Anjo lutar 

com o Apóstolo

que só vendo acredita 

dizer-lhe 

afasta aquela pedra
do túmulo na colina
não há corpo
há perfume de flores 
esvaídas 
corre a chamar os outros
que lhe queriam bem
e diz 
que já no céu  os Anjos
lhe celebram a vida...

(19 de Dezembro, 2013)

Esta Primeira Elegia de Duíno, em trad. inglesa, é o mais belo e misterioso poema em que o Anjo, que habitou o poeta, a mim me habitou para sempre, desde o primeiro romance que escrevi e roubou o título ao seu primeiro verso...
A interpelação não terminará nunca...enquanto houver Anjos e universo e vida... 

Saturday, December 14, 2013



Absolvendo Maria
(respondo a Rilke)

Não podemos saber
em que momento
com que gesto
ou palavra
diante de nós
se precipita o destino
a sua hora...

Só mais tarde
quando os Anjos
o da luz e o da treva
abrirem os portões
e os ouvirmos gritar:
agora vai
é este o teu caminho!


Thursday, December 05, 2013





Um Rosto de Mulher

Tem o rosto suave
de quem já partiu.

Terá sido feliz
essa mulher?

Não podemos saber : 
não o disse antes
agora não o diz


Dezembro, 2013





Saturday, November 09, 2013

Passeando entre as Horas

  O eterno Pessoa...
I
Ler Fernando Pessoa é sempre para mim fonte de inspiração.
Os seus poemas, de qualquer um dos vários heterónimos, desafiam-me, forçam-me a ler e reler, por muito que já os tenha lido. À minha frente a PASSAGEM DAS HORAS.
Mas antes, é interessante ler "A Arte de Álvaro de Campos vista por Ricardo Reis", que António Quadros escolheu para acompanhar a selecção de poemas incluída por ele e Dalila Pereira da Costa, no vol.I da Obra Poética e em Prosa, (Lello e Irmãos editores, Porto, 1986) na bela edição de 3 volumes.
Ora o que diz Reis àcerca de Campos?
" Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras.(...)Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma ideia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstractamente emotiva, que não implique ao menos o esboço de uma ideia"(p.867). "É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A ideia serve a emoção, não a domina" (p.868).
Numa altura, 1916, em que se preparava o Manifesto sobre o Futurismo, um dos "ismos" de uma Europa em ebulição cultural, política e artística, em que se nega a Ordem, e se proclama por todo o lado a libertação do Eu, todos os eus que constituem uma espécie de Eu universal, globalizado, vem Ricardo Reis, o poeta da racionlaidade grega, o distanciado do sentir, pois a entrega ao sentimento é uma diminuição do intelecto, esclarecer como, a seu modo, se deve "ler" a poesia ou mesmo a prosa, do excessivo Álvaro de Campo, pseudo-engenheiro, figuração de uma alteridade mais moderna e actual(engenheiro) do que a dos subtis Caeiro (Mestre) e Reis, ou Fernando ele mesmo, o desdobrado.
Quanto à designação de poeta futurista, será correcta em certos momentos, para certos poemas, deverá ser lida com algum distanciamento, noutros poemas, noutros momentos.
Pois não podemos esquecer que a consciência pensante e actuante na palavra é sempre a de Fernando Pessoa, ele mesmo, ainda que pela voz que vai emprestando ao outros.
Os autores que de imediato ocorrem, no tocante ao Futurismo ou ao Sensacionismo são Mário de Sá-Carneiro, a quem dedica OPIÁRIO , longo poema estrófico e rimado, evocador das fugas e do prazer de um oriente sonhado. Para o Futurismo teremos Marinetti inspirando uma ODE TRIUNFAL, celebrando fábricas, com o seu formigar de gente à luz de lâmpadas eléctricas, as "horas europeias, produtoras, entaladas/ entre maquinismos e afazeres úteis /quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas"(p.879), e num atropelo febril, de descrições e imagens a enorme ânsia de tudo viver, tudo abarcar, ser o "souteneur"de tudo o que de novo roda na louca existência do mundo. Esta Ode, tal como a ODE MARÍTIMA, são sem dúvida o expoente máximo da vivência futurista de Campos: "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!" é a conclusão deste extenso e intenso, belíssimo e Triunfal poema.
 Mas há ainda outro poeta, o panteísta Walt Whitman, cuja obra teríamos de ler como Pessoa a leu (estava na sua biblioteca pessoal) para entender melhor os arroubos sensuais de Campos, ou o nítido olhar de Caeiro, oscilando entre um misticismo quase neutro de tão transparente, e uma devoração carnívora e carnal, como nas Odes citadas.
Ver ainda SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN (p.921) que Campos proclama seu "irmão em universo....".
II
Passeando agora pela PASSAGEM DAS HORAS, tentaremos ir ao encontro do que está dentro do coração do poeta, como ele diz, num cofre que, de tão cheio, não se consegue fechar.
Retomam-se as imagens das Odes anteriores: os lugares", "os portos" ,"as paisagens", os "tombadilhos" de barcos que se tornara, fantasmagóricos, como o Navio Fantasma de um Wagner. Citam-se, em enumeração que não é descritiva, é mero apontamento ou listagem, cidades, ilhas países: Singapura, Maldivas, Macau,Madagascar, Cidade do Cabo "com a montanha da Mesa ao fundo".
Dir-se-á talvez que num exercício de exorcismo de alma Pessoa regressa qui às suas viagens, de ida para a África do Sul, com a mãe e o padrasto, e de regresso a Lisboa, adolescente e só.
A enumeração, longa, traz ainda mais à memória a solidão que é a sua, e se enraizará na sua alma, como semente doentia, para sempre.
Passado o tema e a evocação da Viagem, surge o tema da Vida: "Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei.
...
Seja o que fôr, era melhor não ter nascido".

