Tuesday, December 28, 2021

Lençóis

Lençóis

Teve lençóis de cetim

e teve lençóis de linho

agora só quer  lençóis

de algodão muito fininho


28 de Dezembro, 2021  

Monday, December 27, 2021

Morre alguém

 Morre alguém

abriu espaço

para uma vida outra

que lá venha? 

De estrela ainda

não conhecida

uma luz tão distante

e já envelhecida?

Um ponto enegrecido

que absorveu da energia

o sopro

indivisível?

Vê-se a morte,

mas o que foi a vida?

E perguntar

fará algum sentido ?

Haverá quem a conte

essa vida perdida

haverá quem a esqueça

haverá quem a lembre

do fundo mais profundo 

da memória contida

da verdade ou mentira

e afinal o que importa

se aquele que morreu

morreu

e já não volta?

27 de Dezembro, 2021



Ainda o Desfazer das Coisas e as Coisas já Desfeitas

 Estava eu a pensar no que podem ser as coisas desfeitas, e como se desfazem, pelo tempo onde ficam esquecidas, ou pela vida, a destecelã por excelência, roubando agora uma ideia ao desaniversário sem chá, da Alice, a figura que ainda hoje é a mais desconcertante e inspiradora com que deparamos, ao reler de novo as suas aventuras. 

Entre a imensa colecção de imagens animais que atravessam as metáforas de Nuno Félix da Costa ( que podemos tentar  comparar a Comte Lautréamont e ao tubarão com quem vai acasalar, sublinhando em ambos a tónica surrealista que atravessa os Cantos e os Poemas ) vamos encontrar num poema que assenta bem neste resto de quadra natalícia, em que uma pandemia nos baralha os espíritos, os projectos, nos reduz ao pouco que somos num universo imenso, o da atitude do Pai Natal perante uma revolução (p. 171). Embora o tom seja basicamente irónico - pois quem acredita ainda num Pai Natal qualquer que ele seja, a não ser uma criança de infância resguardada (algo de cada vez mais raro, pois a publicidade que invade o mundo real, os media, não o permite) - a mim trouxe-me um recordação feliz da minha infância em Buenos Aires: levei a um pai Natal que estava no último andar do Harrods argentino, que sentava os meninos ao colo e perguntava se tinham sido ajuizados, pegava na carta onde iam os pedidos de prendas e explicava: eu leio, depois entrego os presentes aos Reis Magos e são eles que no dia de Reis levam as prendas a cada casa. Assim aconteceu comigo: no dia de Reis tocaram à porta do nosso apartamento, fui a correr (tinha sete anos nessa altura) e vi pousado no chão o bébé de borracha que tinha pedido. Acreditei no Pai Natal até quase aos dez anos, quando regressada a Portugal a troça das minhas amigas me desfez o encanto, por muito que eu dissesse que lá, na Argentina, tinha estado ao colo dele. A história do Pai Natal está magnificamente descrita no blog deste domingo, o De outra Maneira, por Isabel Almasqué. Ali encontram a verdadeira origem da lenda, a partir da existência do culto a um Santo medieval. Mas o que ficou no imaginário de um poeta contemporâneo, que põe o Pai Natal das barbas risonhas diante de uma revolução?

Agora dou-lhe a palavra:

"Ainda amo o Pai Natal - espero-o com um grau de certeza injustificado / mas esperar é como chegar ao crepúsculo sentir fome e ter a ceia - ou um / sonho que se repetirá sem surpresas - sem reparar que se acumularam os dias / e que o livro poderá nunca ser escrito - Mas amo a possibilidade de / uma ocasião de sorte - de escorregar e não cair como uma atitude geral / de os corpos tenderem para a própria ideia e a matéria que sorri ser nuvem / Todos os dias visitamos as crenças dispostos a mudanças mas estamos / na terceira geração de reis exilados - A revolução também falhou - / as fábricas enferrujaram na cirrose operária - É prático ter crenças / revolucionárias desde que possamos morrer por elas / Enquanto os reis exilados na sua memória de Pais Natais temem / a forca nós levamos o inverosímil para o sonho e deste ao real / é um passo que nem discutimos".

Qual é a lição do texto? Que o sonho ainda é possível se o levarmos connosco para o real onde a ceia esperada nos é servida? A festa, mal ou bem, é desejada, é esperada, e como nos contos de infância terá uma solução feliz, que o poeta reconhece que nem se discute. A alma precisa dessa ilusão, dessa espera ansiada desse alimento que o poeta define como ceia. E neste caso a ceia não é a última, de Cristo com Judas traidor, esta é a dos Reis e dos pastores guiados por uma estrela nova, propícia, que vem saudar uma criança nascida. Jesus menino ainda não é Cristo. 



 

 




Wednesday, December 22, 2021

Nuno Félix da Costa, O Desfazer das Coisas e as Coisas já Desfeitas, ed. Companhia das Ilhas, 2015

 Estamos em 2021, neste momento em que escrevo, sobre uma edição de poesia (melhor dizendo prosa poética) do século passado, mas que mantém uma tão grande actualidade, que merece e deve continuar a ser lida. Razão? A universalidade dos temas que aborda, desde a leitura dos gregos antigos, que tudo pensaram muito antes de nós, desde a noção de consciência, passando pela discussão do Princípio (do universo, mas também da consciência dele e do ser humano que teve igualmente o seu Princípio, ao ter consciência de si mesmo no mundo), até chegar às modernas conclusões da neurobiologia sobre o que já se sabe do cérebro humano e do muito que ainda falta estudar e descobrir. Nuno Félix, sendo médico psiquiatra, está à vontade para poetizar sobre neurónios, sinapses, " o tubo neuronal que se não se fechasse o cérebro perdia-se...viveria como um dinossauro decapitado / sem alma na acção nem voz para a surpresa da morte / Aos quatro meses sem proliferação neuronal o eu encolheria / Eu de sapo num príncipe nem bem nem mal comportado" (p.14),  e assim introduzindo na sua escrita elementos que para um leigo surgem como surpresa, desafio, ou por vezes mesmo um toque surrealista. Não admira, pois Nuno se interessa por pintura, sendo ele mesmo pintor, fotógrafo, fazendo colagens que de tudo um pouco misturam (fazem ou desfazem) completando ainda a sua formação, ou apenas curiosidade (mas a curiosidade é que nos impulsiona, na ciência, na filosofia, na arte, como lembrou Stephen Hawking na última conversa com os seus estudantes, pouco antes de morrer) com o gosto pela música e pela filosofia. Na verdade é um poeta fora do comum, que eu definiria como filosofante. Um pouco à moda de Pessoa, em quem tudo o que escreve remete para um pensamento filosófico subjacente aos seus versos, mesmo os mais delirantes. Álvaro de Campos, o das viagens em que o delírio o toma, e quase faz dele um poeta libertário, excessivo nos apelos, nas palavras, nos ritmos  que lhes imprime, mesmo nele encontramos fundamentos que ultrapassam o jogo futurista. Os seus excessos são apelos,  e têm tudo a ver com o fazer e o desfazer das coisas que Nuno Félix escolhe para matéria poética. A verdade é que um criador não progride, na obra, sem primeiro desfazer o que fez. O que está feito está feito, e a vocação, se real, impele para outras coisas, ainda que desviantes em função do primeiro princípio idealizado ou proposto. Nuno Félix escolhe o desfazer e o já desfeito, mas na verdade é desse já desfeito que segue em frente, com o seu novo fazer, um Princípio que é outro e aguarda que seja descoberto. Mas terminemos, já agora, este poema de abertura: 

Dissera na primeira estrofe, " nada sei da minha consciência - qualquer coisa /ligada a um molho de células oriundas de um pai amando / uma mãe - Quase sempre é assim..." 

E diz agora na última: " Sempre atrás de mim o meu cérebro - Atrás do olhar - da voz / Como saber da consciência? Estarei bem mielinizado - do princípio / obscuro dos nervos até à flôr da pele onde a consciência se simplifica / no que sinto? No que vejo ao longe afastar-se e sei não ser eu?" (p. 14). 

