Friday, September 30, 2022

REVOLUÇÃO

 Ainda que fosse bordado a ouro e diamantes

esse pano que vos cobre a cabeça

para tapar os longos cabelos

que chegam à cintura

ainda assim esse pano seria sempre 

sinal de escravatura. 

Ó jovens do Irão

rasgai os panos 

cortai os longos cabelos

 quebrai as varas com que

vos martirizam

esses falsos profetas 

de um deus que nada disse


Chamai os Anjos do Céu

que desçam

com as suas espadas de fogo

e que degolem

os homens que foram filhos

e agora torturam mães.

Wednesday, September 28, 2022

Estranhamentos, ainda os poemas

 Quando o livro me chegou, pelo correio, não estranhei a beleza da edição, há anos que a editora Quetzal da Piedade Ferreira e do Rogério Petinga me habituaram ao bom papel, à letra cuidada, escolhida para que se leia, aos autores que depois arrumo na estante que chamo dos amigos. Só bons autores, bem editados, um prazer. Prosa ou poesia, sempre a colheita é genuína.

Por que me ocorre então esta palavra, estranhamento, com este livro de agora, O MEU CORPO HUMANO de Maria do Rosário Pedreira?Poderia ser outra coisa, o seu corpo, a não ser humano? Podiam os poemas ser de animais, uma espécie de bestiário moderno, ao gosto dos textos de metáforas medievais? Que humanidade especial deseja a poeta sublinhar, neste livro, com estes poemas? O tu a quem se dirigem não perceberia o sentido se ela não o sublinhasse? Que é corpo, (tanto como será de alma) e cada parcela do seu corpo adquire vida própria, como se fosse de vida renovada, pelos sentidos despertos, que abrem  em epígrafe o início da escrita e da nossa leitura:

É o meu corpo

humano, vê, ouve,

toca, pensa e

dói-lhe.

Volto porque

preciso muito

que me amem.

 

O livro fala do que sente um corpo que ama, mas deseja mais, que sofre e evoca o sofrimento, ainda que passado, desarticula, como se fosse livro de estudo de anatomia, as várias partes de um corpo que no poema se disseca. Tem a noção da efemeridade do que é humano no corpo, sem se sentir obrigada, no exercício poético a exprimir estados românticos de alma: "daqui até à morte é um instante". Pede contudo que aquele a quem se dirige - esse outro sempre presente - lhe ensine no intervalo da vida " as horas do amor". O amor, dado e pedido, faz a materialidade do seu corpo mais presente, ou mesmo sempre presente, quando é expresso. Basta um gesto, uma presença, uma comunhão, mesmo ao envelhecer pensando em como foi o sexo que fizeram e o que vão fazer. O mesmo com os poemas, pois também os versos terão o seu tempo, ou já o tiveram, e não se sabe se voltarão a ter. Esta não é uma poética de interrogação, é uma poética de evocação (bem humana) ou de afirmação convicta do que diz. Torna-se um quase diário que se não estivesse ordenado em estrofes, poderíamos chamar de prosa poética como a de Comte Lautréamont: prosa pela narrativa nua, realista por vezes de tão directa (passo a mão pelo veludo das tuas calças velhas / e aperto as nádegas / firmes do passado. Não sou /  só eu: as tuas roupas também / têm saudades".

Oscilamos, ao ler, entre passado e presente outrora um tempo feliz, agora um tempo que se suspende entre ser e não ser um tempo (um corpo) desejado. Ou como no poema de Sexo, um envelhecer ainda assim cuidado: " Os poemas, tal como nós, já vão / murchando. Há uma espécie de / bolor que se instala nas pregas da / nossa vida e deixa as mãos mais / trôpegas sobre o papel. / Ao fim da tarde / eu fico triste sem razão e / tu adormeces diante de um bom / livro. Temos medo do que aí vem, / mas não o confessamos (...) mas juntos e abraçados até ao fim. " O sexo, o acto de o praticar, com desejo e amor, é referido no poema, em suspenso porque como nos poemas tudo pode ter um fim: são corpo e são humanos os poemas, como a carne de quem escreve e também tem o seu tempo. 

