Friday, June 30, 2006

Para a Paula Oliveira compor


É uma cantiga de Amigo de João Zorro, trovador do tempo de D.Dinis :

En Lixboa, sobre lo mar,
Barcas novas mandei lavrar.
Ai mia senhor velida !

En Lixboa, sobre lo ler,
Barcas novas mandei fazer.
Ai mia senhor velida !

Barcas novas mandei lavrar,
E no mar as mandei deitar,
Ai mia senhor velida !

Barcas novas mandei fazer,
E no mar as mandei meter.
Ai mia senhor velida !


Bibliografia para a lírica de amigo e de amor em: Asensio, Luciana Stegagno Picchio, em Stephen Reckert e Helder Macedo.
Como diz uma pessoa amiga "corre um google ! ".
Por este e outros poemas podemos ver como o nosso fado, lisboeta e marítimo, tem uma raiz antiga, genuína e belíssima.
Podíamos fazer uma selecção temática, em torno do mar, em torno da cidade, ou dos rios e das fontes do campo, ou ainda uma selecção que fosse um "bestiário", à moda medieval, com os principais participantes da lírica de amigo e de amor :

Decid amigo sois flor
u obra morisca de esparto
o lavanco o ruiseñor
gayo o martin pescador
o mariposa o lagarto ?
O menestril o faraute
o tamborino o trompete
o tañedor de burlete
o cantador de cosaute ?

can mayor


Celebram os companheiros de CAN MAYOR dez anos de actividade da oficina de Tradução Literária. Felicito-os pela dedicação, e pelo bom gosto das escolhas feitas ao longo destes muitos anos.
Neste número podemos ler poesia de Keats, Browning, Laforgue, Claudel, W.Stevens, Apollinaire, C.Aiken, C.Riba, Éluard, B.Brecht, H.Crane, Seferis, E. Jabès, M.Luzi, Bigongiari, e Sophia de Mello Breyner. Desta o belo e actual poema do soldado morto. Rimbaud, Pessoa, Sophia, e a imagem recorrente do jovem "que foi julgado e perdido" como hoje continuam a ser.
Escolho deste belo conjunto a tradução de Bertolt Brecht, autor que li, que traduzi, podendo apreciar o mérito de Robayna e José Juan Batista neste caso:

A la muerte voluntaria de Walter Benjamin

Oí decir que levantaste la mano contra ti mismo
Anticipando al matarife.
Ocho anõs desterrado, mirando la ascensión del enemigo.
Empujado al final a una frontera intraspasable,
Pasaste, dicen, otra traspasable.

Los imperios se hunden. Delincuentes
Caminan al compás de hombres de estado. Los pueblos
Ya no se ven, cubiertos por las armas.

Negro, el futuro. Frágiles
Los poderes del bien. Veías todo eso
Al destruir tu carne atormentada.

( Bertolt Brecht )

Comovente, premonitório de outras mortes, como a de Paul Celan, outro nome grande da literatura do século XX que foi tempo de trevas para tantos e tantos criadores.

Sunday, June 25, 2006

Li Tai-bo


Der Ostberge Gedenkend I

So lang bin ich im Ostberg nicht gewesen.
Da bluehn die Rosen- zum wievielten Mal ?
Die weissen Wolken sind dahingeschwunden.
Auf wessen Haus faellt nun des Mondes Strahl ?

Sem comentários, para a melancolia de algum fim de tarde.

Saturday, June 24, 2006

O Estilo


A propósito de Estilo, OS PASSOS EM VOLTA, de 1964.
Sairá no Outono uma edição alemã, em tradução de Markus Sahr, que se tornou grande amigo de Portugal e dos seus autores.A casa editora é a ERATA, que hoje em dia se transformou também em galeria e livraria, tendo começado como pequena editora. Cresceu, e a literatura e a arte estão a crescer com ela.Este é um estilo bem alemão: bilden, construir, em vez de destruir.

Mas eu ia falar do Herberto Helder.
O primeiro dos passos em volta é o do ESTILO, a abrir o livro:
" Há, felizmente, o estilo.Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.Faço-me entender ? Não ? Bem, não aguentamos esta desordem estuporada da vida. Então, pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte...Percebe? De uma dessas abstracções tremendas que servem muito bem para tudo.
...
O mundo é assim, que quer? É necessário encontrar um estilo. Imprescindível."...