Saber ou não se saber quem é, se o eu se outro que se afasta, é produto já de uma consciência de si adquirida, algo que não se tem ao nascer. A criança nasce vinda não se sabe de onde, de uma cósmica esfera, no dizer dos Livro Tibetano dos Mortos, onde a sua essência aguardava que o desejo do homem lhe permitisse a materialização. 

Assim nasce a criatura humana, e a ignorância do que foi, e do que é e do que venha a ser, é um dos raros momentos em que se poderia dizer que é feliz, porque o sofrimento vem com o saber, não apenas do cérebro cientificamente estudado, mas sobretudo do que falta, do que se inquire, e como se queixa Strindberg, recentemente dado a conhecer entre nós, pela mão de Cristina Carvalho - é tão grande a ânsia que nos toma, que por vezes nem na arte se encontra lenitivo. Contudo é na arte e só nela, sob as suas várias formas, que o criador se pode encontrar, no eu que a sua obra sublimou.

No poema seguinte, continuando num hermetismo que lhe apraz cultivar, Nuno Félix deixa contudo uma porta para os benefícios da arte, neste caso da escrita:

"A escrita abisma-se obriga ascende e quebra / a voz vidente - Fende o chumbo - a luz espreita e / revive um pouco mais" (p15). O chumbo é o peso que a palavra comporta e é necessário transportar para outro nível mais elevado da consciência, onde sem que o autor o diga logo expressamente, a palavra também se torna instinto, além de peso. Entra-se na esfera de uma irracionalidade que o cartesianismo não aceitaria, a do sentimento, embora tenha pretendido defender que só o pensamento valida a existência.

Alquímico é o chumbo que deixa passar a luz para que se reviva "um pouco mais". Apologia da transformação que sublima, e que depois de um negro desfeito permite um branco refeito. O solve et coagula, dos filósofos herméticos...de que Jung, bem conhecido do nosso autor, como veremos adiante noutro texto, se ocupou. Este é um dos Princípios,  mas na verdade, na criação poética toda a matéria é livre e passível de se transformar. Daí o desfazer das coisas, no título, anunciar o solve como princípio, ainda que sem o nomear. A cultura de um poeta tanto serve para indicar um caminho como para o esconder, e é grande a cultura deste poeta, em variados domínios, o que nos obriga a leituras atentas.

No poema que intitula a cura ou Goethe quântico (p.16) introduz o conceito de tempo, como Heidegger o faria se vivesse agora: o tempo factor de separação, de divisão (enquanto o Ser pretensamente seria sempre de União, manifestação de um Uno indivisível, anterior ao tempo que ao surgir no Princípio (Génesis) logo introduz a divisão, separa as trevas da luz. 

É o tempo que dá forma ao ser - desde logo o da criança, ao nascer. Pot isso o poeta lembra que o tempo separa: pois a forma, como nos versos do poema define o que o poema é.

" É difícil com a linguagem reconhecer os caminhos / que nos atravessaram floração prende o olhar e vemo-nos / reunindo as primaveras numa espécie de tempo cujas peças / se desajustam - Ecos de uma explosão opaca antecedem / o fundo da voz sem nos tocar o rosto e voam num cosmos que sem ver respiramos...". O poema termina com a imagem cósmica que fatalmente teria de acompanhar a reflexão do princípio do tempo original: " audaciosos actores de desabafos teóricos / ao colo de um universo que - sem assustar - se sustenta sem nós". Nós não existíamos, no princípio dos princípios, surgimos ao sexto dia, quando o tempo nos separou de toda a matéria vegetal e animal entretanto criada. Quer isso dizer que somos mais, que somos menos? Seremos dispensáveis num universo "que se sustenta sem nós" ? Há uma certa amargura, feita de desilusão, no olhar de um cientista que embora sendo poeta não desconhece as falhas e faltas da nossa condição. Humana e limitada, descolada da transcendência que um Jung mais esperançoso lhe atribui, mas que um Freud mais cartesiano entende ser despicienda. 

Tal como a reflexão sobre o tempo, o mundo das crianças atrai Nuno Félix, porque nelas se revê numa inocência que é dos primórdios de uma consciência que ainda se ignora como tal - com tudo o que o presente e o futuro lhe reserve. 

Curiosa é no entanto a imagética animal que lhe ocorre, em contraste por vezes com o suave perfume de flores do hálito infantil que se respira no seu adormecer - imagens de animais que surgem com alguma violência destruindo um sono ou um imaginar, no poema, que devolvesse harmonia a uma tão pequena existência, intocada ainda (quanto sangue sem pedir a filha rouba...) O sangue que escorre do corpo da mãe que a dá à luz, mancha a pureza da criança acabada de nascer, já separada  e com outro destino. Ocorre então que o tempo não se limita a separar, mas nesse acto define também um destino. Não é por acaso que adiante o poeta afirma: "Hoje ter alma não é um risco - Pouco a usamos e não temos / que a salvar - apenas que a manter / limpa e nos limites do razoável" (p. 27). 

A ironia atravessa muitos dos poemas, juntamente com elaborações de carácter científico que dão um tom quase surrealista, por inesperado, quando vamos embalados no verso de uma ideia ou de uma imagem especialmente interessante. O mesmo modo caímos, quando menos se espera, num quotidiano molho de amêijoa à espanhola, tendo já lido antes que a amêijoa é prima de sangue do búzio...um paladar de quotidiano faz cair no real quem esteja à espera de espiritualidades bacocas, pois nada disso cabe neste fazer e desfazer de coisas que são por vezes sublimes, por vezes quase banais pois a banalidade faz parte do quotidiano das vidas que nos são dadas a viver. Mais ainda numa sessão em que o médico tenha de pacientemente dar atenção aos seus pacientes. Merecerão todos eles essa especial atenção? E mesmo não merecendo, noblesse oblige, o médico tem de ser generoso, embora o poeta não.

O poeta pode, se sentir esse impulso, descarregar o negro que lhe pesa, desafiar os deuses em que não crê, desacreditar os filósofos que ignoram as causas mais profundas do sofrimento que esconde, oferecendo utopias jamais realizáveis em nosso tempo de vida. O que me devolve à questão do tempo, focada atrás: o que é, para este poeta, o sentido da vida? O sinal sem sentido do grande Hoelderlin, pois se perdeu a língua no distante? E o que é afinal a obra do poeta? Recuperar, refazendo, esse sentido por dentro do sinal? O título que deu ao livro é pessimista e não deixa antever mais nada para além do dizer o Desfazer e o já Desfeito. Mas voltando à questão do tempo, e do princípio, não haverá aqui uma contradição? Um desejo de recuperar, no poema, o ainda não feito?

No fecho do poema intitulado hipnotizados pelo suceder (p.25) lemos que " a ironia retoma o mistério - Nem percebemos o que / ao suceder escapa - o que mantém a boa ordem das vagas / que se sucedem com absurda simplicidade". O que veria Freud (Quand Freud voit la mer) nestas vagas de Nuno? O obscuro inconsciente, ou uma consciência imperturbável perante pequenas vagas  de absurda simplicidade?  Nada é simples, num poema, ou numa consciência que se procura entender a si mesma no mundo a que foi entregue, sem querer e sem saber. Nascemos e morreremos assim, sem querer e sem saber. 

Em disputas doutrinárias (p.29) encontramos Freud e Jung como portas para uma felicidade variável. Postas de parte as personagens da infância o crescimento é possível, entre Buda ou um poema preferido, os mitos coexistem numa liberdade "libertina",  aproximamo-nos de Jung, mas ficamos mesmo assim a meio caminho (não há soluções perfeitas para ninguém) reflectindo no que seríamos sem pais (Freud) nem mitos (Jung) sendo apenas o que somos numa "alegria mal pensada".

