Saturday, May 22, 2021

Paulo da Costa Domingos, urbe sub rosa, ed. frenesi, 2021

 Paulo da Costa Domingos é um autor já de uma obra vasta, lida, conceituada, e reservada aos "nichos" (palavra que li recentemente aplicada a quem não escreve para tudo e todos) de quem aprecia literatura de maior inovação e de desafio ou de revolta, como é o seu caso. Os seus livros circulam pela mão de quem lê, e não de quem fala, sem ter lido. É uma grande qualidade.

Leio, e quando penso no que neles vai dito, hesito muitas vezes, pois a sua escrita tem de ser abordada com pinças, com delicadeza, e uma atenção especial ao que por vezes esconde, mas está lá contida: uma enorme cultura, atravessada por uma anárquica originalidade e quotidiana provocação, uma liberdade que oscila entre o surrealismo e a revolta assumida contra os ismos que mais prendem do que libertam. Ele não se quer classificado, ele quer-se como é, em cada momento (d)escrito.

Se fosse francês, estaria no grupo dos OULIPO: Imaginação criadora, livre e libertadora. Anti-sistema.

Mas irá falar de que rosas, neste seu novo livro, em tempos de pandemia e de guerras eternas de eternos inimigos? Porque não se pode fugir ao que se vê, se lê, se ouve no estrondoso rebentar das bombas pela calada da noite. Os gritos de desespero de quem nada tinha e nada terá mais ainda.

Procuro rosas: as do culto de Isis, no Burro de Ouro de Apuleio, as de Rilke, no despedir-se da vida que depressa acontece, a grande rosa do mundo da Divina Comédia de Dante, ou a secreta rosa dos alquimistas - 

Dat Rosa Mel Apibus, gravura que ilustra uma obra de Robert Fludd, Summum Bonum, de 1629: a rosa dá o mel às abelhas. O caminho da sabedoria é difícil e lento. O do poeta não o é menos. Paulo cita Rilke: "porque existe algures uma antiga hostilidade / entre a vida quotidiana e a grande obra". Mas neste livro, tal como noutros, anteriores, Paulo deixa-se atravessar pela vida quotidiana, não teme essa narrativa tão alheia a tantos outros, e mesmo assim, ou apesar disso mesmo, constrói a sua obra, que é grande por ser tão universal e genuína. A condição humana está representada como um absoluto necessário em muitos dos poemas. E a ela se sobrepõe um absoluto maior, o da escrita, de que não se desprende nunca, pois isso seria morrer mais cedo.

Que obra é esta que se pretende deixar em herança? A da sublimação alquímica? A da continuidade universal em leitores de permanência?

Paulo sabe que é da escrita que fala. Da vida como escrita, e assim a escreve e a vive. Por vezes doente, mas nunca dolente, nunca adormecida. Pulsa nele a observação impiedosa dos destinos, o seu e o do mundo, destinos que nunca foram escolhidos, mas impostos, por vezes duramente. Rosas de sangue negro, como as de Paul Celan, que ele também leu, e vieram de longe para um enxerto, se possível, com as rosas de Herberto Helder, corpo e sangue de desejo incontido. Rosas que escorrem pelas páginas que vamos lendo, enquanto o poeta se debate, para no fim ceder e exclamar, num ciclo de tercetos (pp. 27-39):

Não consigo desligar-me da escrita.

a cepa torta, notação da música

do sangue. Não consigo, não consigo.

....

Lisboa, tão velha, e nós tão novos

aguardamos o sinal do arvoredo

para o abraço de uma Primavera

.....

Eu, homem breve, conheço a cidade

que me enterrará, não sem de antemão 

responder pelos seu inane crime.


O crime é o que se sabe: o da existência. Nua e crua, livre, e libertária mesmo.

Evoca Cesariny: "há uma estrada real do pensamento e da acção / por onde só passa um de cada vez".

De novo na secreta alquimia do verbo : la Voie Royale.

Um de cada vez. Desta vez é Paulo quem a atravessa. Vai ora crítico ora jubiloso, em direcção a um Nada, como no poema de Celan, Salmo, que vale a pena citar:

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,

ninguém animará pela palavra o nosso pó.

 Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.

Por amor de ti queremos

florir. Em direcção 

a ti.

Um Nada

fomos, somos, continuaremos 

a ser, florescendo:

a rosa do Nada, a

de Ninguém.

( in Sete Rosas Mais Tarde, trad. João Barrento).