Num deslizar semi-onírico de imagens soltas, passam palácios, bobos, chicotes, mendigos, crianças abandonadas, toda a "máquina imensa do mundo" que não ajuda, nem com música, a ultrapassar a mágoa do mundo, e já a noite se aproxima. (não se pode, face a esta amálgama dorida, falar de Futurismo, mas antes de uma poesia de reflexão e simbolismo, em que cada imagem referida, ou sofrida, porque é de sofrimento este conjunto descrito, antecipa já o que virá a ser a escrita surrealista, de mão automática, ao sabor do correr do inconsciente.
Di o poeta:
"Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente" (p.931).
Pelo meio deste longuíssimo desabafo poético, em que a alma se distende, correm os versos que pertenceriam a outra Ode à Noite:
"Vem, o´noite, e apaga-me,vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além,senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo."
A noite é Mãe, é Irmã mais velha, é Noiva - uma litania que de verso em verso conduz à imagem de uma vida perdida. "não sei sentir, não sei ser humano,  conviver...."(p.933).
O momento mais explícito, no desejo frustrado de sentir, e o verso em regra mais estudado nesta longa elegia, é o que se segue:
"Sentir tudo de todas as maneiras
Viver tudo de todos os lados
Ser a mesma cois de todos os modos possíveis ao mesmo tempo...".