Continuando uma leitura que não se pode esgotar aqui, iremos descobrir uma faceta que ultrapassa o inicial filosofar e se entrega a um surrealismo-abjectionista, ao gosto do fundador, Pedro Oom, e o grupo do café Gelo, de que destaco Cesariny, mas especialmente Luiz Pacheco, cuja Comunidade ainda hoje guardo no que chamo a estante dos amigos. Neste movimento a liberdade e o libertário das situações e da linguagem são totais, a raiva e o nojo, o ódio ao mundo, à sociedade normativa são descarregados com abundância por vezes quase chocantes, embora expectáveis, pois para isso se criou a associação livre de imagens, por muito chocantes que sejam para as boas almas que se escandalizarão - algo que se pretende por estes autores. É a Julia Kristeva que devemos uma reflexão ensaística, em 1980 (40 anos depois do arranque em Portugal) sobre a abjecção: O Poder do Horror, ensaio sobre a Abjecção. A Psicanálise, com Lacan e o seguimento post-freudiano valoriza, no post-modernismo, o culto do horror, do horrível,  do condenável na sociedade educada, ou tida como tal tal) como no início do século muito do Expressionismo na pintura e no teatro, mas o abjeccionismo literário neste desfazer e no já desfeito surge um pouco como surpresa. Passou-se da meditação sobre o Princípio, o gesto que inicia, e sobre o Tempo, a medida que separa, para uma dissertação que se afirma longe dos valores tradicionais mais óbvios, mais aceites, numa espécie de raiva que arrasa tudo num frenesim de desfazer o que estivesse (e fosse aceite como)  feito. 

Mas o interesse deste livro não se esgota no desabafo súbito e por alguma razão necessário e libertador.

 Muitas outras páginas, que podemos ir abrindo e lendo ao acaso, aliás maneira bem feliz de ler, porque sempre surpreende, iremos ao encontro da música ("quando pensamos num músico surdo queremos sentir / a compaixão dos sons enterrados num vulcão ou já vazios / pairando no seu puro contraste.../ e a revolta da música toma a pureza celestial / da crueldade quando o sentido se perdeu" (p.36). Alude a Beethoven, genial e já só podendo ouvir-se por dentro da cabeça, alheado de um mundo que o procura ou ignora, pois já não comunica a não ser com a sua oculta genialidade? Provavelmente.

Mas logo de seguida empurra-nos o autor para um outro mundo, menos musical, o de Descartes, todo pensamento e exíguo no sentimento, às voltas com um sonho recorrente que Marie-Louise von Franz nos conta e eu tentei analisar, num post antigo " O melão de Descartes". 

Nuno escreve aqui "ignoro o que pensar de mim" (p. 37) como Descartes em carta a um amigo escrevia ignoro o que pensar deste sonho tão recorrente...A verdade, e Nuno Félix sabe disso, por força da sua experiência, sua e de outros, que não é o pensamento (a Razão, o Intelecto, mas a Emoção, o Sentimento) que nos podem abrir alguma frincha de súbita revelação. A lição já vinha de trás, com os Pietistas na Alemanha do século XVII-XVIII e os seus retiros espirituais nos conventos que o Conde de Zinzendorf lhes punha à disposição, para no silêncio da alma (essa palavra ainda hoje odiada, ou ignorada, o que é pior) a iluminação divina pudesse ter lugar.

Esse silêncio, de recolha e recato é o mesmo que o poema exige para dar voz às palavras que busca e virão ter com ele mais tarde ou mais cedo,  feitas, desfeitas, ou de outro modo qualquer, ajustadas à sua realidade. Saberá assim talvez mais qualquer coisa de si.

E regressamos "à origem do discurso"...o tal princípio. "Poderia ter sido de outra forma mas foi assim - concluímos". Se antes falou de música, agora leva-nos para o mundo abstracto da pintura, com Klee. Mas é uma descrição de um quotidiano naturalista por onde passam formas tauromáquicas, trombas de porco, bicos de cegonha, ad cores que pelo meio se atropelam, nos despistam, nos distraem, de modo que o poeta conclui "falham alusões aos mitos - falham soluções - a esperança deslocaliza-se - talvez a alma não comporte / o que junta e na névoa voa com os rochedos ou o universo / não suporte o uníssono democrático" (p.41).

Matéria para reflectir. O que se pode encontrar num quadro que soma, mas não revela, não é essa a função dele, revelar cabe a quem consiga desfazer o amontoado de imagens, e suas resoluções. 

 

 

  


 

 

Sunday, December 19, 2021

Cristina Carvalho, Strindberg, ed. Relógio D'Água, 2021

 Como sempre, terei de esperar que chegue um filho para colocar a bela capa desta bela edição, como as outras a que a Relógio d'Água já nos habituou.

Já escrevi sobre outros livros de Cristina Carvalho que prossegue no caminho generoso de divulgar vidas e obras de grandes criadores universais, e não apenas da literatura: temos a música, com Chopin, o cinema, com Ingmar Bergman, a pintura, com Modigliani e agora um dramaturgo e pensador de quem eu vi, outrora, A Menina Júlia, mas ignorava a  dimensão maior de tudo o que foi fazendo nas várias artes ao longo do seu tempo de vida, nem sempre feliz, como ele diz a dada altura. 

Confesso que o cuidadoso prefácio de Daniel Sampaio, abrindo o livro e a sua leitura para leigos como todos somos, antes de começar, me intimida um pouco. Se eu soubesse fazia um copy paste dos seus  comentários, que subtilmente apontam a diferença entre o que é ficção, o que é uma biografia como género literário com as suas regras, e este "romance biográfico" em que a autora, com arte exímia, fez toda a investigação necessária para enquadrar um autor de obra complexa e que exige por isso o respeito dos factos, quando investigados e conhecidos. Cristina herdou do seu pai, que eu li como Rómulo de Carvalho, no Porto, aos doze anos e só mais tarde, já em Coimbra, redescobri como poeta António Gedeão, herdou, dizia, uma enorme capacidade de reconstituir o ambiente, o espaço, em que uma vida como a de Strindberg se desenrolou.

Como refere Daniel Sampaio, encontramos nesta obra sobre Strindberg uma descrição completa e fundamentada das étapas da sua vida, dos lugares que frequentou, das mulheres que amou, dos amigos e inimigos que teve, do que foi deixando inacabado, e por fim a inovação na estrutura que Cristina escolheu para tanta matéria, ora uma identificação plena, de voz que intervém em estilo directo, ora uma distância de reflexão - de cada vez surpreendendo o leitor pela originalidade desta escolha, que mesmo assim não deixa que se perca o fio à meada da narração. 

Cito de novo D.Sampaio, por concordar com o que observou e eu mesma por vezes observei, noutras obras da autora, como Rebeldia, por exemplo.

"A escrita de Cristina Carvalho é cuidada, intimista, por vezes torrencial. Vê-se que conhece bem a obra de Strindberg (...) Dá-nos um retrato muito completo da complexa personalidade deste autor sueco".

Temos de agradecer a Cristina Carvalho que nos tenha desvendado a múltipla personalidade de um criador que foi mais do que dramaturgo, foi romancista, pintor, fotógrafo, alquimista, "instável nas relações afectivas...sempre em constante procura de si próprio e do seu lugar no mundo" (D.S.p. 8-9). Aqui temos a razão do subtítulo, em epígrafe: NESTE MUNDO FUI APENAS UM CONVIDADO.

Cabe-nos agora, a nós, ao ler a obra de Cristina, dizer à essência sublimada de um autor pouco estudado, que é um convidado que nos honra, por ter existido e deixado marcas que perduram, nessa busca de uma espiritualidade bebida em Swedenborg, que foi tão influente na Europa daquele tempo, Goethe é um dos autores que o lê e tenta idêntica busca de uma nova esfera espiritual, que também o seduz, como aconteceu com a alquimia. 

Será em Inferno que poderemos descobrir muito do que foi o seu pensamento íntimo, o que fica no espólio, em regra, por precaução ou timidez. Mas estando traduzido, em inglês e já em espanhol, penso que é obrigação ler, antes de continuar a deambular por aqui, tendo a referência da obra.

É o que farei, numa segunda abordagem desta edição, felicitando mais uma vez Cristina Carvalho, que enriquece generosamente os meus dias e espero que de muitos outros que como eu não gostem de ficar pelos sucessos da espuma dos dias. 