Nascer, como nos diz Paulo da Costa Domingos, pode ser algo de violento, brutal:

...e as águas quentes escoaram-se na vulva:

e ficámos deixados no cimo de alta árvore

tudo mirando em redor: o tráfego aéreo: 


e só aqueles que puderam voar iam à terra,

e assim eu desci ainda molhado de placenta

no arrepio vivido de umas correntes de ar


vendo a arca lá no alto como copa arbórea:

e demorava o chão onde pousar todo o mal

que ainda trazia por depurar, soltando-me:


e o útero torna-se o maior desejo: o motor

para o retorno ao eterno país de Nunca,

iludido em arte, desiludido em escrita (p.43) 

Termino, lembrando apenas que o país real é este seu, da escrita, e que para ele nascerá todas as vezes que forem necessárias. Alguém que nos salve, antes que mundo se extinga. 







































 

Thursday, May 20, 2021

O desfazer dos mitos

 Bebem no leite da mãe

um ódio ancestral tão antigo

que faz do outro

o inimigo

sem direito a existir


 oferendas de Cain

a um deus indiferente

nem cordeiros imolados

nem do deserto

as serpentes


 aguarda este deus sentado

na nuvem da eternidade

que este tempo chegue ao fim

 não repetirá o erro

de criar mundos iguais

na água nem mais um peixe

nem na terra os animais

o Éden será despido

nem árvores

nem sementes


nem seres primordiais

 

 

Wednesday, May 05, 2021

Eduardo Pitta, DEVASTAÇÃO, 2021

Uma edição elegante, com ilustração na capa que anuncia que há sangue na narrativa, sangue com uma faca afiada pronta a dilacerar um corpo, uma alma, interromper um destino. São contos, arte em que Eduardo Pitta, já com vasta obra publicada, se tornou Mestre.

Neste conjunto, que é pequeno na escolha, abrem-se vidas grandes. Não grandiosas, perderiam a devastação sofrida, mas grandes na amplitude da escolha: memórias variadas, da infância a um tempo presente que as guardou, sem resguardar, ou mesmo directamente actuais, de modo coloquialmente descrito, nos termos que são os de hoje, (mudou tanto o modo de falar) podia estar-se à mesa do café, simplesmente contando factos da vida real que por um detalhe que pode parecer despiciendo devastam a vida de cada um dos intervenientes. Vidas que decorrem por vezes entre um Moçambique ainda colonial ou a caminho da Revolução e um Portugal post Revolução, a caminho de um progresso rápido e nem sempre bem sucedido. Não é optimista a visão oferecida nestes contos, é mesmo por vezes fria e muito realista.

Narrativa contida, rápida, como se houvesse uma obrigação de tempo e de espaço, ou compromisso de entrega, diria quase jornalística, Eduardo Pitta mesmo quando retoma memórias ou escolhe antes a ficção procurada,  confronta-nos com factos, datas, locais precisos e só então se permite a surpresa da conclusão abrupta do ponto final: no conto, e na vida narrada.

Li estes contos como se pudessem ser experiências de guião, para filme ou novela televisiva. Há personagens definidas, situações bem caracterizadas, que evoluem (não se arrastam, como em tantas que vemos nas produções nacionais) cenários reais onde o possível tem a verosimilhança pedida por Aristóteles, até que surge o desfecho, trágico e anunciado já nos pequenos detalhes que vão compondo o quadro. 

Também não falta, no exercício contido ( que pode ser ampliado, se a decisão fôr essa) para além do facto real, a carga emocional, em cada um dos contos e sua personagem condutora. Porque embora tudo seja anotado com um realismo que descreve e indica (daí o ser ou poder ser guião) a emoção do que é sentido e vivido está presente, e é  transmitida ao leitor, como devastação do ser: o ser profundo, o que se esconde e cala, ou o que leva  ao suicídio - e assim humaniza a condição descrita, a nossa, a condição humana a que nunca se escapa.

Termino com um pormenor: o gosto de Eduardo em descrever os menús que são servidos, o requinte que também ao leitor fará crescer água na boca, e de que já temos o hábito de ver no facebook...

São seis contos que entre a descrição por vezes crua se esconde um certo humor, Eduardo escritor lido e vivido é assim que deixa a sua marca: entre a mancha maldosa do sangue no vestido da debutante e a atracção fatal do suicídio do homem que não luta, não sabe lidar com o tempo presente e o abandono, e a à vida real prefere o suicídio.



Sunday, May 02, 2021

 

Velhice

 Tocaram à porta

era a Velhice

hesitei em abrir

 Foi quando me disse

não finjas

não fujas

não há onde

esconder

 Hesitei mais um pouco:

se eu não abrisse

ela entraria à mesma

à bruta

de sopetão

 Abri a porta

e a Velhice entrou

com um espelho

na mão

 (30 de Abril)