Versos que ampliam o que já fora dito, de todas as maneiras,ideia a ideia, imagem a imagem, de dentro do enorme cofre da alma a abarrotar.
E de seguida, num mesmo ímpeto de tudo viver e abarcar, alarga a medida do seu Eu a toda a espécie humana, no que tem de bom e no que tem de abominável, num Todo imaginário em que o discurso poético, adiante, já mais veloz e descontrolado (ainda que o descontrolo não exista nunca numa obra verdadeira) caia de novo na "raiva panteísta", de "sentidos em ebulição",  em que tudo é " uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha de si para si...violências de velocidade louca.." etc.
Sim, nesta variações de emoção e estilo, ora poderia um crítico falar de futurismo, e sua raiva invencível( pois não se estava em guerra? ) ora de sensacionismo descontrolado por uma vertigem superior, a do panteísmo de fusão com a natureza violenta, subitamente a descoberto na alma, ponto negro num universo distante.
PASSAGEM DAS HORAS: Em resumo, um poema que por vezes cultiva um sado-masoquismo certamente inesperado na burguesa Lisboa de Pessoa, mas não na sua roda de amigos, no café, uma cavalgada que não voa por cima de montes, nem se desvia da fundura dos poços, mas procura uma tal desarticulação da consciência de ser que o poeta continuará, pela vida fora, em todos os poemas, a procurar recompôr os fragmentos que se espalharam, como pó de estrelas, pelo seu e nosso imaginário de leitores, até hoje.




            

Friday, November 01, 2013

O Anjo de Duerer

Tem as asas caídas.
Está zangado.

Foi posto ali de castigo
até que o círculo
se transformasse em quadrado.



Saturday, October 26, 2013

Morrer
é voltar para casa
aquela casa da infância
onde a cozinha era grande
a cozinheira ralhava
e lá fora o jardim
ainda maior
chamava...

Saturday, October 12, 2013

Acorrem as Erínias


Acorrem as Erínias
fugindo da sua noite

dos seus buracos
de sombra

ouvem-se os gritos
de fúria

garras que prendem 
os nomes

nomes que não são 
de vergonha 
ou
arrependimento

estão manchados
de sangue

o sangue 
da memória

(Lisboa, 2013)

Thursday, September 12, 2013




Dois corações partidos
no corredor da vida

caminham devagar

não falam
são muitos os degraus
que têm para contar

buscam sinais
outrora prometidos:
sinais de luz
de chegada
ou de partida

Sunday, September 01, 2013

Okoundji no seu caminhar

Pensamentos ao longo do caminho:
Onde o Espírito é livre o coração não teme, a harmonia é perfeita.
...
A grandeza do pensamento não tem limite nos territórios da emoção. É pois verdade que toda a beleza do sonho reside no elogio de um lugar não atingido.
...
Os ruídos no coração do homem não são senão os ruídos deste mundo laborioso que nos rodeia.
...
A vida não é um dom, é a obra incessante de uma oferenda.
...
A palavra do livro é muitas vezes silenciosa...

Friday, August 30, 2013

Au Matin de la Parole

De Gabriel Mwènè Okoundji
Au Matin de la Parole, com posfácio de Patrick Quillier, também ele poeta.
Foi uma leitura, ou melhor releitura, o Patrick já me tinha oferecido o livro há alguns anos atrás, gratificante, como bálsamo na alma, em momento que carecia de mais intensidade e mais simplicidade ao mesmo tempo.
Pode parecer contradição, mas não é.
O sentimento mais intenso é, ao fim e ao cabo, como lemos nas palavras dos Mestres de Okoundji, que ele evoca e retoma neste livro, é o sentimento mais simples.
Mais simples das coisas da vida, e também da vida no seu quotidiano, que esquecemos ou até desprezamos, no mundo actual demasiado apressado e demasiado febril. Vaidade das Vaidades...
No Amanhecer da Palavra seria o título em português. 
Comecemos por aí: pelo amanhecer, ao mesmo tempo Aurora e Nascimento de um Verbo que se tornará matéria mesma da vida.
Vida contemplativa, feita de atenção e de recolhimento humilde.
Okundji é natural de uma tribu do Congo Brazzaville, e actualmente Psicólogo Clínico num hospital de Bordeaux, e Professor da Universidade.
A sua obra poética define-o como uma das vozes maiores da poesia africana, distinguida com vários Prémios. E este seu título que agora intercala no seu nome, de Mwènè, significa que completou um longo processo de iniciação com os Sábios da tribu originária, e que nele foi delegada a responsabilidade de continuar com a tradição, actualizando-a, pela vida e pela obra.
Este amanhecer que aqui nos é oferecido é um renascimento, um processo ritual de maturação filosófica e religiosa que só o tempo, Sábio máximo, nos pode conceder.
O Tempo e a Vida. A vida na sua multipla abundância: de luz, de escuridão, de frio, de calor, de alegria e de dôr, aquilo a que o poeta chama " os estados do ser vivo".
O amor é parte integrante desse estado de ser vivo: amor de plenitude, entrega e compaixão.
Fico-me, esperando ter despertado a curiosidade por este poeta secreto, com uma das citações dos aforismos de Ampili, a Grande-Mãe e Pampou, o Pai Eterno:
" que a ignorância é o ninho que o pássaro perdeu"...
E como se torna imperioso que os pássaros que por todo o lado esvoaçam, perdidos, recuperem o ninho, ao recuperar também a Palavra perdida, no seu Amanhecer!

