Tuesday, May 29, 2012

Le Coq d'Or

De Nikolai Rimsky-Korsakov, Le Coq d'Or, a obra-prima inspirada numa lenda popular.
A produção recente de um grande encenador como é Kent Nagano, devolve-nos a atmosfera de magia e maravilhamento de um imaginário orientalizante, com uma abundância e riqueza de detalhes de tal modo sensual que contagia todos: intérpretes e público assistente.
Esta é a Ária de uma jovem Princesa, na realidade emanada de uma força maléfica, no acto de seduzir um Rei que depois será levado a um triste fim.
O libretto desta ópera, da autoria de Vladimir Belsky, é inspirado no poema de Alexander Pushkin, Conto do Galo de Ouro, por sua vez lido nos Tales of the Alhambra de Washington Irving.
A ópera data de 1907, e teve a estreia em Moscovo, em 1909, depois da morte do compositor.
Fora da Rússia foi representada em França e em francês, com o título Le Coq d'Or.
Nesta época de 1907, quando o compositor julgara já ter chegado ao fim e ao melhor dos seus trabalhos, surge-lhe a ideia de caricaturar o Império e o Imperador, que se envolvera numa guerra fútil contra o Japão. Já outro texto de Pushkin, Tsar Saltan, o tinha inspirado, com uma mesma magia feita das trevas da alma, que iremos descobrir em O Galo de Ouro.
A atmosfera é concebida a partir de elementos da tradição popular que adensam o orientalismo patente nas mais belas Árias.
É preciso recordar que já em 1905 a Rússia tinha tido os seus primeiros levantamentos populares, e que a guerra contra o Japão, de que a Rússia saiu derrotada, permitia a ironia severa do olhar dos seus artistas e não apenas do povo martirizado.
Assim, o Rei Dodon, ao avançar para guerras preventivas, como as reais, de Nicolau II, a que se assistira, acabará mal, num fim mais grotesco do que trágico.
Começada em 1906, terminada em 1907, a ópera evoca os massacres de 1905, que não terão perdão. Foi logo proibida na altura.
A Metropolitan Opera de Nova Yorque, conhecida como The Met, apresentou o Le Coq d'Or regularmente em francês, durante a segunda guerra mundial. Existem ainda gravações em inglês e em russo, todas acessíveis hoje em dia, em dvd.
O interessante é como se pode recriar um Conto maravilhoso, actualizando o seu sentido profundo, universal: quando um homem (um Rei) esquece o seu dever de respeito para com os outros, as forças do mal tomam conta da sua alma, que merecerá castigo e talvez pior: anulação.

Saturday, May 19, 2012

Ganymed


Brilhas à minha volta
na radiosa manhã, 
Primavera, minha amada!
Ardem no meu peito
as mil bençãos de amor
do teu calor eterno 
sentimento sagrado,
 beleza infinita!

Pudesse eu prender-te
nos meus braços!

Ah, no teu peito
repouso, com langor,
e as tuas flores, e as relvas,
penetram-me o coração.
Refrescas a sede que arde
no meu peito, 
amada brisa  matinal!
Oiço o canto de amor  
do rouxinol 
no vale envoado.

Já vou, já vou! 
Mas para onde? para onde?

Para o Alto! Subir é a palavra!
As nuvens debruçam-se,
as nuvens inclinam-se 
para o amor que as chama.
A mim! A mim!
subo
para o vosso colo!
Abraçando abraçado!
Subindo para o teu peito,
Pai de Eterno amor !


( J.W.Goethe, trad. Yvette Centeno)


Ganymedes, no coração do mito:
filho do Rei Tros, que deu o nome a Troia, era o jovem mais belo que se conhecia e por isso foi escolhido pelos deuses para servir Zeus.
Consta que Zeus desejava algo mais, desejava-o para seu amante. Assim, disfarçando-se de águia, arrebatou o jovem das planícies troianas.
Hermes, para consolar Tros do seu desgosto e da sua perda, oferece ao desditoso pai uma taça de ouro, fundida por Hephaestus ( o esposo de Vénus), mais dois belos cavalos,assegurando-lhe que Ganymedes era agora um ser imortal, poupado às misérias da velhice, e que sorridente, de taça de ouro na mão, serviria para sempre o néctar divino ao pai dos céus (Zeus).
Todo o mito contém uma lição: neste, o que inspira Goethe, poeta de grandeza universal, é a lição de que a paixão dos excessos do Belo, para ser eterna, não pode durar muito, uma  contradição apenas aparente, o poeta com este poema liberta-se da sua ânsia juvenil, abrindo espaço para outras fases da sua criação.
E ainda outra: que o poeta (o criador) que faz unicamente do Belo a sua paixão corre perigo, pois o muito amor dos deuses que amam o Belo através dele (a sua obra) mata em vez de redimir.


Bibliografia:
Robert Graves,(The Greek Myths, vol. I, II)








Monday, May 07, 2012

Mais Poetas da Catalunha...