O tempo, de sofrer, de ser feliz, de amar e ser amada, recordar e esquecer,  atravessa esta obra de Rosário Pedreira. É o tempo que torna humano esse seu corpo que ela detalha materializando, como Heidegger, o Ser. 

E já percebo porque me ocorreu a palavra estranhamento ao pegar neste seu livro. Quem já tanto fez, já tanto disse e escreveu, sente esta necessidade imperiosa de voltar a dizer, por que razão? Devolve a quem lhe deu outra vida, um seu relato, cheio de amor e gratidão que se adivinha entre linhas? Diz da sua existência, quem sabe outrora apagada, agora feliz num corpo que sente amado e por isso mesmo humano? Mais humano, como em Nietzche? Humano, demasiado humano, e precisando de mais e mais consciência de que é amado esse corpo, que é o seu. Não esquecer nunca que esta poeta é culta, lida, vivida, e não estranhemos o que nos pode a nós parecer estranho.

Estranha mesmo só a vida...

 



Tuesday, September 20, 2022

Maria do Rosário Pedreira, Os Poemas

 

Entrámos em Agosto, já Setembro, um Outono quente e húmido.

Ando há muito tempo com a ideia de falar daquele encontro no Parque Eduardo VII onde se iam fechar as festas de Lisboa. Nós tínhamos convite para as filas da frente, porque iam tocar os nossos filhos, acompanhando um grande músico brasileiro, que eles conheciam bem, e era o convidado de honra.

O Bernardo tinha sido operado há muito pouco tempo, e íamos os dois, sem empurrões, caminhando na fila para os nosso lugares.

Foi então que me cruzei com um dos meus antigos editores, que não via há tempos, a saudação foi rápida, era hora do concerto, mas o que vi então me deixou até hoje com o que descobri ser da parte dele a revelação – por um breve gesto que fez – de um amor grande e terno. Ia à nossa frente com uma jovem mulher, de aspecto frágil, cujo rosto não vi, mas que ele carinhosamente, com muito cuidado, aconhegou da humidade da noite, puxando-lhe sobre os ombros um casaquinho de malha. Ou seria um xailinho?

Ele visivelmente cuidando do seu amor. Ela visivelemente deixando-se ser cuidada.

Seguiram para os seus lugares, no fim do concerto já não nos voltámos a encontrar.

Ainda hoje, já passaram mais de dez anos, revejo a cena tão comovente e tão reveladora.

Como num gesto tão simples se pode esconder tanto amor.

Hoje são um casal, andam juntos por todo o lado, põem as suas fotos no facebook, a ele conheci muito bem, porque foi meu editor, a ela não conheço pessoalmente, conheço os seus poemas, alguns deles carregados da sombra que é a marca do fado, e muitos deles têm sido cantados por isso mesmo.

Hoje colocou no facebook, que se tem transformado em espelho de alma de alguns, um poema em que ao falar de antigo sofrimento, de todas as maneiras – termina dizendo, pode não parecer, mas é um poema de amor. Eu sei a quem, vi-os, naquela noite, ali começou ternamente a química que os salvava, a ele da solidão e a ela, quem sabe, da morte ao mesmo tempo temida e desejada.

Há um Anjo que protege os amantes na hora do amor. Rilke sabia.

Ocorre-me que tudo no amor é química, e por isso de repente surge uma fusão tão intensa, que se torna irrecusável. Durará para sempre ? Não podemos saber, mas não importa, a força está na magia do instante. Essa é a magia irrecusável, a suave atracção que unirá dois seres. Quantas vezes na vida poderá acontecer? Também não saberemos. Importante é o momento, a entrega subtil, feita em silêncio e tão alquímica que de dois faz um só, num tempo que se tornou perfeito. O que se perdeu regressa, transformado. Os poemas são os anéis da alma, ouro fundido em que todos os nomes se renovam: outrora cinzas, agora estrelas.