Até à pergunta, também ela fundamental e colocada com o mesmo humor subtil:
" Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da poesia? Tem a terrível alegria da poesia? Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.
...
Sabe ao menos do que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela ?
...
Mas, escute cá, a loucura, a maravilhosa e tenebrosa loucura...Enfim, não seria isso um pouco mais nobre, digamos mais conforme com o grande segredo da nossa humanidade?
Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu."

E quanto ao estilo de cada um, estamos conversados: os dispersos, os intensos, os espertos porque "cultos" ao modo mais adequado, e os eternos cavaleiros da palavra perdida, cujo estilo é feito da interrogação e nunca do sucesso do que é dado em vida.

Aprofundar ou Acumular

Alguns autores, como Julián Rios ou Valère Novarina, no desenvolvimento da minúcia, do detalhe, não aprofundam, acumulam expandindo, como se fosse essa a única intenção, as descrições que fazem.
Outros, como Lautréamont, para citar um clássico, Michaux ou Herberto Helder, contemporâneos, aprofundam o sentido do texto a cada palavra que lhe acrescentam.
Na prosa podíamos citar V.Woolf : o seu discurso é o da intensificação, ainda que pelo detalhe, tal como os poetas que referi acima. Continuando na literatura feminina não se pode esquecer o percurso pioneiro de uma Clarisse Lispector, que li ainda muito jovem, como li Agustina Bessa Luís, durante as "sestas" a que o calor de Tavira nos obrigava.Não havia o furor do bronzeado da praia, e assim se adquiria o hábito da leitura tranquila até se poder sair de novo, mais à noite.No caso de Portugal, já com vozes de contemporânea inovação, impõe-se falar de Maria Velho da Costa, e da obra-prima que CASAS PARDAS continuam a ser.
Os autores que acumulam, sendo a sua prosa ou poesia feita de substância elaborada, podem tornar-se mais cansativos pelo esforço que exigem de recordar por onde começaram.
Os que aprofundam despem-se de tudo o que não serve o impulso primeiro, a energia que os lançou no abismo do discurso.
É certo que com Wittgenstein aprendemos que só se deve falar do que se conhece bem, variante do propósito cartesiano que Boileau resumiu dizendo "ce que l'on conçoit bien s'ennonce clairement" (Arte Poética).
Já agora um pouco de Wittgenstein:
"Wovon man nicht sprechen kann darueber muss mann schweigen"(Tractatus...).
Ao que Novarina, desafiador ilustre respondeu, com toda a sua obra: "ce dont on ne peut parler c'est cela qu'il faut dire".
Pois bem, sempre houve e haverá muitas maneiras de dizer, o que se pode e o que não se pode, por qualquer razão extrínseca ou intrínsica ao criador.

E chegamos à questão do estilo, ineludível.Por mim fico com Herberto Helder, na APRESENTAÇÃO DO ROSTO:
...
Uma noite começo a escrever.
Tenho uma memória: nada foi esquecido.
Vem adequado agora a um vivo sentido de expressão.
...
As pessoas perdem o nome,os acontecimentos libertam-se do seu movimento centrífugo: fica um núcleo cerrado de significações.
..Depois: um ritmo, uma libertação.
Há dentro da gaveta uma rima de folhas escritas de ambos os lados.
Escrevi-as para os sombrios tempos do esgotamento.
Eu sou- e ali está a minha prova.
(1968 )

Quem não entende a força oculta deste movimento, desta energia cuja substância é a própria alma, a própria carne do poeta, não entenderá nunca o sofrimento e a alegria,que pode ser desbragada, da escrita.

HERBERTO HELDER, FLASH



FLASH, de 1980, foi dedicado ao pintor Cruzeiro Seixas.