Friday, August 23, 2013

Lendo, em Férias...
Cristina Carvalho

Uma escrita fluida como onda, surpreendente de tão detalhada, herdeira de um realismo fantástico por vezes feliz, por vezes dorido, em que somos conduzidos por um desejo que é de amor, compaixão e saudade.
Em Ana de Londres é de nós todos que se fala.
Já em Marginal fui descobrir uma narrativa talvez mais pessoal, com atravessamento de memórias, numa escrita rápida e firme, de quem sabe o que pretende dizer, e não deseja perder tempo.
O início é sedutor, e os livros que prendem o leitor têm de seduzir.
A descoberta na rua de um conjunto de fotos antigas, que uma filha entrega à mãe, que por sua vez nelas redescobre um tempo que foi passado e vai tornar-se presente,- é o mote perfeito. 
À medida que progredimos na leitura o espaço materializa-se, as personagens adquirem vida própria, sob um olhar que se tornou exigente e contundente: a Marginal, estrada de atravessamentos múltiplos, torna-se quase perigosa, no fogo das emoções que (supomos, não é claramente afirmado) a Revolução de Abril despoletou.
Muitos amores, muitas separações.
O quotidiano banal torna-se insuportável: crítica bem detalhada de tiques e vaidades de pequena burguesia, que se julga de repente emancipada. Mas Cristina, no alter-ego da narradora, não perdoa. Poderia ter dito, como em Downtown Abbey: don't! It's so middle class!
O que me remete para a abertura do livro, antes do 1º capítulo, e a declaração frontal, como que de revolta:
" A Revolução não fui eu que a fiz".
E não foi, mas viveu com ela, ou através dela, todas a mudanças que um ar novo, ainda que de louca rabanada, introduziu.
Cristina tem um olhar arguto, que no traço grosso das personagens caricaturadas remete para algum realismo expressionista, de onde nos leva a seguir para vivências mais fundas, as do amor sentido.
As páginas que são tocadas ao de leve, numa estrutura musical, de "andamentos" preparam as que se seguem, do conjunto de negativos revelados, por onde escorre um amor secreto, amor passado e revivido: mas por quem? 
Um itálico separa amor passado de vida presente.
No itálico permanece encerrada uma paixão violenta, de entrega rápida, de desejo que não terá controle.
Mas nas Revoluções, como nas paixões, a intensidade depressa se esgota: a vida regressa a um decurso normal (que pode tornar-se insuportável, conduzindo à separação consequente).
Assim, de foto em foto, se percorre um tempo irrecuperável, num espaço que também ele foi mudando, ao longo da Marginal.
A própria vida se tornou em parte marginal, vivida em recato à margem, mas que uma súbita pulsão poderá, a qualquer momento, fazer de novo explodir.
Talvez só em melancólica saudade?
A estrutura da narrativa é aleatória, mas sem que se perca um dos fios da meada, para mim talvez o mais interessante, e que gosto de ver na obra de Cristina: a capacidade de olhar e descrever com objectividade surpreendente o mundo à sua volta, desde o jardim mais pequeno, à planta mais solitária, ao recanto da casa mais cuidado. Sempre a palavra certa, quando estamos em época de tanta vaguidão e de tanto vazio...
Herança de um pai cientista e poeta? 
A qualidade da escrita, neste romance, tem a ver com a minúcia do detalhe, mais do que com a pressa de alguns momentos em que a hesitação, ou a reflexão, poderiam ter tornado o "menos" mais intenso do que o "mais" do seu dizer.
No menos fica guardado o mistério, no mais o explícito apaga  a sombra que o teria coberto.