Strindberg, contemporâneo de Nietzsche, embora não se tenham conhecido pessoalmente, teve por ele uma admiração quase doentia de tão intensa, depois de ter lido Para Além do Bem e do Mal, obra que se lhe colou à pele como se fosse sua. E não admira, a época era de pensamento ousado, aspirando a revolução, a mudança, em todos os domínios da criação e do pensamento. Trocam correspondência, mas quando o filósofo alemão extravasa, noutras obras, o bom senso que o leva a considerar o homem alemão como o Homem Ideal, aquele que afirma que Deus está morto, e o Homem Novo é o que se perfila no horizonte, quando se indispõe e humilha Wagner, o seu admirador, Strindberg, entende que a ligação é perigosa e afasta-se dele, enquanto o admirado filósofo e poeta cai na treva da loucura.

Igualmente interessante é ver como Paris foi atracção, e como Strindberg ali sofreu, num obscuro quarto de hotel, o que também Rilke sofreria. Paris, a cidade sonhada e que só trouxe, a um e a outro o rosto da fome e da miséria moral a que nas ruas assistiam. Se para Strindberg foi Gauguin, pintor, a figura de relevo, para Rilke foi Rodin, escultor, não menos seco e cruel, nos anos em que lhe serviu de secretário.

A verdade é que um criador é uma alma inquieta, sempre em desassossego, e na sua consciência  de que tinha muito a dizer ao mundo, Strindberg transforma-se num caso paradigmático. Ora muito bem aceite, ora detestado por ser agressivo e rude, e se situar fora das normas da sociedade em geral. Sabia-se, sentia-se, superior ao pequeno mundo burguês, ele que vivia a arte tão intensamente e só na arte encontrava algum sentido para justificar a vida. É difícil situá-lo: antecipa o movimento Modernista, mas de forma tão feita de excesso que o sentiria, eu, mais perto do Expressionismo. Há, no que Cristina nos revela do seu carácter e de alguns comportamentos, qualquer coisa de bi-polar, mas na verdade o que fica de um criador é a obra criada, foi desse impulso de pensar e criar que nasceu, quem sabe, o excesso, o desequilíbrio, de que ele fala, defendendo-se contudo do receio de ser louco.

É curioso como a questão da loucura invadiu o mundo dos criadores, naquele tempo. Nietzsche é talvez o caso mais doloroso, mas Strindberg, o seu receio, pois discutir o que se é revela o seu receio de que o definam como tal, e chego a Fernando Pessoa, que escreve a um médico da África do Sul e lhe coloca a sua interrogação.

Vinha de antes, essa ligação entre o génio e a loucura, e há boa bibliografia sobre o tema. Na verdade o génio marca diferença entre uns e outros,  a normalidade regrada não faria nascer um Rimbaud, nem um Verlaine, muito menos um Kokoschka cuja obra é revolução de toda a norma, até mesmo no teatro que escreve. Os génios são fundadores de novas formas, com eles se abrem as consciências a uma nova ideia do ser e do seu sentido na sociedade e no mundo.

 O génio é um fazedor  de mundos, por ele se sublima, como na alquimia, a matéria informe, primordial, que ele moldará a seu gosto. Cito a frase com que Cristina, numa simbiose com o autor, de absoluta liberdade que também ela pratica: "escrevo como me apetece..." da sua mão o impulso de mudança, ou de revolta, será marca fundamental. O mesmo encontramos em algumas obras que Cristina publicou, de autoria própria.

Refazer o que está feito não é o que se procura. Inovar é o lema, alterar, em todo o caso, uma absoluta imposição. Mergulhar no mais profundo da alma, o inconsciente que em breve será abordado nas suas várias esferas para nelas encontrar os mitos e arquétipos que estruturam e explicam o muito ou o pouco que saberemos de nós. Strindberg tem essa intuição genial: a busca é nele incessante, tanto quanto a revolta de não ser sempre recebido como mereceria. A vida foi-lhe talvez ingrata. Mas o que teria ele sido numa ordem social mediana e considerada normal?

Jordan Peterson, Psicólogo Clínico e Professor em Harvard, cuja obra é hoje em dia best-seller de reconhecimento mundial (e em alguns casos repudiada com igual veemência) publicou uma obra, BEYOND ORDER, em que para lá de muitos outros temas aborda, para a vida de cada um, a importância da arte. Só a arte, a criação de uma obra de arte, pode devolver a uma humanidade deprimida, a harmonia de alma de que cada vez mais necessita. Ocorre-me neste momento que isso mesmo se destaca na apreciação da vida e obra de Strindberg, a angústia e a busca permanente de uma inspiração que lhe escapa e o torna infeliz, o desequilibra, a ponto de quase desejar morrer. Mas cito Peterson "...uma obra de arte genuína invadirá a sua vida e a mudará. Uma verdadeira obra de arte é uma janela para o transcendente (...) é por isso que precisamos  de entender o papel da arte e deixar de pensar que se trata de um luxo, ou pior, uma afectação. A arte é o suporte da cultura (...) vivemos pela Arte" (J.B.Peterson, 203). 

Strindberg entenderia bem estas palavras, mas é pela visão de Cristina Carvalho na sua biografia,  que essa busca premente se torna clara, com as dores e as alegrias, as hesitações que acompanham todo o verdadeiro apaixonado pela criação artística.

E agora impõe-se que se fale deste labor de Cristina Carvalho, que há anos se ocupa da cultura e da arte na cuidadosa, mas apaixonada, divulgação dos melhores que escolhe para seu trabalho. É trabalho de obreira, na definição dos alquimistas: ela é a rosa que dá o mel às abelhas...e nós somos as abelhas que se alimentam desse mel, de sabedoria feita de ler e reler (outra máxima alquímica) até à realização de uma obra única,  generosa no modo como a põe à disposição dos seus leitores, e que  merece todas as distinções que condecorem o seu trabalho e o seu mérito.  Existem, está na hora de atribuir.



Thursday, December 09, 2021

CONTRA-CORRENTE

Jordan B. Peterson ( n.1962) Psicólogo Clínico, Professor, autor de vários livros de inspiração junguiana. Em 2021, dá uma entrevista que vejo no youtube sobre o seu percurso, a sua vida. Adoeceu gravemente (terá sido a depressão a que os alquimistas chamam nigredo e Jung explica como sendo uma fase do meio da vida em que o eu se confronta com o inconsciente? Uma depressão que afunda, mas pode também, se o eu integrar as matérias (via sonhos arquetípicos) de raiz inconsciente, salvar e conduzir ao amadurecimento e integração de um EU superior.

 J.P. tem um rosto magro, sofrido, olhos escuros que escurecem ainda mais quando se concentra para falar. Nada do que diz é fruto de acaso, cada afirmação é completada pelo seu possível contrário, revelando a complexidade de todo o pensamento e a finalidade, o sentido, a que conduz.  

Numa das suas regras de vida para um casamento duradouro, salienta a importância das primeiras três, que vemos numa sessão do youtube, mas a escolha do três é intrigante. Porquê três e não quatro, ou só duas, ou uma? Quebrar um voto (para J.P. o casamento é um voto, e um voto é um compromisso para a vida) se foi sincero no momento em que foi pronunciado não deve ser quebrado, nem uma vez sequer. A repetição terá algo a ver com Pedro, que por três vezes renegou a Jesus? Porque sendo J.P. um católico que se assume e por essa razão muitas vezes foi ofendido, maltratado mesmo, como diz, numa sociedade em perda de valores, o três pode para ele ter um valor especialmente simbólico, de pecado e perdão.

Fala numa das sessões do momento terrível em que todos na sua casa adoeceram. E que sem o apoio da mulher e dos filhos, e dos muitos amigos que também tinha e outros que foi descobrindo, via net, não teria sobrevivido. Aludiu a esse período com um olhar ainda mais escuro, como se de maldição se tratasse. Não li ainda os livros que quero ler, mas estou certa de que para ele o Mal existe e a sua presença se pode fazer sentir quando menos se espera.  Tudo lhe corria bem na vida, as aulas, o consultório, as sessões em que participava, e de repente tudo se virou ao contrário. Até um convite da Universidade de Cambridge lhe foi retirado, magoando-o profundamente. Para um Académico de prestígio, como ele era, ser desconvidado sem razão foi, como é óbvio, mais do que uma ofensa, uma pura maldade gratuita, que o fez sofrer muito.