Também aqui leremos como se escreve a carne da palavra, como a sua energia animal e mental vai transformando, num relâmpago mágico, aquele que ousa sonhá-las, desejá-las, desenhá-las.
Comparado, se houvesse comparação, a Julián Rios, Herberto Helder poderia ser descrito como poeta CENTRADO, e Julián como excêntrico, centrífugo, em expansão, como o universo, ao passo que Herberto implode com a própria criação que nele se origina.
Assim, ler Herberto obriga a um esforço mais atento, mais dirigido, não permite distracção, absorve por completo o seu leitor, que só pensa mesmo em deixar-se encantar no seu incantamento.
Viktor Kalinke disse, num seu recente ensaio de história das religiões, que nós somos a carne de Deus: GOTTES FLEISCH.
Assim é o poema de Herberto, carne de Deus, carne do Sopro que foi o do Verbo primordial.
" Que tenha Deus um sonho em carne viva.
Uma noite que trema pelo poder astronómico.
Mas que me poupe assim concêntrico
ao campo, e divagante, a curva
tensa:
o arco, o braço.
E as cispas súbitas, frechas
tão ferozmente pela carne dentro até ao escuro
do próprio astro, deixando um orifício
fulgurante:
um tubo de som,
sopro de ponta a ponta
- aquela baixa música mortal.Vêm os animais, alvorecendo, os cornos a rasgarem a cabeça:
outra espécie de luxo,
de melancolia.
E o corpo é uma harpa de repente.

Animal de Deus, eu.

Uma ferida."

JULIAN RIOS


Já citei a sua obra-prima, LARVA, um romance que é um perpetuum, a prosa espanhola mais perturbadora deste século, na referencia da ENCICLOPEDIA BRITÂNICA.
A esse primeiro, compacto, volume, seguiram-se outros, como POUNDEMONIUM, Homenagem a Ezra Pound,o mal amado, e
AMORES QUE ATAN, a narrativa de uma sucessão de casos que importam mais pelo permanente delírio verbal em que nos envolvem do que propriamente pelos factos em si que são contados. Tudo é pretexto para uma fusão-devoração entre as palavras e seus jogos ambíguos de grande intesidade também sexual, mais do que sensual.
Expõe-se, como diria Celan, não se impõe, uma prosa que nunca deixa, pelo ritmo alucinante, de ser ao mesmo tempo poesia. A prosa posta a nú, como se fosse um corpo: babélico o ambiente descrito, desconstruído a seu modo, voraz, algo brutal.
O livro é apresentado, na contracapa, como um conjunto de cenários londrinos, cidade onde Julián viveu e a que regressa, quando escreve, espaço mítico da sua educação sentimental feita através de vários encontros com várias mulheres de outras cidades e culturas.
Para além das relações amorosas que se tecem, o que se tece e entretece é de facto o jogo da linguagem, na fuga permanente que uma das mulheres A FUGITIVA, muito bem simboliza.
É patente a marca de Proust, no cinzelar cuidado das situações, mas é mais forte a marca de Joyce, ele próprio um grande devorador-desconstrutor de palavras. A grande heroína do livro é a linguagem, todo o processo é estético e para o fruir deveremos despir-nos de outras categorias definidoras do romance como género.
Uma última referencia: IMPRESIONES DE KITAJ o LA VIDA SEXUAL DE LAS PALABRAS .
Boa leitura !

Sunday, June 18, 2006

Now Elephants...



17th. century vase, for pharmaceutical use.
But you can put anything inside...

Vase Balustre



Portuguese fayence, 17th. century, Museu Nacional de Arte Antiga.
This kind of exotic birds were very well known to the portuguese, due to the frequent voyages to the tropical regions, since the Discoveries in the XVI.century.

Polymnie



Panel of AZULEJOS, 17th. century.
Lisbon, National Museum do Azulejo.
A very unique form of art where the subtle changes of blue color intensify a certain melancholy atmosphere.
Bibliography:
FIGURES ET PERSONNAGES, une Histoire en Céramique.L'Azulejo au Portugal du XVIe. au XXe. siècle.Catalogue, Museu Nacional do Azulejo.

Silver Plate, 17th.century

Some More, by Josefa de Obidos



Born in Sevilla ( 1630 ), Josefa was a nun in Portugal, where she delighted the portuguese aristocracy with her beautiful realistic paintings.
The baroque portuguese art was very refined, above all in ceramics, inspiration and technique imported from the ancient orient culture; and the same can be said of silver and gold "orfèvrerie", in the reign of King John the V, with silver and gold actually pouring from Brasil.