Tuesday, July 30, 2013

Carta a Sónia Cravo

Querida Sónia


Já li o seu romance, deste lado do mar vermelho, e como sempre me acontece, é-me difícil falar  sobre obra alheia. Por isso nunca, ou muito raramente, fiz crítica literária, para jornais ou revistas.
Por uma razão: também sou escritora e entendo que todo o autor – é ele que assina o livro – tem direito ao mais e ao menos, em cada momento da sua escrita.
Escrevi o meu primeiro romance aos dezoito anos, em francês (estava em Paris, onde tinha a família da minha mãe). De regresso a Portugal reescrevi, em português, e saiu na Ática: 1961.
O meu último, publicado em 2011 na Sextante, representa a chegada aos 71 anos com romances, teatro, poesia e ensaios académicos de investigação.
A escrita mudou, como a sua mudará – mas para si, felizmente ainda há muito tempo!....
 Este é o seu segundo livro, adivinho uma grande e intensa paixão e necessidade de escrever. Ainda bem, é a marca de um escritor, essa necessidade. Desde Rilke que os grandes autores dizem que, se a escrita e a sua emoção não forem sentidas como um acto de sobrevivência, o melhor seria não escrever.

 Descubro no seu romance, com espanto, porque não é usual, um perfeito e raro domínio da língua e da sua expressividade, nas descrições que faz. Com marcas da grande prosa neo-realista, que me recordo de ler num Alves Redol ou num Aquilino Ribeiro, ou mais do meu tempo, um Cardoso Pires (que conheci e sempre admirei muito). Talvez eu esteja enganada, mas julgo que são estes os seus antepassados literários? Claro ainda há o Saramago.
Essa marca estilística é uma grande qualidade, que se purificará ou adensará com os anos, com os temas, com o que vier a ser escolhido, na necessidade de cada novo momento.
Quem pensa bem e escreve ainda melhor o que pensa tem o caminho aberto à sua frente.

Se o estilo é realista, falta agora aludir ao imaginário – herança de outros, já do realismo dito fantástico, como nos célebres e fundadores Cem Anos de Solidão, que Saramago também leu bem, e a seguir a ele, tantos outros das novas gerações.
O seu imaginário é no entanto mais obscuro e mais onírico – o que o torna mais apelativo para quem a lê.
Deseja-se ler mais, saber um pouco mais.

Aqui entra a chamada estrutura da narrativa: recortada, post-moderna no uso do flash-back e no aleatório de algumas situações que não se fundem, antes se vão somando umas às outras.
A Sónia escolhe o mais, em vez do que na minha idade eu teria escolhido: o menos.
Era Celan que dizia, num poema Cello-Einsatz: tudo é menos / do que é/ tudo é mais.

Por outras palavras, filosofando sobre a depuração do estilo numa narrativa, o “menos” é na realidade “mais" : porque deixa o sentido profundo em aberto, o leitor pode completar, reflectindo sobre o que não está dito…o mesmo podendo suceder connosco,  ao escrever deixando uma interrogação só nossa e que nos levará depois a outro livro…

Resumindo: há uma soma de situações que tornam a narrativa talvez demasiado densa – sem que deixe de ser interessante - isto não é uma crítica negativa. É uma constatação, apenas.
Mas noutros livros se calhar pensará que o denso, mais depurado, não ficará menos intenso…escolha que será sempre sua, claro, o autor é dono e senhor da sua criação!