 

Friday, September 02, 2022

Félix com Hegel e Lacan (relendo Slavoj Zizec)

 Na edição da puf, de 2011, Zizec é definido como "o mais sublime dos histéricos". Uma adjectivação que atrai, porque o define como anti- seja o que fôr, neste caso contra Platão, o que Aristóteles já fora e continuando a distinção entre o que é possível ou desejável num filósofo Zizec vai fazendo um rápido mas brilhante historial dos filósofos que distinguiu, Fichte, o dos Discursos à Nação Alemã a ser derrotada por Napoleão, a Hegel, que ele define, como se diz no prefácio a este volume, como "monstro do panlogicismo, a mediação dialéctica total da realidade,  da dissolução total da realidade no automovimento da IDEIA. Face a este monstro afirmou-se, pelo contrário, o elemento que era suposto escapar à mediação do conceito" (p.11). Assim evoluíram os sistemas ditos post-hegelianos que se opuseram ao absolutismo da da Ideia em nome do abismo irracional da Vontade, cita-se Schelling, eu lembraria também Schopenhauer ( o mundo como Vontade e Representação), cita-se Kierkegaard evocando o "paradoxo da existência do indivíduo" e ainda Marx "em nome do processo produtivo da vida". A questão que permanece, em relação a Hegel, é que não se ultrapasse o limite que é constituído pelo Saber Absoluto. Zizec interroga-se sobre a origem deste conceito, e que causa horror, do Saber Absoluto. Donde vem? O que se esconde por trás de uma ideia fantasmagórica como esta e da sua presença "fascinante" ? (p.13) Um buraco, um vazio, que só pode ser preenchido se lermos Hegel com Lacan, é a tese defendida por Zizec, ou seja, sobre o fundo da problemática lacaniana da ausência no Outro, o vazio traumático à volta do qual se articula o processo significante. Podemos, por limitação de espaço, saltar para as três étapas do Simbólico em Lacan, a partir do seu hegelianismo : a primeira é a da função e do campo da palavra e da linguagem na psicanálise, que coloca o acento sobre a dimensão intersubjectiva da palavra: a palavra como meio do reconhecimento intersubjectivo do desejo. O que aí predomina são os temas da simbolisação como historiarização, realização simbólica: os sintomas, os traumatismos são "brancas", são espaços vazios, não historiados, do universo simbólico do sujeito; a análise realiza no simbólico esses traços traumáticos, inclui-os no universo simbólico conferindo-lhes a-posteriori, retroactivamente um significado. No fundo estamos ainda numa concepção fenomenológica da linguagem, tendo a análise como objectivo produzir o reconhecimento do desejo numa palavra  "total", de a integrar no universo da significação, identificando a ordem da palavra à da significação. Citando Lacan: " Toda a experiência analítica é uma experiência de significação" (Lacan, 1978, p.374). Será preciso recordar agora que Hegel estudou nos seminários de Hoelderlin e Schelling ambos tido influencia nos seus conceitos idealistas, o que nos levaria até Platão, o Pai das Ideias fundadoras do Bem, do Belo e do Verdadeiro. Uma herança que foi chegando aos nossos dias, incluindo como Zizec refere a utopia do marxismo (tal como em Platão também já tínhamos tido  A República e a sua ideia da sociedade perfeita, gerida por sábios filósofos (com a expulsão dos poetas, perturbadores das almas). Mas retomando Lacan:  eis que da filosofia, pela análise se busca agora o sentido, aquele que se oculta e reprime nos sinais de que falara Hoelderlin, nos seus Hinos. Ser um sinal que perdeu o sentido...E chegou o momento de falar de Nuno Félix, que conhece bem este filósofo, Lacan, e para quem a citação de que toda a análise é uma experiência de significação nos remete também para o célebre verso do poeta alemão: somos um sinal que perdeu o sentido. Filósofos, que constroem os seus sistemas buscando uma racionalidade que se torne explícita e clara, são diferenciados em relação aos poetas que. embora filosofando não é da racionalidade que se ocupam, mas sim de todas as outras formas possíveis, as irracionais também e acima de tudo. Porque há uma razão oculta no irracional, a circunstância, o acontecimento, a vivência (  o desejo ou a repulsa reprimidos). O interessante em Lacan é o modo como ele transita para os domínios da palavra, da linguagem, no dizer de não-sistemas que se aproximam mais da poesia do que da filosofia, manipulam símbolos como se fossem coisas palpáveis no mundo impalpável do que já foi e não é recuperável, engana-se quem julga que o tempo devolve ao outro tempo, do imaginário, o que nele se dissolveu. O que lhe devolve é já outra coisa, que a análise digeriu.