Fruit and Vegetables for Gawain


Fruit and Vegetables for Gawain, the brave champion of art and beauty in the world. I think he does not eat properly, although I would not advise him to eat as the Portuguese did in the 17th. century.
This is a Nature Morte aux paniers de fruits et de légumes, by Baltazar Gomes Figueira ( Óbidos, 1604-1674 ).
The interesting thing about it is the combination of colours, and the symbolic meaning intended, a mystical and moral one, according to the" Treatise on the meaning of Plants, Flowers and Fruit " by Frei Isidoro Barreira, published in Lisbon,1622.Such figuration of the flora was above all meant " to gratify the Christian Religion ": melon signifying taste and sweetness, apple the discord, grapes the joy of communion, orange the beauty etc.
It may be true, but I also believe the monks would also eat with their eyes when fasting according to conventual rule, and that is certainly one of the reasons for the numerous natures mortes in this century, after the Counter-Reformation.

Saturday, June 17, 2006

Mais O'Neill

O'Neill, O TEMPO DUM CORISCO

Dos turcos desce a palavra
e aqui entreluz, naufraga.

A palavra a ninguém salva.

Melhor metê-la, sem esperança,
sem recado, na garrafa.

Sempre é da minha lavra.

Friday, June 16, 2006

O'Neill a Manuel Bandeira

ALÔ VÔVÔ
A Manuel Bandeira nos seus 80 anos

Esperei vê-lo por aqui um dia, seu dentuças,
travar-lhe do braço e contar-lhe como o Maximiliano do México
foi parar ao Rossio
(toda a gente julga que é Pedro IV o pedestalizado),
apontar-lhe o frustrâneo cotovelo lusitano
no mármore dos cafés,
comer com Você joaquinzinhos inteirinhos e duma só vez,
fazer boca ou boqueirão com o vinho ( que era ) de tostão,
mostrar-lhe como eu e o Cinatti caprichamos nas saladas
(aqui não põem coentro na salada, calcule Você ! )
saladas de alface, agrião,
coentro,
rabanete, tomate,
mais coentro,
mas "cebola, não! "...
Ch'bola, non !

...que não sai nem com o desodorizante que chamam de halazon.

Um pulo à casa onde nasceu Pessoa, sim ?
(Nós não somos pessoas assim à toa, não ! )

E em minha casa, à Rua da Saudade, a cavaleiro do rio,
Você podia fumar escondido dos adultos
como na outra Saudade do seu Recife de menino.
Depois : broto ou brisa
com Anarina, mas sem Adalgisa...

Atenção, Poeta: re-cepção !

Iríamos deixá-lo à porta da recepção,
da sessão de autógrafos,
de antropófagos,
às mãos dos vestibulantes tão (p)restantes.

À saída lá estaríamos pra levá-lo ao hotel
e, esquecida a poesia, a literatura,
num repente de ternura pegar-lhe na mão:

-Sua benção, Võvô Manuel !

REMESSA

Drinka, trinca
comnosco, Manuel,
sem autógrafo nem cóquetel,
que nós não podemos ter os teus oitenta,
nem com uísque, nem com água de Juventa,
Manuel !

Alexandre O'Neill



AUTO-RETRATO

O'Neill( Alexandre ), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
( omita-se o olho triste e a testa iluminada )
o retrato moral também tem os seus quês
( aqui uma pequena frase censurada...).
No amor? No amor crê ( ou não fosse ele O'Neill )
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito ) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...
( 1962 )


Outra editora de referencia, a Guimarães, onde era alegria e privilégio poder ser editado.
Alexandre O'Neill, com esta obra, oferece à leitura os seus amigos, muitos, de Breton a Michaux, Éluard, João Cabral, os seus pintores, Júlio Pomar, o seu quotidiano e o de um país a adoecer de cansaço de alma, ao gosto de Pessoa, ortónimo e heterónimo que todos líamos naquele tempo, com grande normalidade. Só hoje, tantos anos depois, é preciso fazer "projectos de leitura para as escolas". Naquele tempo lia-se desde pequeno, sem programas especiais, conversava-se nos cafés, nos escritórios dos editores onde muitos se encontravam sem temor de plágios, as ideias eram abertas, circulavam, as imagens davam consistencia às ideias, discutia-se, enfim, vivia-se ainda que por vezes nas entrelinhas de grandes dificuldades.
Alexandre tem poesia certeira: vejam só como o poema SIGAMOS O CHERNE pode ser relido, na sua mensagem actualizada e para quem não aceite "contratos" incondicionais, algo melancólica, pois os tempos, de que noutros poemas ele também se ocupa, "apodrecem", no reino da Dinamarca de marca Portugal.