Como diz às tantas, aprende-se com o bom e com o mau que a vida nos oferece. Crescemos, ficamos mais humildes, mais disponíveis também para as situações dos outros em sofrimento e que é dever de ofício ajudar, numa profissão como a dele. Mas, diz ao concluir a sessão, temos de saber que é perigoso o que se possa fazer ou dizer, temos também de saber defender-nos do mal que nos ataque. Da sua provação saiu mais reforçado, mas poderia ter "caído" de vez naquele negrume de alma. Muito ajudado por todos enfrentou esse mal, de que   já Jung tinha falado. 

Confrontou os seus demónios, integrou o que lhe era revelado ( e até aí permanecera oculto) sobreviveu e aqui está ele de novo, a falar connosco, para nos ajudar também.

É tão estimulante a sua análise do Manifesto Comunista, de Marx- Engels, pondo a nú as falhas de raciocínio e as ilusões que pretendem criar - utopias - que se traduziram em revoluções de violência inenarrável a pretexto de uma governação que seria mais justa, igualitária, ainda que dependendo de um governo restrito e autoritário, de ditadura selvagem, como é estimulante a sua perplexidade confessada por ter fé e acreditar em Cristo, sem perceber bem porquê.

Poderíamos dizer que a Fé é um dom, não terá nunca explicação, mas ele quer ir mais longe e entender por que razão, ao contrário da tendência laicizante actual do mundo, ele se tornou católico convicto. O que há de diferente em Cristo, que chegou há dois mil anos, em relação a todos os outros deuses, tão mais antigos e cujos cultos ainda se praticam, no Islamismo, ou no Hinduísmo, por exemplo, com grande quantidade de devotos.

Deixo eu a minha interrogação, enquanto não vejo a dele: será porque Jesus é uma figura histórica e não uma figuração abstracta, tal como Sócrates foi e em certa medida ambos no comportamento e no pensamento se aproximam? Refiro-me à questão da Ética como valor supremo, que leva a que ambos aceitem a morte a que são condenados. Contudo Sócrates é considerado e permanece filósofo, e Jesus é sublimado em Cristo, filho de Deus. Peterson não gosta que lhe perguntem se acredita em Deus, prefere responder que se esforça por viver como se Deus existisse. Leva a questão para a Ética do comportamento em vez de assumir a devoção a um Deus que se fez homem, em Cristo, para tomar consciência de si mesmo (Jung, no ensaio sobre Job). A centelha divina que se calhar existe em cada ser humano - será ela uma aproximação ao que se pode conhecer de Deus? E como ficamos em relação ao mal, que também no homem se revela em paralelo ao bem, quem sabe se de modo mais intenso? É um mistério esta dupla existência na criatura que Deus terá moldado com o barro do Jardim do Éden. Voltando a Jung e ao seu texto, Resposta A Job, percebe-se que a experiência do mal foi o contributo indispensável para a consciência que Deus adquiriu de si mesmo. BEM e MAL, complexos na sua oposição, mas presentes na realidade da essência do humano e do divino.

Uma das palavras que mais oiço nas intervenções do Prof. Peterson é meaning, significado, sentido. 

Sentido - como orientação que se dá à vida, às escolhas que se fazem, aos comportamentos que se seguem, ou à razão da procura que nos incentiva e leva para este ou aquele caminho.

Sentido é uma ordem que se impõe ao que seria o caos, se o sentido não fosse procurado (Hoelderlin) ou se não chegasse a existir.

Abro uma das suas aulas, e está a definir para os alunos o que é um arquétipo. Define como subestrutura da consciência, esfera em que se foram somando ao longo de séculos, de milénios, os mitos e símbolos arcaicos que fazem o conjunto do que somos, como corpo individual e colectivo, social. Tudo nasce do corpo, desde os primórdios da civilização e da evolução até chegar ao Sapiens de quem descendemos. Somos seres biológicos, e até a consciência e as suas infraestruturas têm de materializar-se, por assim dizer, para serem reconhecidas e estudadas como são hoje em dia.

O sentido, de que se fala em Hoelderlin, a orientação e a ordem que é incutida ao sinal que o perdeu - somos um sinal que perdeu o sentido - só pode ser recuperado por via da integração dos arquétipos e sua dimensão mítica e simbólica, acumulação que se foi dando desde os primórdios da nossa existência como criaturas pensantes e capazes de socializar. Porque a primeira transmissão desses mitos, suas narrativas, foi oral, antes de ser remetida à escrita. Histórias contadas à noite, ao redor do fogo protector, do cozinhar da refeição. Histórias dentro de histórias, repetidas, contadas e cantadas, encantadas, sobrepondo-se umas às outras, até formarem o corpo de memória que se transforma em arquétipo, bem na base da nossa consciência primitiva.

Peterson recorre a Homero, recorre à Bíblia, ou aos antigos hinos da Suméria ou do Egipto, para aprofundar nesses textos a matéria primeira da nossa imaginação e da nossa capacidade de criar. Tudo enraíza nesse magma que é o inconsciente como subestrutura, antes de ser integrado na forma superior de um Eu que se foi sublimando ao entender o que se é. Na Kabbalah Deus diz, a dado momento: eu sou aquele que é.

Pergunta-se: o que é ser o que se é? O que é ser? O somatório de tudo o que foi e é desde o início dos tempos? Um Verbo que se fez carne para redimir o universo criado? (Apocalipse de São João: Ao princípio era o Verbo e o Verbo se fez carne e habitou entre nós), abrangendo por isso toda a matéria existente, humana e não só? (Deus ordena a Noé que leve para o seu barco também os animais, aos pares...).

Muita interrogação que nos é deixada.

Partindo do princípio que em todos nós, seres humanos, matéria criada por Deus, existe uma parcela, uma centelha da sua divindade, como devemos entender a afirmação de ser aquilo que é ?

Só poderemos ser algo de próximo àquilo que é se houver algum sentido para a nossa existência. E assim estamos de volta à primeira observação de Peterson na sua aula, com a importância que dá à definição de sentido (meaning). E o que é esse sentido, que em inglês também poderíamos talvez definir como purpose ( um objectivo, uma finalidade), uma vida com sentido, uma existência com sentido, uma vida realizada no âmbito pessoal, familiar, profissional, social, político (que é social) ou outro.

Mas não são equivalentes, se formos ver com mais atenção. Quando Hoelderlin escreve "somos um sinal que perdeu o sentido", esta vida, este sinal, pode muito bem ter alcançado o seu objectivo (ser Professor, ser Político, ou Escritor) e ter perdido o sentido. De quê? Daquilo que é, da divindade em nós, criaturas que somos de Deus que nos criou para materializar a sua própria consciência de existir.

Para se ter a consciência de ser ( e do sentido de ser) é preciso ter a de existir? O Deus da Kabbalah, tão assertivo, necessitou do Jeová do Antigo Testamento, no Livro de Job, e do questionamento de Job, seu fiel devoto, para se conhecer a si mesmo enquanto divindade que é, e manifestando-se existe?

E o que é a existência, de que um Jean-Paul Sartre fez toda uma filosofia? Existir é o ser em manifestação materializada? E onde fica o sentido, do sinal que somos, no dizer do poeta? Só o sentido preenche a existência? Daí que se fale negativamente de uma existência (coloquialmente uma vida) sem sentido? E finalmente: a existência, manifestação do ser? (sein und dasein? ser e estar?)

O gato de Alice, que é o gato de Schroedinger, que ora está ora não está, deixa de ser o que é quando não está?

E continuando a ser, será para lá do espelho? É aí que estará? C.S.Lewis a jogar connosco às escondidas...