Podemos não ter herdeiros, mas temos antepassados. Nesta leitura que o estudo de Nuno Félix desencadeou há um Freud, fundador e que a todos guiou nos seus vários caminhos, mas há, como em Lacan, as árvores do pensamento dos caminhos de floresta de um Heidegger, por sua vez abrindo a questão do ser e do tempo - tudo o que é, é no tempo - e adiante a questão da linguagem, o sinal e o sentido, deriva que fez os linguistas de Paris dizer que Lacan tinha dado cabo dos estudos de Linguística na Universidade, ao formatar conceitos oriundos da filosofia e da psicanálise, traduzidos do alemão e por aí inovando e confundindo o que era normalmente ensinado.

Félix teve todos estes antepassados e foi ele próprio inovador: bebeu no surrealismo metáforas e símbolos arcaicos, mas a que deu novo sopro e nova actualidade. Toda a imagem, todo o objecto, e nas várias escolas também as da abjeccção, com em Bataille, se forem úteis serão utilizadas. A liberdade é total, Freud pode lá estar mas sem autoritarismo. Termino como ele faz, citando Wittgenstein: calar aquilo de que não se pode (por não conseguir) falar.

Mas deixo Valère Novarina, pintor e poeta, que afirma o contrário: ce dont on ne peut parler c'est cela qu'il faut dire!

Não tem fim o caminho...



   