Saturday, July 13, 2013

Thursday, June 20, 2013

O Poeta envelhece.

Já morre devagar
sem dar por isso.

Está caído no chão,
coberto de palavras.

São metáforas, diz,
mas não sabe o que diz.

Não saberá escolher
a que mais chama por ele
e há mais tempo:
uma palavra-chave
uma palavra-grito
aquele segredo
que dói
de sangue tão antigo...

As palavras agitam-se:
chegou a hora.

Enchem-lhe a boca
de espuma.

Na espuma se afogará
escolhendo a palavra
errada,

a que não deixa voar.







Monday, June 10, 2013

Evocando H.H.

Na folha de rosto de OFÍCIO CANTANTE (1953-1963) edição da antiga Portugália Editora, que acarinhava os jovens da época, tanto como os consagrados, encontro e deixo para deleite dos leitores, um poema que não pretende ser mais do que isso: escrito ali, à mão, em letra generosa bem desenhada, quase contida, de tinta permanente, para ser lido antes de se começar o livro propriamente dito.
É um sinal, para os amigos, mais do que para os admiradores futuros... amigos há poucos, admiradores há e haverá sempre tantos...
Passo a transcrever:
Mexo a boca, mexo os dedos, mexo
a ideia da experiência.
Não mexo no arrependimento
pois que o corpo é interno e externo
do seu corpo.
Não tenho inocência, mas o dom
de toda uma inocência.
E lentidão ou harmonia.
Poesia sem perdão ou esquecimento.
Idade de poesia.
(Herberto Helder)
Não se esconde aqui o ser e não ser de um Fernando Pessoa, na plena consciência do que se é não é: " o corpo é interno e externo do seu corpo".Podia este verso ser remetido para o de Pessoa, em frente ao rio, e que Eduardo Lourenço tanto nos deu a ler, quando voltou a Portugal em 1974-1975, para um Seminário da Universidade Nova: " o que é ser rio e correr / o que é está-lo eu a ver"...(in ALÉM_DEUS). Aqui se reflectia sobre a questão do despertar da consciência de si, através da contemplação do mundo (era o rio, mas podia ser "o outro", o outro nele, o do permanente que se revelava do lado de lá das coisas e dos seres, e do eu em si mesmo.
Mas é mais interessante e mais verdadeiro, neste caso deste poema de H.H. ir recuperar a epígrafe de HENRI MICHAUX que ele escolhe, não por acaso.
Quem lia Michaux, naquele tempo? Ninguém, a não ser ele, H.H., por força das suas viagens, de onde trazia leitura e inspiração modificadora da sua relação com a experiência poética, eu, por força da minha cultura, devida em grande parte à via familiar em Paris, numa família onde a edição de PAROLES, de Prévert foi a iniciadora de um novo e duradouro culto da sua obra, pela qual me apaixonei, como pela de Henri Michaux, que me orientou para os estudos do hermetismo e da alquimia, através de um seu amigo. Eram assim os criadores: generosos, distribuindo a alegria e a energia do seu saber e experiência criadora. Eis a epígrafe, que dirá muito sobre este poema de H.H. :
Je ne peux pas me reposer, ma vie est une
insomnie, je ne travaille pas, je ne dors pas, 
je fais de l'insomnie, tantôt mon âme est de-
bout sur mon corps couché, tantôt mon âme 
couchée sur mon corps debout, mais jamais 
il n'y a sommeil pour moi, ma colonne verté-
brale a sa veilleuse, impossible de l'éteindre.
Ne serait-ce pas la prudence qui me tient 
éveillé, car cherchant, cherchant, et cherchant,
c'est dans tout indifféremment que j'ai chance
de trouver ce que je cherche puisque ce que 
je cherche je ne le sais pas.
(Henri Michaux)
Neste anos, de 50 a 60 e um pouco mais - eu, pelo meu lado, seguindo o conselho de Michaux, estudei durante anos a fio os documentos herméticos e alquímicos, procurando, sem saber bem o quê, tal como eles, um fio revelador.
Mas eram eles, Michaux e Helder que na sua obra iam desfiando os fios do saber: Helder na firme ideia de que o corpo é interior e exterior e dessas duas realidades se devia dar testemunho, e Michaux, o insomníaco, buscando na pintura as formas que lhe assombravam as noites e os dias.
A COLHER NA BOCA, de H.H. editada na antiga Ática em 1961 faz a primeira recolha desta poesia do corpo, retomada em OFÍCIO CANTANTE:
 por aqui corre o sangue, um sangue feminino:
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
o seu arbusto de sangue. Com ela 
encanterei a noite.
....
Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
....
Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
( O AMOR EM VISITA)