Y.K.Centeno

Lisboa, 8 de Dezembro, 2021


Friday, December 03, 2021

CHARTERS DE ALMEIDA

Recebo como prenda de Natal antecipada um belíssimo livro de Artista, de João Charters de Almeida, amigo de longa data, e cuja obra, no domínio da escultura e outras áreas tenho seguido ao longo do tempo.
Deu-lhe um título: O FUTURO É O PRESENTE SEM TEMPO ?
Pelo título se revela o pendor filosofante que na sua magnífica PORTA DO ENTENDIMENTO, erguida em MACAU, já se antecipava.
Charters de Almeida tem uma cabeça sempre em movimento que procura na obra realizada, ou projectada (como aquela que ainda só existe no presente do futuro) o entendimento do impulso e da essência da Arte, como absoluta necessidade na vida do criador.
A obra de arte é intemporal, na medida em que ao corporizar-se materializa um tempo, o do momento, mas também o TEMPO, na sua essência ou na sua dimensão de mistério universal. 
Ocorre-me, como aconteceu com Heidegger, nas aulas que deu sobre O QUE É PENSAR, seminários de fim de vida, que o que se procura, no impulso do pensamento, é o que nos diz um poeta ( e aqui temos a poesia a iluminar o pensamento, a existência, no mundo), HOELDERLIN, no seu hino à MEMÓRIA: MNEMOSYNE. O que nos diz, no seu verso que o filósofo cita, para enquadrar o impulso primordial que nos leva a pensar, e a outros a criar - seja poema, seja pintura ou escultura ou composição musical - é que " somos um sinal sem significado / não sentimos dôr e quase / perdemos a língua na distância / ...é longo o tempo mas consegue alcançar-se".
Não podia encontrar melhor enquadramento para este livro de pensador que é o de Charters de Almeida do que esta citação de um poeta que inspira o filósofo de SEIN UND ZEIT, o SER e o TEMPO.
As páginas que introduzem o negro como suporte do branco da escrita, no livro, para além da dimensão estética conduzem-nos a uma reflexão de que Jung gostaria, a da completude que negro e branco formam, sinalizando um Todo que se espera, num tempo longo...
e cito:
O HOMEM
 É
A SUBLIME
CONTRADIÇÃO
DO 
UNIVERSO ?

e em continuação da busca da consciência de si, do significado (perdido?) do sinal que somos, desse mesmo universo:

SOU PARECIDO COM:
A MINHA MÃE
O MEU PAI
COMIGO
CONTIGO
COM QUEM?

Jordan Peterson, psiquiatra hoje em dia muito citado, junguiano assumido, com um toque de alquimista que escandaliza os menos cultos, define a condição humana como um somatório de sensações e emoções que se materializam no todo que pode ou não levar a que se materialize em obra de arte. Para tal tem de haver uma consciência de si, do outro, do mundo que subtilmente espiritualize o significado do sinal que afinal todos somos no universo (o Tempo) criado.
Não cabe no breve espaço de um post o comentário a todas as reflexões, desafios, pensamentos com que Charters de Almeida neste livro nos deixa. O que é bom. 
Cabe ao seu leitor virar as páginas, parar  e escolher na sua íntima relação com os versos, que mais se aproximam do conceito dos Haikai taoístas, aquele que a si mesmo pode iluminar, numa relação com o seu inconsciente agora revelado. 
É o Tempo, que sendo longo, acaba por nos tocar. E concluímos, como ele faz no fim do livro: "A minha sobrevivência é o acto criativo".

Friday, November 19, 2021

Nuno Félix da Costa, na ed. Companhia das Ilhas

 Neste momento estou a ler os dois livros. Sabendo que o autor é poeta, com obra publicada, comecei com a Pequena Voz, Anotações sobre poesia. Uma escrita de reflexão descontraída, de forma aforística, sobre o que é poesia, ser poeta, escrever um poema movido por qual impulso. Não se decide ser poeta. É-se poeta, por isso se escreve. Mas de onde, no silêncio ou no turbilhão da alma se forma o primeiro verso? O autor é médico psiquiatra, mas para lá da ciência em que se formou, escreve, pinta, e não desdenha o ensaio como forma também ela de criação. É o que acontece aqui, nestes dois livros, e não há dúvida de que a forma que escolheu, de ir dizendo o que lhe ocorre, ao sabor da mão, partindo de leituras feitas, de filósofos como de autores preferidos nos desafia e leva a "pensar" mais longe. Gosto que me façam pensar - concordando ou hesitando em concordar - porque a leitura deve fazer isso mesmo, provocar quem lê, seduzir num verso, numa ideia, numa imagem. Algo que ao mesmo tempo nos distancie de nós, do que sabemos ou julgamos saber, e nos abra algum novo horizonte, racional ou emocional. Com Nuno Félix da Costa estaremos mais no domínio do emocional, enquadrado em pensamento filosófico, de onde parte, com uma referência que parece casual, ou a que chega, no seguimento do discurso. Há uma preferência pelo pensamento alemão, o que não me admira, uma vez que ele escreve pensando o próprio pensamento, no acto de poetar e reflectir sobre o que é poesia. Um pouco como fez Heidegger, no último Seminário que deu ao regressar à sua Universidade de Heidelberg, depois de perdoado pela sua adesão ao nazismo de Hitler. (Escrevi neste blog um post sobre essas lições de fim de vida, Was ist DenkenO que é Pensar, que abrem com uma citação de Hoelderlin no seu Hino à Memória.

Há algo de semelhante aqui, entre Heidegger e Félix da Costa: a interrogação, que busca resposta (a possível) a começar pela filosofia grega, os pré-socráticos, até aos mais modernos, como um Schopenhauer, no seu tratado sobre O Mundo como Vontade e Representação. No caso de Nuno Félix é feliz esta alusão que faz: da vontade nasce o impulso, o poema será a representação. Porque não há realidade objectiva no poema, há expressão (representação) de uma emoção sentida. Vem à memória o célebre quadro de Magritte, do cachimbo que tem por baixo a frase ceci n'est pas une pipe. Não esperemos pois que na poesia, no acto de poetar e escrever um poema nos devolvam o real. Não é disso que se trata, é do contrário, de dar a ver uma parcela de emoção, de sentimento, de imaginário que só ali se encontra, no poema. Por isso Heidegger, o grande pensador do Ser e do Tempo, Sein unde Zeit, é em Hoelderlin que encontra a primeira inspiração, nos belíssimos versos de Mnemosyne : "somos um sinal, sem sentido / sem dôr e quase perdemos / a língua na distância".

Trata-se, no poeta alemão como aqui, em Nuno Félix, de recuperar ( ou de buscar) o sentido desse sinal que somos, e dessa "língua", perdida na distância, mas que permitirá, uma vez alcançada, exprimir o sentido do que somos, o Ser no tempo dado. Poesia para um, como em Rilke, nascida de emoção e de impulso forte, pensamento em Heidegger, algo de mais elaborado, pois procura "sistematizar" o pensar de cada um,  a começar por ele próprio.

No capítulo 2 das Anotações, Nuno Félix embora sublinhando que " são difíceis de imaginar os primeiros tempos da poesia quando tudo estava por dizer e as palavras eram paisagens paradas com regatos, bosques, veados, rouxinóis. Eram pastores que se apaixonavam e faziam soar as flautas nas encostas dos montes onde ninguém os ouvia". Surge à ideia um Orfeu, figura emblemática por excelência do amor e da poesia eternas. Numa linguagem metafórica, própria de um poeta, diz ainda "Não havia palavras para as coisas leves do pensamento nem para as cores das nuvens do fim de tarde nem para as vibrações do corpo quando não sabe o que quer. Os poemas eram relâmpagos que não encontraram as palavras, ecos de sorrisos no contentamento dos prados quando os amantes emudeciam entre beijos, mas nada do que acontecia ultrapassava o que podia ser dito e, por isso, a poesia carecia de profundidade como reflexos num charco quando, após um aguaceiro matinal o sol irrompe e faz as coisas aconteceram" (p.11). 

