Tuesday, June 25, 2019

Os Tempos de Fernanda Lapa



Foi esta peça, Gertrude Stein e Acompanhante, de Win Wells, que me levou a pensar no trabalho, sempre exemplar, da encenação de Fernanda Lapa, que a entusiasmou, mas por outro a obrigou a um imenso trabalho de depuração e até de algumas correcções de erros de tradução, tudo por amor ao teatro.
Mas Fernanda dedica todo o tempo e atenção que um texto, seja moderno ou clássico, pede e exige. Esse é o seu primeiro tempo: o do trabalho, que com sorte ficará escrito e publicado, da sua dramaturgia, cuidada, inteligente, e por isso tão fiel. É sem dúvida um trabalho de paixão, que envolve também os seus colaboradores: sempre os melhores, que se disponham a partilhar com ela a sua inspiração. Neste primeiro tempo a inspiração, a ideia que surge de momento e resolve alguma dificuldade, é essencial. Cito Agustina Bessa-Luís: "de muito empenho carece a arte..."e é assim mesmo, na arte que se respeita, e no criador que, como estou a ler neste momento, no meu fiel Yi King, que abri ao acaso do dia, como faço às vezes:nº 38, K'ouei /A oposição
A Imagem 
Em cima o fogo, em baixo o lago: imagem da OPOSIÇÃO. 
Assim, em toda e qualquer companhia, o homem nobre conserva a sua individualidade.
O homem culto não se deixará tornar igual aos homens cuja natureza difere da sua, por relações e interesses comuns que possa ter com eles, mas conservará sempre em toda a comunidade a sua individualidade própria.

É precisamente isto que verificamos nos tempos de Fernanda Lapa e da sua coerência no trabalho das artes cénicas ao longo já de tantos anos. De tudo o que tenho visto, dos clássicos aos modernos, nunca perdeu a sua individualidade, a sua marca própria, e mais uma vez nesta encenação claramente manifestada.
A bagagem cultural de Fernanda é enorme, e absorvida por muito conhecimento, mundo, convívio (quem pense que se pode fazer teatro, encenando, ou representando, ou criando espaços cénicos adequados e igualmente inspirados sem cultura nem curiosidade de espécie nenhuma, está bem enganado) - e com ela também a sua equipa tem muito, para não dizer tudo, a aprender. E por ser ela quem é, aprende-se com gosto. Sai-se da sua companhia mais "ilustrado", como se diria nos tempos das Luzes. Aqui precisamos destas luzes, da Razão e da Emoção, que ela contém, mas deixa ainda assim, delicadamente transparecer.
Não me refiro à encenação em que escolhe o delírio orgíaco das Bacantes, de Eurípides, e tanto sucesso teve em 1995. Para a contenção da violência antes evoco as Euménides, de Ésquilo, em que toda a fúria teve de ser contida. Numa das peças a explosão que castiga o orgulho cego,  noutra a mutilação que destrói a exigência de uma vingança justa.
Dirão, Fernanda mantém a sua individualidade, a sua leitura própria destes textos, imortais pela sua carga simbólica e arcaica. É certo, pois não há na sua encenação o que seria tão fácil, de ornamento, sentimentalismo, lição moralista a dar. Fernanda não dá lições, deixa que uma narrativa límpida fale por si e para cada um, quem sabe se de forma diferente.
E como se verifica então nesta peça de duas americanas amigas e amantes, de que se ocupou Wells, numa vida de boémia livre em Paris, a marca própria da individualidade criadora de Fernanda? 
Num primeiro tempo o texto, como já disse, e já em conjunto com a sua equipa o trabalho de enquadramento das personagens e da época - a Paris da boémia dos pintores e poetas vanguardistas,  desafiando os costumes da sociedade e do mundo (um mundo em guerra).
O texto de Wells não estava à altura da depuração desejada. Ornamentos, indicações, floreados, longe do que a encenadora desejaria, e não permitiria que destruísse o seu estilo. Foram meses. Há encenações que são narrativas tão próximas que mais vale ler a biografia em voz alta do que ir ao teatro ver a peça.
Ora aqui entra a minha segunda consideração sobra os Tempos de Fernanda. O texto base é matéria de memória histórica, ficará em arquivo, poderá ser lido e retomado em qualquer momento.
Mas no palco de um teatro, sendo o teatro representado a mais efémera das artes, vive-se ali o momento, é essa a sua eternidade, o tempo é outro. E outras terão de ser as escolhas. Fernanda, nas suas encenações, sublinha a efemeridade, sabemos ao sair que nada mais se repetirá, embora a peça continue o seu tempo em cena, como está agendado. Não haverá dias iguais. Por isso é tão aliciante poder ir uma e outra vez: de cada vez algo de diferente acontecerá, para nosso benefício.
Aquilo que podemos chamar de tempo do palco - sabendo que o palco é a vida - tem de ser apresentado e vivido de modo mais intenso, depurado, subtil. O palco é a vida, mas sublimada numa linguagem outra, numa relação despida, nua como um poema, ainda que de paixão feita. A energia da paixão sente-se, paira no ar, contamina as emoções, de actores e público (é verdade, não deixa de haver catarse, embora haja também distância e de novo podemos referir a individualidade tão especial desta encenadora, que funde Aristóteles e Brecht, num gesto único, como só ela sabe fazer).
Este é o segundo tempo, o mais importante, sem dúvida, mas que não pode dispensar o primeiro, do trabalho muito reflectido sempre e muito intenso.
Do texto ao palco vai por vezes toda uma vida...vivida assim com entrega.
Quem não se entrega  não vive. Adormece e apodrece, mesmo que não dê por isso. Cadáver adiado que procria, como disse Pessoa.
É lição para jovens e velhos prematuros a lição de Fernanda. Num país que precisa muito da máxima energia.