Deixo-vos com a última estrofe, esperando que procurem a obra de O'Neill, em antiquários, se não for de outro modo, e a leiam por inteiro:

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentindo o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa...

De um outro humor é a SAUDAÇÃO A JOÃO CABRAL DE MELO NETO:

João Cabral de Melo Neto,
Você não se pode imitar,
mas incita a ver mais de perto,
com mais atenção e vagar,
o que está como que em aberto,
ainda por vistoriar,o que vive entre pedra e terra
e o que é entre muro e cal,
o que tem "vocação de bagaço"
e o que resiste no osso ou no "aço
do osso", mais essencial.

...

De prosaico há-de ser chamado
pelos do "estilo doutor",
cabeleireiros da palavra,
pirotécnicos do estupor,
que dão tudo por uma ária
de alambicado tenor,
que encaixilham a dourado
morceaux choisis de orador,
mas de prosaico não foi chamado
o nosso Cesário Verde?
O lugar comum se repete
aqui ou do outro lado...

...

Prosaico: o não enfático,
o que não mente a si mesmo,
o que não escreve a esmo,
o que não quer ser simpático,
o que é "a palo seco",
o que não toma por outro
mais fácil trajecto
quando está diante do pouco,
nem que seja um insecto.

Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo,
uma tinta de virtude:
é um modo de ser,
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer.

Será neste sentido,
prosaico Melo Neto,
que no poema "O RIO"
cita Berceo:"Quiero
que compongamos yo e tú una prosa" ?
Será no mesmo sentido
de Pessoa-Alberto Caeiro
(outro prosaico, mas desiludido...) :
"...escrevo a prosa dos meus versos
e fico contente " ?

*

Quanto a mim, ainda o bonito
me põe nervoso, o meu canito
ainda tem plumas- e lindas !-
e o emu verso deita-se muito,
não sobre a terra, mas em sumaúmas,
já com bastante falta de ar...

Ó Poeta,
não é motivo para não o saudar !

(1959 )

Reparei, no meu counter, que tenho vários amigos brasileiros consultando o blog, o que me deixa feliz.
Por isso escolhi a homenagem a João Cabral, entre os poemas com endereço do O'Neill.
Vale a pena, em outro momento, trazer aqui Cesário Verde, seu muito preferido, e referir o excelente e sempre actual ensaio de Helder Macedo, publicado na &ETC.

Wednesday, June 14, 2006

Pimenta, read & mad


De novo na &ETC.
Em 1984, a aventura continua.
Em READ & MAD Alberto Pimenta lança mais um desafio: à nossa cultura (discutindo as teorias e práticas de Marcel Duchamp), à nossa inteligência, à nossa sensibilidade.
Revela-se poeta anarquista e alquimista ao mesmo tempo, algo que só os espíritos tacanhos não serão capazes de entender.
Melhor do que Rimbaud, nesta obra que gosto de considerar um "study-case" de alquimia do Verbo, Pimenta une, funde, em gloriosa CONJUNÇÃO, o Verbo de Camões e de Pessoa, transformando em 14 novos poemas a sublimação inspirada dos poemas de que partiu, sem que deles nada se perdesse, mas tudo se transmutasse:
."..e nada mais há a acrescentar além dos exemplos.além dos exemplos mais nada, a não ser o sorriso silencioso em que se anuncia o gozo de finalmente ter chegado a compreender."

E aqui fica um exemplo, deixando-se à sabedoria do leitor o prazer de adivinhar de que poemas, de Pessoa e de Camões, nasceu a Pedra Filosofal oferecida:

" Que poderei do mundo, já querer?
Montes, e a paz que há neles, pois são longe?
Paisagens, isto é, ninguém ?

Tenho a alma feita para ser de um monge
Mas não me sinto bem,
Que naquilo em que pus tamanho amor
Não vi senão desgosto e desamor
E morte, enfim, que mais não pode ser.