O autor não ignora que nessa aurora rosa da linguagem primordial a poesia " era a única linguagem: a da memória, dos mitos, dos costumes, das crenças, das normas, mas também a do desejo, da angústia, da aversão, do medo, num mundo mal compreendido" (p.11). Estaremos aqui com a obra de Homero, que tudo recolheu.

Mas as anotações vão seguindo de reflexão em reflexão, de forma ora mais livre ora mais condensada, lembrando Rochefoucauld, ora em parágrafos mais alargados ora numa única frase incisiva onde podemos ver como o seu pensamento sobre poesia incide muito no sentido do que se diz, recusando o sentimentalismo, o supérfluo, o redundante da auto-satisfação contemplativa - algo que Rilke nas suas Cartas a um Jovem Poeta não deixa de fazer. A poesia é uma escolha de vida ou de morte, e só na consciência do que isso representa se pode vir a ser poeta. Sobre o poeta diz, a páginas tantas: " o estilo é a sua presença na obra" (p. 177). Aqui podemos perguntar: existirá estilo sem sentido? O que foi o programa dos surrealistas, a escolha do cadavre-exquis como exercício de grupo, o Manifesto futurista senão uma tentativa de abolir estilos, para alcançar uma nova liberdade de expressão, desconstruindo, abolindo normas por demais gastas? Dir-se-á que nesses novos caminhos que o Modernismo abriu, em cada artista (poeta, pintor) se verá um estilo, que é seu, a sua marca distinta de autor. Imitando um pouco o nosso poeta, recordarei Boileau: le style c'est l'homme - o estilo é o homem. Mas esse era o tempo da racionalidade cartesiana, e continuando a ler descobriremos que Nuno Félix prefere Spinoza a Descartes. Há nele uma atenção especial, um apelo da natureza, dos sentidos, para lá do sentido que a linguagem, poética ou outra, filosófica, nos conceda. 

No outro livro que leio, A Clínica e a Patologia dos Sistemas, mais recente, por um lado o médico torna-se mais presente mas o prazer da escrita solta permanece  e com ela a presença do corpo (não é por acaso que se fala de patologia e de sistemas).

A edição é cuidadosa, tendo antes de cada capítulo uma gravura que é colagem do autor, e em que o ambiente Goyesco ( o negro, os pesadelos da noite) ou o das tábuas de Bosch, prevalecem  com formas disformes, rostos de pavor, uma dimensão onírica que será abordada no decurso do ensaio. 

Podemos ver pelo Índice que estão presentes, em conjunto, a clínica e a cultura. E esta abordagem será por certo o que confere a este estudo uma dimensão diferente das habituais, no tocante à medicina, às suas práticas, e ao comportamento de alguns médicos do sistema, que Nuno Félix não se coibe de censurar  com alguma acrimónia. Evoca, como é natural, Hipócrates, a dimensão ética do juramento, e o que considera desvios actuais de práticas que ignoram o corpo, a dôr (que é também frequentemente da alma) e não se resolve apenas com a prescrições de algumas drogas. 

As colagens que antecedem os capítulos, é para isso que apontam: a deformação dos sistemas, perante a deformação tremenda da condição humana.

 Pode a cultura (filosófica, artística) de algum modo ajudar ? Eu concordo com o autor, a Arte (literária, pictórica, ou outra, a música, a dança ou o teatro) é salvífica. Freud sabia, também ele se interessou e analisou um célebre quadro de Leonardo da Vinci, descobrindo na posição do braço de Santa Isabel algo de um movimento que ele viu como alusão sexual. Mas temos no seu discípulo, depois dissidente, Carl Gustav Jung, uma verdadeira recuperação, seguida por Marie Luise von Franz, dos mitos arcaicos e dos símbolos de várias civilizações, de tradições populares, como nos contos de Grimm cunhando um novo conceito o de inconsciente colectivo, que Freud não aceitava. Podemos seguir a correspondência de ambos, em que discutem as suas diferenças, até ao rompimento final. Nuno Félix, ao valorizar como vai fazendo ao longo deste estudo os contributos de filósofos e criadores aproxima-se mais de uma visão junguiana, embora não a refira, do que do nosso pioneiro e brilhante Freud.  Félix fecha o livro com uma reflexão sobre o que é tratar. Conceito que não tenho competência para abordar mas que me faz também a mim reflectir sobre a importância do amor, do carinho, da presença generosa e disponível para o outro, que pode ser uma criança, um adulto, um idoso que se entrega com a esperança de ser curado e salvo. Freud já dissera a Jung, com alguma frieza: nunca os poderás salvar a todos... é bem verdade. Mas basta que se salve um para que a profissão de médico já se valorize.

O livro vai contudo para muitas outras paragens. E a mim, o que é natural, seduziu-me em especial o cap.8, sobre a medicina e a arte. Já nas Anotações eu tinha referido  o gosto pela escrita livre, de associação fragmentada ao modo dos aforismos, reflexões que surgem, não necessariamente por ordem, mas só por movimento interno de pensamento. Aqui acontece o mesmo, e o leitor fica à vontade, pode seguir ou ir escolhendo este ou outro momento que lhe diga mais ao entendimento, ou ao conhecimento ou mesmo à descoberta de novas realidades e emoções. Porque se descrever um crise de sofrimento emociona, a arte não emociona menos. Com algo que é importante para se poder continuar a viver: a contemplação da Beleza, o belo tão esquecido por vezes de um Platão que não se lê. No capítulo 6 sobre "incorporação do corpo", p.127, o modo como são criticadas modas e deformações e excessos, esquecendo o todo, ou um todo que é o corpo -terá Nuno Félix lido Paracelso, embora não o cite? Este foi o grande precursor nas suas obras de um visão que hoje é recuperada, por inclusiva, abrangente, não descurando os valores da alma, que na alquimia o mercúrio representa. E quem diz Paracelso diz Cornelius Agrippa, inspirador de Goethe ( o célebre cão que o seguia, fazendo constar que seria de um diabo, como acontece no Fausto).

Mas medicina não é magia, embora se exija dessa arte (termo que Félix rejeita), ou dessa ciência que possa e deva ser um olhar para o todo do ser humano, e não apenas para este ou aquele órgão de que haja queixas. Cito: "n.58 As coisas mais importantes para uma pessoa , não são as rotinas e o estado do corpo, mas o que a pessoa atinge, o que compreende o que realiza. Não são o como se exprime, mas o valor do que exprime; não são as sensações do corpo mas a representação (eis-nos com a representação, inevitável no pensamento ou na arte, como já se referiu) e a compreensão do mundo a partir da qual planeia e organiza a sua vida. O mais importante não é a mão que escreve, mas o poema que resulta". A criação artística, por outras palavras, manifesta-se pelo todo, e assim adquire a sua dimensão universal.

Vou então para a minha área preferida: a importância da arte na cura, ou mesmo na salvação. O autor refere os médicos (e de facto são muitos, penso em Namora, em Torga, só para dar dois exemplos) que exercendo a sua profissão praticam a seu lado, e se calhar com mais felicidade a poesia, a pintura, a música, que lhes preenche a alma. Os exemplos escolhidos no ensaio (que abre com uma colagem onde surgem entranhas e esqueletos, as vísceras da alma? Uma alma que o artista envolveu nas danças da morte medievais?) são muitos, revelando uma grande cultura literária. A demora nos alemães, como já sucedera com os filósofos - Schopenhauer, Hegel, outros - fá-lo escolher Gottfried Benn: "26. Por que escolheu Gottfried Benn a patologia forense? Para decifrar as condições da morte ou para observar a própria perda da morfologia da vida?(...) Em certos poemas sente-se ser a poesia que apela a imagens e vivências que só a experiência clínica e anátomo-patológica lhe poderia proporcionar" (p.184).  De um G. Benn mórbido nas escolhas, passa de repente o nosso autor para um grande, na minha opinião mais interessante, sem dúvida, do que Benn: fala de Rabelais. Leitura de paixão foi para mim o livro 5 da sua obra. Mas a lição de Rabelais que mais seduz, e também neste caso, é a utopia da Abadia de Thélème, que tem como lema "fais como voudras" - faz o que quiseres. Para um jovem que melhor lema, que maior prazer do que seguir na vida aquilo que lhe apraz? Mesmo com riscos. Rabelais, tal como Nuno Félix o entende, estudou e entendeu o corpo humano, a condição que no sacerdócio o espiritualizava e que Rabelais troca-o pela medicina, que do corpo nada rejeitava, "até o mais repugnante e o mais obsceno" (p.185). O convento de Thélème albergava homens e mulheres, "livres, pândegos, estudiosos e bons garfos, notável precursor do comunismo anarquista". Aqui terei de discordar, nunca o comunismo aceitou o anarquismo, nem a anarquia, o seu modelo nunca poderia nascer de Thélème, que antes recuperava, mas ao modo renascentista, a libertinagem dos Monges Vagantes da Idade-Média, bebendo e cantando (algumas das canções estão nos Carmina Burana). Continuando ainda com a reflexão do autor, ele conclui que foi a medicina que lhe forneceu um corpo de conhecimento que ajudou a prolongar o seu humanismo, e lhe permitiu praticar uma moral laica, naturalista, que se descobre na sua ficção (p.185). 