Tuesday, June 18, 2019

Eduardo Pitta, UM RAPAZ A ARDER, MEMÓRIAS


Comecei a ler Eduardo Pitta na revista Sábado, e nos seus comentários sobre variados temas, no facebook. Será triste, que eu tenha lido assim, mas é a verdade pura. Por outro lado foi assim que me seduziu uma prosa inteligente, informada e fundamentada, quando discursava sobre política, sobre cultura, sobre qualquer acontecimento que estivesse em discussão nos faceianos (palavra feia, mas já que aconteceu, deixo ficar). 
Já tenho dito que é nos meus blogs que gosto de falar do que leio e do que gosto. Abri em 2004-5, um pouco para respirar fora da Universidade, e do amesquinhamento gradual em que foi caindo, se calhar até hoje. A minha área tinha sido desde sempre a Literatura Alemã, e na senda de George Steiner e outros a Literatura Comparada. Da Simbologia Alquímica só podia falar em voz baixa: era zona de linhas vermelhas...criei um Gabinete de Estudos e segui em frente, como sempre faço. Surge então a obra inédita, da Arca de Fernando Pessoa. Escrevi, divulguei, publiquei e quando achei que já tinha oferecido, a quem lesse, suficientes caminhos para prosseguir a sua via, a mais secreta, desconhecida de muitos, do esoterismo, parei. Esgotaram-se os livros, nenhum editor reeditou.
Achei então que um blog era um espaço universal de comunicação, e assim tem sido até agora. Sou livre, não faço aqui a chamada crítica literária (entre nós tão fechada na sua bolha, como no tempo  de Gaspar Simões...) escrevo sobre o que me parece que merece ser lido e divulgado, sem impôr, apenas expondo. E verifico que tenho ganho, com o passar dos anos, não dinheiro, porque o acesso é livre, mas leitores interessados no que por aqui vai sendo escrito: uma leitura feita e uma linha de pensamento que apresento de forma honesta. É um grande prazer. Agora tenho em mãos as Memórias de Eduardo Pitta, escritas de 1975 a 2001,  que ele gentilmente me ofereceu.
Escolheu para epígrafes Marguerite Yourcenar e Jorge de Sena. E para que saibamos que foi feito um relato que pretende ser completo, agradece a todos os que o ajudaram a recordar um ou outro episódio, que ele deseja completo na verdade anunciada. 
Temos de facto uma narrativa muito detalhada de tudo o que foi acontecendo no Portugal da Revolução de Abril, de melhor e de pior, e pelo meio parte da história de uma descolonização de que Eduardo Pitta não esconde o que houve de perseguição, violência e terror. Quem conseguiu prever o que lá vinha, fugiu, para Portugal, para o Brasil, ou mais perto e a tempo para a África do Sul. 
Eduardo nasceu em Moçambique, em 1949, mas está sempre listado como escritor português e embora eu acredite que não esqueça a sua infância e juventude num país onde, como ele diz nestas memórias, "as pessoas tinham um à-vontade" que não encontrou em Lisboa. Reparei nesse sentimento de liberdade em vários casos, de amigos e pessoas de família que estiveram, alguns em Moçambique, outros em Angola, e trouxeram de longe uma saudade especial, uma respiração aberta e feliz, até ao momento da Revolução que os trouxe de volta à Pátria. A quem ainda hoje o possa negar, Eduardo confirma: houve execuções sumárias, houve crianças brancas penduradas em ganchos de talho, houve terror que violentou brancos e negros, democratas e tiranos. Felizmente é passado, mas um bom memorialista, como um bom investigador e jornalista não mente sobre o passado.