JOAN PERUCHO ( 1920- 2003): OS LUGARES DA POESIA

Nascido em Barcelona, em 1920, Joan Perucho é outro distinto criador pertencente à  geração que deu à Catalunha o nome de Pátria das Artes, com um escol de poetas, pintores, ficcionistas, críticos de arte de renome mundial.
Perucho era Juiz, de profissão, mas foi sempre cultor da Arte e distinguido com vários prémios ao longo da sua vida: em 1995 obteve o Prémio Nacional de Literatura da Generalitat da Catalunha, e em 2002 o prestigiado Prémio Nacional das Letras Espanholas.
Dele observa L.Alberto de Cuenca que “escrevia com uma vertigem expressiva” apoiada em sólida erudição, conferindo à sua escrita uma originalidade marcante no conjunto das literaturas da Península.
É extensa a sua bibliografia, com obras de poesia publicadas desde 1947 e de ficção  desde 1953, até 2001.
Aqui deixarei apenas, como já fiz com os outros autores escolhidos, a versão livre do conjunto que foi apresentado em 1996 na Fundação Gulbenkian.
Iremos encontrar tanto a emoção da memória e da cultura (nos poemas dedicados a Vicente Aleixandre e Dámaso Alonso) como a solidariedade com os que sofreram as atrocidades da Guerra Civil de Espanha (como por exemplo no poema Os Soldados ou em Elegia À Terra E Aos Mortos de Gandesa, pequena localidade que foi palco da Batalha do Ebro). 
Reencontro em Perucho, como nos outros da sua geração, um amor à cultura que em Paris, sobretudo, nos seus grandes poetas, ( Baudelaire, mas poderia citar tantos) no rio Sena de águas transformadoras vai nos anos da Guerra e das grandes Ilusões (penso em René Clair, penso em Prévert, o amigo de Picasso) manter viva e ardente a chama da criação. 
Poderá ser mais livre e radical ou mais factual e descritiva, mas será sempre testemunho do Homem que respeitou o sofrimento e procurou a mudança.

AS FIGURAS DE CERA

Reinvindicam um  amor eterno e imarcescível.
Paradas no tempo descem às paragens
que causam horror aos humanos. Mas ficam sempre
com os seus sorrisos extáticos, com desvelo seguro
e não com esta vida impura que envelhece e deforma.
“ O mort, vieux capitaine, il est temps, levons l’ancre”.

Mas estes lábios femininos que suspiram imóveis
não podem dizer todo o horror de Carlota Corday
nem o da Belle Heaulmière que amou o poeta.
Um grito, o pestanejar, o suave gesto daquela mão
tudo agora permanence imutável na sua aparência mais profunda
 O crime é na verdade sangrento; o amor esta cera amarelecida.



OS SOLDADOS

Avançam lentamente pelo caminho enlameado
mas agora já não pensam na mulher nem nos filhos
nem na casa que deixaram para trás, abandonada.
Macilentos
avançam e cantam hinos de violência sob o sol
duma terra áspera e enegrecida. A morte, contudo, 
empurra-os para a frente 
nas suas longas fileiras de tristes destinos, sombras
do que foram outrora. Jamais voltarão a encontrar
a paz daquelas horas que viveram, longínquas
como o écran branco do cinema, como na sede
daquele domingo em que ofereceram o seu tímido amor.


O PAÍS DAS MARAVILHAS

A uma hora de caminho da montanha sagrada
quando os dentes riem sozinhos de forma glacial
e as palmas das mãos voam pelo ar
desafia-se o que é imprevisível
o lamento dos violinos
a íntima tragédia.

Não há escola como a da vida.
Mas há o restaurante económico,
aquele das palavras cozinhadas, recozinhadas,
e os beijos na face com pública virtude.
Amanhã, Senhora minha, partiremos em viagem.
Não sei se jamais nos voltaremos a encontrar.


ELEGIA À TERRA E AOS MORTOS DE GANDESA

Triste flôr de Dezembro
no vento enraizada
nutrida pelo sangue de tantos mortos que nesta terra
foram crescer
em mato e em arbustos;
que na casa paterna
e nss chuvas de Inverno
foram hóspedes alegres
ares cinzentos, miúdas flores do bosque
que, com o aroma do tempo,
perderam os júbilos agrestes da Primavera
tristes alegrias que foram outrora graciosamente concedidas.

Seca e miserável terra. Avaramente apostada em
sobreviver ao pó
daquelas torrentes desoladas
e à infinita melancolia do camponês que chora
sob o grito do abutre.
Dura terra que amo na sua agonia
dura agonia minha
dentro do peito guardada.

Não, não há semente que possa fertilizar a rocha.
Alimentada pelo sangue destes mortos que floriram
em ásperos tomilhos
nada te acompanha a não ser o silêncio,
a espera abandonada,
a imensidade augusta e muda do firmamento.

A BALADA DO SENA

Um rosto difuso passeia sob as pontes
espreita quilhas, o cinzento da madrugada,
vidas entrelaçadas, chuvosas raízes,
mil desejos que se perdem como luzes na água espessa.

São Luís reclinado na Sainte Chapelle.
Os anos passam a voar.
Uma senhora estrangeira penteia-se na parede
e uma rosa floresce no olho esquerdo do grácil unicórnio.

Voam os estandartes. Em Saint-Julien-le-Pauvre
dizem Missa perpétua pelos afogados nocturnos.
Sinto como sobe, agora, a maré.
Como sobe a maré.
E os lábios de Paris.

Algo de fosforecente passa sob a água.
E há um restaurante chinês na rua Grégoire de Tours.
Gertrud Stein morreu faz agora sete anos
com uma doce melancolia perfumada.
Au revoir, mes amours.

Quando o movimento devora este silêncio
uma voz declama, boulevard Saint-Germain,
os versos de uma balada misteriosa e obscura.
Mas sobe-me pelos pés a relva, o mato, 
e também o sangue do meu país.

Debruço-me a olhar o Sena.
Os pássaros de Abril fugiram tristemente.
Penso na minha vida,
alguns dias alegres e distantes.
Outros olhos contemplarão o Sena, penso.
A terra, nos meus olhos, florirá alegremente.