Thursday, September 01, 2022

Nuno Félix da Costa, breve manual para ser humano, Cepe editora, 2022

Por coincidência, Rosário Pedreira publica sobre o seu corpo humano, e Nuno Félix da Costa um outro livro, em que também é do humano que se ocupa. O meu corpo humano, poemas de tristeza passada a ferro como ela diz. Alisar o sofrimento de que padece o corpo? Ou exorcizar, dizendo o que tem a dizer, e é sempre tão humana a sua voz, feita de canto e lágrimas, por vezes. Mas leio o Nuno Félix: prosa poética, ou poemas em prosa, conceptuais, em que a cultura é transversal à imagem poética, por vezes surpreendente, como já disse a propósito de outras obras. Um pensador que escreve poesia, ou que fala de como ela surge, ainda que de modo insólito (não esquecer que estamos perante um psiquiatra): "O corpo é uma noção acimentada num conjunto / O que o cérebro leva do corpo qualquer máquina de reanimar / supre"(p.9). Assim começa a nossa leitura.Com um texto em que se declara que se vive do pouco que a máquina dá, concluindo com ácida ironia que "confia na pátria e nas soluções mecânicas para a vida". Estão lançados os dados para uma aprendisagem (é um manual...) que se torna por vezes desconcertante, mas essa é precisamente aqui a intenção do poeta. Não facilita, obriga. O dia que começa será vagaroso, e nesse vagar ou desse vagar nascerá o brilho das estrela, e o resto do cosmos. Do corpo que esteve adormecido, sonhando, nascerão outros corpos, as órbitas dos astros. Faz parte do imaginário do humano o sobrehumano, para logo num poema seguinte recuperar uma fisiologia anatómica que conduzirá no fim à ideia, higiénica, de ir tomar banho. Álvaro de Campos não faria melhor. Mas também penso em Lautréamont, é difícil, ao ler, não evocar outras leituras: sem palavras para uma teoria da simplicidade, eis o título de um poema em que o mais é menos, e o menos é mais, ao gosto de Celan. Pois nada é simples, em Nuno Félix, tudo é complexo e obriga a revisitar o que se leu: "A visão da palavra antecede-a. É assim o fundo do mar onde a luz que cada uma emite encontra o alvo - sinos que mantêm silencioso o pensamento A mentira não existe entre os peixes do inconsciente" (p.16). A visão da palavra antecede-a: no primeiro verso já se revela o último, que é feito do silêncio dos peixes do inconsciente, nos sonhos. Fica no ar: o pensamento é mentiroso? Porque na oposição racional versus irracional, é esta última ideia a vencedora? Porque no inconsciente não há filtros ambíguos, a imagem é simples e directa e diz o que diz, sem mais? Como Freud via o mar - as ondas revoltosas, os perigos de naufrágio sem bóia de salvação, Nuno Félix em "conhece-te a ti mesmo" poema do impossível, reflecte também sobre o que vê no mar: "O mar limpa a necessidade de ordem, interrompe-a e afoga / a luz de uma obscura consciência num mim aquiescente / a personagem, uma massa de anjos habituados a mim" (p.18). Aqui poderia entrar uma nova imagem, uma nova palavra, o sublime, dos anjos, ou então a sublimação de um "ego" que se metaforizou num "mim" (a margem de diferença entre o Ich e o Selbst de um Jung, sobrevoando a massa de anjos descrita). A reflexão sobre o eu e o mim é talvez a pulsão mais funda deste livro no poeta que se sentiu impelido a escrever sobre o que sente e o que sabe que sente. Não é fácil, nem isso lhe interessa. Deixa fluir, para ficar mais livre: "liberto do lastro do eu tento ver sem mim...." ou adiante: "conheço como ninguém o que desconheço..."(p.19). Gostaria neste momento de utilizar a definição de Jung para Selbst, que ele distingue do conceito de Ich como sendo mais abrangente, englobando o todo da consciência (domínio do eu, do Ich) até à esfera do sub- e do inconsciente. Com os perigos de inflação de um eu que se funde, mas não se sublima de facto. Já disse atrás que este é um livro desconcertante, que alia ciência e conhecimento da psique à uma exposição do corpo - é o corpo que nos faz humanos, com as particularidades que Nuno Félix não hesita em referir, é no corpo e pelo corpo que na verdade sentimos, a dôr ou as alegrias, ainda que passageiras, da vida que é dada, e é por aí que o autor nos leva, quando fala de manual para ser humano. Alguns leitores terão dificuldade em segui-lo, outros gostarão do pensamento que desafia, nas suas contradições. Não vale a pena querer unificar o que não é uno, pois sabemos que não há unidade, há oposições, contraposições, associações livres e únicas, como muito bem