Saturday, November 09, 2013

Passeando entre as Horas

  O eterno Pessoa...
I
Ler Fernando Pessoa é sempre para mim fonte de inspiração.
Os seus poemas, de qualquer um dos vários heterónimos, desafiam-me, forçam-me a ler e reler, por muito que já os tenha lido. À minha frente a PASSAGEM DAS HORAS.
Mas antes, é interessante ler "A Arte de Álvaro de Campos vista por Ricardo Reis", que António Quadros escolheu para acompanhar a selecção de poemas incluída por ele e Dalila Pereira da Costa, no vol.I da Obra Poética e em Prosa, (Lello e Irmãos editores, Porto, 1986) na bela edição de 3 volumes.
Ora o que diz Reis àcerca de Campos?
" Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras.(...)Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma ideia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstractamente emotiva, que não implique ao menos o esboço de uma ideia"(p.867). "É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A ideia serve a emoção, não a domina" (p.868).
Numa altura, 1916, em que se preparava o Manifesto sobre o Futurismo, um dos "ismos" de uma Europa em ebulição cultural, política e artística, em que se nega a Ordem, e se proclama por todo o lado a libertação do Eu, todos os eus que constituem uma espécie de Eu universal, globalizado, vem Ricardo Reis, o poeta da racionlaidade grega, o distanciado do sentir, pois a entrega ao sentimento é uma diminuição do intelecto, esclarecer como, a seu modo, se deve "ler" a poesia ou mesmo a prosa, do excessivo Álvaro de Campo, pseudo-engenheiro, figuração de uma alteridade mais moderna e actual(engenheiro) do que a dos subtis Caeiro (Mestre) e Reis, ou Fernando ele mesmo, o desdobrado.
Quanto à designação de poeta futurista, será correcta em certos momentos, para certos poemas, deverá ser lida com algum distanciamento, noutros poemas, noutros momentos.
Pois não podemos esquecer que a consciência pensante e actuante na palavra é sempre a de Fernando Pessoa, ele mesmo, ainda que pela voz que vai emprestando ao outros.
Os autores que de imediato ocorrem, no tocante ao Futurismo ou ao Sensacionismo são Mário de Sá-Carneiro, a quem dedica OPIÁRIO , longo poema estrófico e rimado, evocador das fugas e do prazer de um oriente sonhado. Para o Futurismo teremos Marinetti inspirando uma ODE TRIUNFAL, celebrando fábricas, com o seu formigar de gente à luz de lâmpadas eléctricas, as "horas europeias, produtoras, entaladas/ entre maquinismos e afazeres úteis /quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas"(p.879), e num atropelo febril, de descrições e imagens a enorme ânsia de tudo viver, tudo abarcar, ser o "souteneur"de tudo o que de novo roda na louca existência do mundo. Esta Ode, tal como a ODE MARÍTIMA, são sem dúvida o expoente máximo da vivência futurista de Campos: "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!" é a conclusão deste extenso e intenso, belíssimo e Triunfal poema.
 Mas há ainda outro poeta, o panteísta Walt Whitman, cuja obra teríamos de ler como Pessoa a leu (estava na sua biblioteca pessoal) para entender melhor os arroubos sensuais de Campos, ou o nítido olhar de Caeiro, oscilando entre um misticismo quase neutro de tão transparente, e uma devoração carnívora e carnal, como nas Odes citadas.
Ver ainda SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN (p.921) que Campos proclama seu "irmão em universo....".
II
Passeando agora pela PASSAGEM DAS HORAS, tentaremos ir ao encontro do que está dentro do coração do poeta, como ele diz, num cofre que, de tão cheio, não se consegue fechar.
Retomam-se as imagens das Odes anteriores: os lugares", "os portos" ,"as paisagens", os "tombadilhos" de barcos que se tornara, fantasmagóricos, como o Navio Fantasma de um Wagner. Citam-se, em enumeração que não é descritiva, é mero apontamento ou listagem, cidades, ilhas países: Singapura, Maldivas, Macau,Madagascar, Cidade do Cabo "com a montanha da Mesa ao fundo".
Dir-se-á talvez que num exercício de exorcismo de alma Pessoa regressa qui às suas viagens, de ida para a África do Sul, com a mãe e o padrasto, e de regresso a Lisboa, adolescente e só.
A enumeração, longa, traz ainda mais à memória a solidão que é a sua, e se enraizará na sua alma, como semente doentia, para sempre.
Passado o tema e a evocação da Viagem, surge o tema da Vida: "Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei.
...
Seja o que fôr, era melhor não ter nascido".

Num deslizar semi-onírico de imagens soltas, passam palácios, bobos, chicotes, mendigos, crianças abandonadas, toda a "máquina imensa do mundo" que não ajuda, nem com música, a ultrapassar a mágoa do mundo, e já a noite se aproxima. (não se pode, face a esta amálgama dorida, falar de Futurismo, mas antes de uma poesia de reflexão e simbolismo, em que cada imagem referida, ou sofrida, porque é de sofrimento este conjunto descrito, antecipa já o que virá a ser a escrita surrealista, de mão automática, ao sabor do correr do inconsciente.
Di o poeta:
"Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente" (p.931).
Pelo meio deste longuíssimo desabafo poético, em que a alma se distende, correm os versos que pertenceriam a outra Ode à Noite:
"Vem, o´noite, e apaga-me,vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além,senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo."
A noite é Mãe, é Irmã mais velha, é Noiva - uma litania que de verso em verso conduz à imagem de uma vida perdida. "não sei sentir, não sei ser humano,  conviver...."(p.933).
O momento mais explícito, no desejo frustrado de sentir, e o verso em regra mais estudado nesta longa elegia, é o que se segue:
"Sentir tudo de todas as maneiras
Viver tudo de todos os lados
Ser a mesma cois de todos os modos possíveis ao mesmo tempo...".

Versos que ampliam o que já fora dito, de todas as maneiras,ideia a ideia, imagem a imagem, de dentro do enorme cofre da alma a abarrotar.
E de seguida, num mesmo ímpeto de tudo viver e abarcar, alarga a medida do seu Eu a toda a espécie humana, no que tem de bom e no que tem de abominável, num Todo imaginário em que o discurso poético, adiante, já mais veloz e descontrolado (ainda que o descontrolo não exista nunca numa obra verdadeira) caia de novo na "raiva panteísta", de "sentidos em ebulição",  em que tudo é " uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha de si para si...violências de velocidade louca.." etc.
Sim, nesta variações de emoção e estilo, ora poderia um crítico falar de futurismo, e sua raiva invencível( pois não se estava em guerra? ) ora de sensacionismo descontrolado por uma vertigem superior, a do panteísmo de fusão com a natureza violenta, subitamente a descoberto na alma, ponto negro num universo distante.
PASSAGEM DAS HORAS: Em resumo, um poema que por vezes cultiva um sado-masoquismo certamente inesperado na burguesa Lisboa de Pessoa, mas não na sua roda de amigos, no café, uma cavalgada que não voa por cima de montes, nem se desvia da fundura dos poços, mas procura uma tal desarticulação da consciência de ser que o poeta continuará, pela vida fora, em todos os poemas, a procurar recompôr os fragmentos que se espalharam, como pó de estrelas, pelo seu e nosso imaginário de leitores, até hoje.




            

Friday, November 01, 2013

O Anjo de Duerer

Tem as asas caídas.
Está zangado.

Foi posto ali de castigo
até que o círculo
se transformasse em quadrado.