Muito do que se lê é sobre os momentos das travessias ( e quase me apetece dizer, porque o país é o que é...das travessuras políticas) que vão do PREC aos falsos endeusamentos de soluções impossíveis, e à estabilização que Mário Soares finalmente trazia. Aristocrata, orgulhoso de o ser, Eduardo não renega amizades, sejam de esquerda ou de direita, marcas que ainda hoje empurram, sem que se tenha culpa de amar a liberdade e a independência assumida, para um lado ou para outro. Pode dizer de si: este sou eu, agora como sou e já antes, como fui.
A sua escrita é empolgante, ou eu não teria parado só uma vez para descansar os olhos, tendo chegado ao fim numa leitura voraz. Porque vivi muito do que  ele conta, se não foi na rua, com Mário Soares (e já quando estudante, em 1962, nas greves, ou a ouvir a Maria Barroso a dizer poesia no Técnico) foi em casa da Natália Correia, foi com a Sophia diante da prisão de Caxias, foi na televisão, sempre ligada, ou a ler nos jornais o que me dava mais informação. Ele ia fazendo o mesmo. E quando as memórias se desviam da política vivida para o meio literário que o acolhe -primeiro com distância, depois com todo o entusiasmo, dá-nos a listagem mais do que completa do quem era quem, naqueles anos, ou ainda não era mas estava quase a ser e continuou, fornecendo abundantes momentos que a sua verve especial recupera ou desconstrói, em texto saboroso. 
Sendo eu tão mais antiga, escuso de dizer que conheci, de perto ou de longe todo o meio mundo cultural que ele cita. E é isso que para mim torna tão viva e interessante esta leitura. Recomendo, aos que são da minha geração e aos mais novos, porque a verdade é que a memória dos mais velhos nos fornece tanta informação que falta, e sem ela pouco somos, ou menos ainda. Ele esteve, como eu, na primeira sede da APE (Associação Portuguesa de Escritores), no nº13 da Rua do Loreto. Não coincidimos porque ele é tão mais novo. Mas ali, como no Centro Nacional de Cultura da Helena Vaz da Silva, se vivia liberdade (ou desejo dela) e cultura moderna em aberta discussão.
Leio este livro de memórias como li Eça e Ramalho, nas suas cartas. A ironia, a qualidade da prosa, a observação pertinente dos vários mundos que entre nós se expunham, o ganho ou perda de qualidade de vida, idas para o Brasil, para sobreviver a maus bocados) e regressos saudosos de novo às tertúlias dos cafés, às amizades fiéis, à entrega voraz da escrita, agora maior que a vida - enfim, tudo neste livro me atrai e me levou a continuar páginas fora, páginas dentro, parando apenas numa ou noutra evocação onde não estando, também estou, porque vivi isso mesmo que ali é referido. E confirmo: o que ele diz está dito e fica dito, para memória presente e futura. No meio de tanta política e tanta politiquice ainda hoje, sobram-nos os poetas, os pintores, os criadores em geral com que ele se cruzou  ou travou amizade, a gente simples e boa, o convívio que existe entre quem ama o mesmo e nem para dizer o que sente precisa de palavras.
 Interessante seria, acompanhando os capítulos em que viagens e estadias nos são descritas também com grande pormenor, desenhar o roteiro dos gostos e preferências. Requintados, ou muito inovadores, em cada momento. Por locais que surgem, como o célebre Frágil do Bairro Alto, ou outros que foram perdendo a sua graça ou deixando de existir. Em todos uma certeza, a de que eram espaços livres, sem repressão nem olhares de ínvia censura. Talvez, de vez em quando, umas pontinhas de inveja...
Espera-se que Eduardo continue a escrever, que não perca a energia e muito menos ainda esta memória que eu quase diria gulosa, de ver, saber e contar.