expressaram os surrealistas, e das múltiplas imagens e símbolos que ocorrem, nos sonhos mais fundos ou nos meio-acordados (a rêverie). De todas estas manifestações que se dão na escrita, como na arte em geral - Nuno Félix não exclui a Fotografia como ARTE ÚLTIMA, numa das suas obras mais belas de fotografias encenadas - a discussão (não chega a ser discussão mas reflexão cuidada) entre o eu e o mim não fica fechada, continua em aberto, entre um que pensa o que é, e se o que é o define, o completa, ou inquieta. Inquieta, por isso, embora proclame que "conhece como ninguém o que desconhece" é imparável a sua necessidade de fazer ou refazer com outro olhar o que foi feito. Nunca se vê da mesma maneira o que já foi visto. Basta a deslocação subtil do tempo, do espaço, isto é da circunstância própria que os define. Marie-Louise von Franz, colaboradora privilegiada de Jung, ela mesma grande erudita, explica num das suas obras, Zahl und Zeit como se aproximam a Psicologia das profundidades e a Física (ed. Surkamp,1980) numa obra que ao tempo foi pioneira, mas que hoje em dia, como se vê pelas obras de Félix se tornou objecto normal de estudo e reflexão. Aproveito, porque a ela, colega e amiga devo a gentileza, para agradecer a Anabela Mendes a oferta deste livro, que ela me deu em 1984, estávamos ambas interessadas nestes domínios que os freudianos caseiros ainda abominavam. O cap. 1 afirma desde logo que é o número que ordena a psique e a matéria. Podemos regressar à narrativa bíblica, para entender melhor como a fundação primordial começou com uma criação ordenada em números, os seis primeiros e finalmente o 7º que deveria ser de um eterno descanso, que nunca chegou a ser... Psique e Matéria dificilmente se entredefinem, a não ser, como Nuno explica, se se traçar, com cuidado, com tempo (um outro conceito muito caro a Marie-Louise) um caminho que vá abrindo esferas num todo que permanece fechado, até que se lhe dê atenção e cuidado. Como a rosa de Rilke, tão múltipla e tão rara cujo centro é o centro do cosmos por onde vagueia ainda em ignorância o nosso pequeno planeta, como Dante nos círculos do Inferno. Contudo é este planeta uma das partes do corpo do universo, e a humanidade a sua materialização. Jung refere que sem o Homem, ser que Deus ele mesmo criou, não teria tido consciência de si mesmo e é assim que Jung lê os tormento de Job: a dôr injusta faz parte desta aposta na vida, nascida no Éden e envenenada à partida. Deus - Jeová - precisou de se materializar em corpo humano, para adquirir consciência de si mesmo. E assim aconteceu com Jesus, nascido de uma virgem inocente, e se transformou em Cristo, alter ego da Trindade da religião ocidental. Com a Ascenção de Maria o trio divino se tornará em todo mágico, com o Eterno Feminino conduzindo, como em Goethe, o Espírito Santo da futura Utopia num sonho que se viveu como real, durante séculos. Resumindo, sem corpo não há consciência, nem da divindade criadora nem da humanidade que foi por ela criada. Na obra de Marie-Louise von Franz, ainda no capítulo 1, iremos encontrar as suas reflexões sobre o que são as descobertas de Jung sobre as matérias da consciência e do inconsciente, em Freud ainda aceite como individual, em Jung já acumulando as investigações sobre o que o levariam ao tão discutido, na altura entre ambos, de inconsciente colectivo, acumulação universal de símbolos e mitos que ele estudara em muitas e variadas memórias de antigas civilizações.
Marie-Louise traz à nossa leitura uma comparação que faz todo o sentido para entender melhor esta obra de Nuno Félix de que nos ocupamos: o conceito de onda e de partícula que o estudo da física quântica, praticamente no início ainda do século XX apresentou aos cientistas, para melhor entender o comportamento da matéria. E como nos é útil agora, para seguir a nossa leitura de uma obra ao mesmo tempo conceptual e poética, atravessada por imagens e símbolos que nascem do inconsciente e não de uma racionalidade expectável, esta nova aproximação ao entendimento do humano, que em si mesmo contém o espiritual e o material, no somatório de um eu e de um mim que ora são onda ora são partícula, do todo do ser, definido por Jung e pela sua discípula pelo número 4, nos capítulos em que analisam a simbólica dos quatro primeiros números. 
Termino, um post não pode ser exaustivo, com a citação do nº12 de Arte Última, publicado em 1998:
" A mente é o altar
entre o abismo da ordem 
e o caos da exactidão".