Se eu fosse outro, fora outro. Assim
Aceito o que me dão
Como quem espreita para um jardim.

Pois vida me não farta de viver,
Pois já sei que não mata grande dor,
Se cousa há que magoa de maior
Eu a verei: que tudo posso ver...
Onde os outros estão.

Que outros?. Não sei.

Há no sossego incerto
Uma paz que não há,
E eu fito sem o ler o livro aberto
Que nunca mo dirá...

A morte, a meu pesar, me assegurou
De quanto mal me vinha; já perdi
O que a perder o medo me ensinou.
Na vida, somente desamor vi.
Na morte, a grande dor que me ficou.

Parece que para isto só nasci ! "

( Poema XI )

Friday, June 09, 2006

Mais PIMENTA







Em 1977 publica Alberto Pimenta o HOMO SAPIENS, experiência que contou com a colaboração do director do Jardim Zoológico e sua equipa e a ajuda de vários amigos, entre eles Alexandre O'Neill, Almeida Faria, António Tabucchi, Jorge Listopad.
O livro, entregue às edições &ETC. transcreve os comentários atónitos ou nem por isso...dos visitantes do Jardim.
A experiencia foi um desafio à inteligência, à perspicácia, ao humor, ao bom senso, do bom povo português e teria feito as delícias da escola surrealista mais severa.
Pimenta esteve "exposto" no dia 31 de Julho de 1977 entre as 16 e as 18 horas,numa jaula do Palácio dos Chimpanzés do Jardim Zoológico, gravando os comentários que se iam ouvindo.
Por exemplo:
" -Ó pá, anda cá ver isto! Aqui o macaco é um homem.
-Ó pá, isto é um festival do caraças.Vamos embora, que isto é para nos tramar.
-Ai o macacão! É o homem-macaco! Só lhe falta a mulher-eléctrica .
-Dá-lhe uma banana, pá.
-Aos preços que estão as casas, não admira. Qualquer dia vimos cá parar todos.
-Já me estão a lixar. O gajo está a desenhar, está ali a fazer a caricatura da malta.
...
-Não, ele é racional.
-Mas não fala.
-Vamos mas é embora daqui.
-Ele é português?
-Deve ser estrangeiro.
-Ele que ali está, é porque alguma fez.
...
-Ele também dormirá cá?
-Não, tem as calças bem vincadas, gosta da comodidade.
...
-Ainda há bocado cá passei e quem estava era o gorila.
-Não percebo o que ele quer! Que é que quer dizer 'homo sapiens' ?
-Então, é uma espécie de macaco. É um animal como os outros"

E assim por diante...Vale a pena ler.
Será que hoje algum director, sem medo de afrontar o politicamente correcto, daria autorização ?
Temos o livro, a memória divertida recuperada como um espelho onde nos podemos ver: ah, a matemática, o português, a iliteracia, o discutido eduquês, a cultura clássica em perda, a filosofia também...enfim.
O Alberto Pimenta cá está para nos chamar à ordem.
O HOMO SAPIENS foi, como lhe chamou o director de então, "uma questão de cultura", por isso autorizou a experiência.Ler de novo o livro será isso mesmo: uma questão de cultura.

Alberto Pimenta



A primeira edição foi de 1977.Sucederam-se várias, em Portugal, em Itália, no Brasil.
Esta é de 1987, nas ed. Centelha, de Coimbra.
Espantoso, como o que então nos fazia rir hoje nos faz gargalhar, ainda que com desgosto.Portugal é um país que "divide" os que o amam; qualidade terrível pois atrai e repugna ao mesmo tempo, numa relação perversa e destrutiva.Alberto punha em sub-título ao Discurso.."com notas de Capêlo Filho " (alusão óbvia ao capêlo distintivo dos catedráticos...) "Catedrático de Literaturas Paradas".
Como são certeiras as suas palavras, e mais ainda agora, em que catedráticos ou não nos perdemos pelos corredores do tempo perdido, sem conseguir encontrar nada que valha a pena.
Alberto Pimenta pertence ao escol dos que tiveram e têm voz original, sem complacências, a par de uma erudição inteligente e cada vez mais rara. O SILÊNCIO DOS POETAS, para dar só um exemplo, é uma obra fundadora, de referencia, nas nossas bibliografias.
A sua contribuição para a literatura Experimental, para o exercício da Performance e para uma escrita poética ou de ficção sempre surpreendente, fazem dele um caso muito especial na nossa literatura : o olhar é despojado de intenções que não sejam as de livremente criar ironizando, renovando o discurso crítico ou partindo para uma aventura da alma feita de reflexão íntima, profunda, comovente.
Alberto Pimenta atravessou as ESTAÇÕES que são a marca da vida. Podemos seguir com ele, em boa companhia.