Este prazer, esta busca constante do Feminino em Herberto Helder não se encontra em Michaux. Helder procura um corpo e alma gémeos do seu, que o alimentem, como nos antigos ritos da Deusa-Mãe. Ritos de que se pode morrer.
Michaux já estava do outro lado do Ser , masculino ou feminino, só muito no fim da vida se descobre (no Espólio) aquele jardim parisiense, oriental, onde cultivou uma paz que não vinha do corpo, talvez nem sequer da alma, mas de uma comum entrega e desistência da vida. Uma entrega perfeita...










Sunday, May 19, 2013



Celebrando o aniversário de Wagner, Tristão e Isolde, a ópera mais inspirada, a partir do conjunto de textos do século XII e XIII que hoje podemos ler, em francês moderno, pela mão de René Louis.
No caso de Wagner, o autor lido foi Gottfried von Strasbourg, que narrou em poema a trágica aventura dos dois amantes, de que iremos encontrar testemunhos na literatura inglesa, francesa e alemã, como é o caso.
Para um estudo completo é à Obra de Joseph Bédier que devemos recorrer, pois compilou todos esses manuscritos medievais: uns mais completos, outros guardando apenas partes da tradição, em prosa ou poesia, conhecida até ele, em 1900.

Wednesday, March 13, 2013

O livro deJazz em Portugal


Da autoria de João Moreira dos Santos - cujo nome deveria figurar  na capa- um contributo inestimável para o conhecimento do que ele chama de " 90 anos de swing nas letras, 1923-2003".
Um levantamento cuidadoso do que se publicou, em tradução e não só, deixando ver como na era do Modernismo português eram chamados ao design e ilustração das capas alguns dos nossos melhores artistas.
Quanto ao Jazz, a história da sua divulgação em Portugal é antiga, como se pode concluir pela obra de J.Moreira dos Santos.
Aqui fica o destaque, e a sugestão de leitura a todos os que amam essa arte maravilhosa da improvisação, que não nos cansamos de ouvir e todo o tempo, pelas novas gerações, se renova, mesmo quando aparentemente se repete!