&ETC...



Em 1978, era editada uma obra-prima de Herberto Helder, O CORPO O LUXO A OBRA , com um desenho de Carlos Ferreiro, como já era costume.
A palavra "puxava" a imagem e, vendo bem, não podia haver melhor título: do corpo (que eu entendo como corpo da palavra) nasce o luxo ( o espaço ) da obra; num processo muito semelhante ao dos alquimistas: da pedra ( que como a palavra é substancia ) nasce o espaço ( o brilho ) do ouro.
Herberto Helder abre o livro com uma citação de HÚMUS, de 1966/7 :

"A pedra abre a cauda de ouro incessante,
somos palavras,
peixes repercutidos.
Só a água fala nos buracos.
(...)
Sou os mortos- diz uma árvore
com a flor recalcada.
E assim as árvores
chegam ao céu."

E já no interior misterioso do poema do corpo, do luxo e da obra:

"...
O luxo do espaço é um talento da árvore,
a arte do mundo húmido.
Por dentro da terra
o ouro cresce
em cadeia.Vi
os flancos suados das casas
contorcendo-se
no fundo
da luz,
onde o dia faz uma ressaca onde
gira a noite com seu tronco de planetas."

E termina: " Assim:
o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra."

Foi escrito em 22-23-XI-77 e publicado um ano depois.
Deixa no fim, em citação para quem pudesse ler e entender, a transcrição da Tábua de Esmeralda, de Hermes Trismegisto.E conclui, para nós todos, leitores:
" No âmbito das funções e valores simbólicos, o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra. O poema faz-se com o corpo, no corpo, de baixo até cima, sagitariamente.Ou num ininterrupto circuito zodiacal."

A referencia ao mistério zodiacal recorda-me o que pretendo ainda fazer : conversar no blog com outro poeta que admiro,
o Alberto Pimenta, também ele na &ETC., também ele com uma voz que é corpo transfigurado.

Fiama




Fiama Hasse Pais Brandão.
Recebe o Prémio da Associação dos Críticos Literários em 2006, que se juntará a um conjunto de outros prémios recebidos pela originalidade da sua produção ao longo de muitos anos.
Quando procuro nas estantes o livro que vou reler é quase sempre com as ediçoes ETC. que deparo, belas, pequenas-grandes edições com capas do Carlos Ferreiro que o Vítor Silva Tavares gostava de associar às obras que publicava.
Trago aos olhos do leitor uma dessas edições, neste caso de Fiama, a peça de teatro" POE ou o Outro Corvo", de 1979, com um retrato seu a abrir o livro.
Outrora, falo assim porque tenho saudade desse tempo, o editor escolhia os seus autores porque apreciava o que eles faziam, viessem ou não a ter sucesso; e as edições eram acompanhadas com carinho: preferia-se a tiragem pequena, e não se "trituravam" restos.Os autores, julgo eu, eram mais felizes.
Celebra-se Beckett agora. Mas porque não encenam os jovens encenadores as peças de teatro que, como as de Fiama, mudaram, a seu modo, a linguagem teatral do nosso tempo? E mais, por que razão nas Escolas de Arte ninguém estuda, ainda que não represente, o que se fez?
Leio, da Poesia 61, Fiama, Gastão Cruz, outros, cuja escrita nunca se interrompeu, mas naquela altura tinha outro sabor: o desafio, a originalidade, a antecipação de um desconcerto que se tornou actual.
Nesta peça, com um actor e três actrizes, todas variantes do mesmo feminino imaginado pelo actor/autor, discute-se o real e o imaginário- discute-se o que é a literatura, para resumir um pouco à pressa.
Não perdeu actualidade, este texto, antes pelo contrário.

Deixo uma sugestão: representem Fiama, fazendo brilhar a obra junto com o prémio...