Monday, February 18, 2013



I
De vez em quando, num dos meus cursos de Escrita Criativa, era abordada a questão do estilo: o que é o estilo, e o que é o estilo deste ou daquele autor?
A resposta não pode ser imediata: em vários autores se foram notando "mudanças de estilo" ao longo dos anos, devido a um alargamento da sua cultura, da sua necessidade de exprimir, de forma coerente (defendo que num criador a estrutura profunda do seu imaginário pessoal será sempre detectável...) mas renovada.
Picasso podia ser um excelente exemplo: da inicial fase azul, figurativa, mas já com um olhar de través sobre o pano de fundo do real até ao seu cubismo fundador de uma nova linguagem : e aqui se pode encontrar já uma primeira resposta sobre a questão do estilo. Na pintura, como na música, como na literatura, o estilo de um criador será a sua linguagem própria, reconhecível, ainda que renovada.
Vem isto a propósito do mais recente romance de Helder Macedo,  Tão Longo Amor Tão Curta A Vida, (ed. Presença, 2013).
Helder tem o dom dos títulos certeiros, e este é mais um deles. Prende o olhar, na livraria, prende as mãos, que folheiam em busca das matérias sensíveis ao gosto de quem gosta de ler. Eu gosto de pegar num livro, de o folhear e por vezes, se calhar de modo injusto (porque impaciente) não conseguir continuar, por falta de marcas de estilo, ou de verdadeiras matérias de interesse. 
Helder, de seguida, desfia uma série de epígrafes que emolduram o seu pensamento e clarificam o nosso: de Mário Cesariny, o nosso grande poeta/pintor surrealista, passando pelo Padre António Vieira ( a solidez pioneira da sua prosa), continuando com a irreverência de Alexandre O'Neill, mas sem esquecer Fernando Pessoa / Álvaro de Campos (e aqui se retomaria a questão dos estilos, num mesmo criador em desmultiplicação), C. Drummond de Andrade, William Shakespeare, e finalmente last but not least, Camões, com os versos do soneto que inspirou o título da obra:
Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.

II
Começo então a ler.
São 12 capítulos, cada qual com um título que dará indicação de tempo, ou de espaço, ou de ambos. Recordando que existem, em simultâneo com o tempo medido ou o espaço geográfico, um tempo e um espaço de interioridade criativa ilimitada  no espaço aberto da imaginação (onírica, muitas vezes assumida, como na prática surrealista).
O romance começa sem preâmbulos desnecessários directamente com o diálogo entre o narrador e um personagem meio estranho, que lhe aparece em casa a desoras, invocando a absoluta necessidade de lhe falar.
O narrador transforma-se em ouvinte paciente, sem deixar de comentar ora a estranheza ora a curiosidade que o mantém atento.
E nós, leitores, acompanhamos o narrador nesse exercício.
Sendo o narrador, tal como o autor, um escritor preocupado com a sua escrita, não será surpresa, mas antes confirmação, que a par do enredo e da intriga que se tece, nos seja oferecida uma vasta reflexão sobre literatura e arte no sentido mais geral: a música estará muito presente ( o cap.12 tem por título a Winterreise de Shubert, que por sua vez nos remete para a Viagem de Inverno, que Helder republicou, com outros poemas, em 2011).
À medida que o romance se desenvolve, numa escrita que não faz cedências, mas de tão directa e aparentemente simples no seu dialogar connosco, nos prende página a página, iremos encontrando as referências aos grandes da literatura universal, alguns já constando das epígrafes, como Shakespeare.
 Helder recupera em pano de fundo a sua mundivivência, feita de muitas leituras, muitas viagens, muito convívio artístico - algo que o facto de o seu narrador ser também escritor permite, e vai dando substância à realidade  e à  misteriosa ficção descritas, num cruzamento de situações e reflexões  a que não faltam o humor (bem inglês) e a crítica política  - mas sem nunca nos deixar perder o fio da meada.
Destaco, como marca própria de estilo, que muito me agrada nesta obra, o rigor do pensamento numa prosa sem falhas, um continuum de reflexão, abrindo no realismo da prosa um espaço para lá dela mesma.
Se tomarmos o muro de Berlin, o seu erguer ( a que assisti, em 1961!) e a sua queda como emblema de um mundo que como todos os mundos ( incluindo o da vida, tão curta, para desejos tão longos) tem um destino marcado e um ponto final, essa recuperação da memória das utopias ocidentais (agora europeias) será, neste romance, o núcleo vital de mais um percurso filosofante com que o autor nos deixa, a par de uma intriga quase policial....
Mas não esperem que aqui vos resuma a história: a ideia é que a leiam...