Não cabe no espaço de um post a análise mais detalhada de cada autor citado: deixo alguns dos nomeados: Schiller, Tchekhov, Conan Doyle, Keats, André Breton, que também estudou medicina, embora sem chegar ao fim do curso, que era de neuro-psiquiatria. É como se diz aqui, " um caso interessante de cruzamento da medicina com a literatura e a arte" (p.186). E sem dúvida que a essa formação se deve a sua doutrina do surrealismo, da associação livre que informa a sua obra, do gosto pelo cadavre-exquis, e da sua vocação de activista social e político (um precursor neste campo) Nele sim, encontramos o apelo à anarquia libertária, criadora ( e que ao contrário do que se possa pensar, não era do agrado de Freud, estudioso, e severo conservador).

Continuo com Nuno Félix, que percebemos que gosta mais de Breton do que os outros citados: " O mérito de Breton foi trazer para a literatura e para a arte uma abertura ao irracional que, na época, surgia de vários cantos da Europa, e que a obra de Freud divulgou. A noção de inconsciente e de associações livres de ideias como meio de exploração desse inconsciente no qual alguns sintomas enraizavam (...) Breton analisou de perto os doentes mentais apreciando também o valor estético da sua escrita. A loucura, que sendo ela própria um sintoma, parece levar as figuras da linguagem poética a um limite surpreendente. Este irracional que resulta do descontrolo do pensamento na doença, ele tornou-o o núcleo da escrita automática surrealista".  (p.187)

Assim podemos continuar a ler este estudo, que percorre muitas vias, de ligação da clínica à arte, e despertará, na variedade e formação dos seus leitores, um interesse especial, concordante ou discordante.

Mas é mais de discordância que surgem novas ideias, que farão avançar a ciência e a arte...ficarei por aqui.




 

 

Thursday, November 11, 2021

Ana Marques Gastão, A mulher sem Pálpebras, ed.Letras Errantes, 2021

Como sempre, um livro muito aguardado, a aumentar a já obra notável de uma escritora, poeta, de obra notável  em vários domínios. 

Pego nos seus livros com pinças, pois a imaginação, a par da subtileza que ora revela ora discretamente se apoia em enorme cultura, conhecedora da poesia e das artes, do melhor que se pratica e dá a revelar no nosso tempo, assim me exige. Nadamos em águas profundas, ela e eu, e esta afinidade também me torna mais exigente. Ana lê e escreve por dentro, e neste conjunto agora apresentado a novidade, o gosto de nos surpreender é uma constante, bem conseguida.

Reflicto no que descubro na escrita, de associação livre, onírica por vezes ao gosto de um surrealismo que ela retrabalha, renova, recupera - exemplo para quem julga que tudo foi ultrapassado, ora o que é bom nunca é ultrapassado, mas sim fonte de inspiração. 

São várias as personagens que em dez actos vão surgindo ao lado de uma Libbie, a mulher sem pálpebras que logo por esse facto, inusitado, nos convoca a um mistério e a um novo entendimento do que pode ser a relação com um eu forçado a tudo ver, e entender, se possível, tanto em si como nos outros, no mundo à sua volta, em toda a sua variedade e complexidade. 

Um cego vê porque pressente, apura novos sentidos. Mas quem não é cego e tudo é forçado a ver, como reage? sofrendo, ou inquirindo, inquirindo sempre até aos momentos de maior exaustão e loucura?

Libbie escolheu - sem saber para onde- seguir o Espírito. Mas que poderá ela descobrir, ainda que de busca incessante, ou mesmo delirante, nessa força feita de energia invisível? Será quem sabe nos vários desdobramentos de outras personagens com que se cruza? Cada qual mais surpreendente, nesses vários inesperados cruzamentos? Saber não será preciso, mas sentir sim: a pulsação, o ritmo, quase poético, nas trocas, nos diálogos, ou nas exclamações que nos deixam em suspenso.

Esta não é uma prosa de explicação e clarificação, é uma prosa de libertação sem peias, corre o sonho, corre a associação livre de ideias e de situações, que nos empurram na leitura para ver, pelos seus olhos despidos o que ela vê e só mesmo ela pode contar.

Num dos capítulos iremos encontrar a meditação de um Rilke lido e relido, e que nos confronta com a absoluta necessidade de falar ou calar para sempre: prosa para o cesto de papéis. Ou então de assumir uma entrega absoluta e que sabemos mortal.

Os Anjos matam, no fogo do seu abraço, cegam-nos, disso fala Libbie, e retoma sua lição "amar é deixar ir". 

Mas é possível amar quando os olhos que tudo sabem ver e sentir, assistem ao contrário, num mundo tão imperfeito? Ana- Libbie deixa-nos em suspenso. Há que ler, para ver mais.

Encontramos, noutros capítulos, a continuação de uma "imaginação activa" como Jung gostava de chamar, em contraponto à ideia da folle du logis : não é loucura que tudo confunde em delírio, mas é imaginário que associa e recupera, seja um Rilke, uma Clarisse Lispector ou outro autor de dimensão universal, Virgínia Woolf, para só escolher alguns que passam, com as suas marcas, pelas associações que vamos descobrindo. Ana é uma grande poeta, uma grande escritora, de grande cultura, filosófica e literária. Há ideia e pensamento elaborado em tudo o que nos dá. Assim passamos de uma situação, de metáfora surrealista a um modo tibetano de vivência, como no 5 Acto:

" A mulher tibetana diz a Libbie para ouvir com a voz da alma: 'sente o meu olhar fixo, olhar de mãe em banquete de vida (p.57). Pensa de ver e não de pensar, pensa de sentir. Ou melhor, clareia as ideias, as do baú (Fernando Pessoa? ). Sente a dualidade, escolhe. Senta-te na rosa." (Dante? Rilke de novo?) E muito adiante, diz ainda a mulher do Tibete: "Põe as letras a dançar".

Assim dançam arquétipos, símbolos, imagens de um puro inconsciente colectivo que a autora personaliza em Libbie, que ora exprime o que vê, ora associa formas inesperadas, figurações que vão de um crocodilo-mãe, como nas sagas dos deuses egípcios a um cosmos de cristais luminosos.

Este imaginário, literário e simbólico, carregado de marcas culturais de suporte filosófico nunca negado, é o que torna este livro uma leitura tão surpreendente e desafiante, no conjunto das obras da autora.

II

Uma leitura mais aprofundada mostrará que para além das referências literárias há um bestiário simbólico,  bíblico e alquímico até, por vezes, que amplia um sentido da narrativa que de outro modo passaria despercebido. Irei de capítulo em capítulo, atravessando o discurso ora apaixonado ora reflexivo, ondulando como as ondas do mar que afogam corações, da nossa Libbie-a heroína que de olhos impossíveis nos dá a ver o que pensa ( o mundo Espiritual) e o que sente, o corpo que se entrega ou se recusa. Logo de início, temos uma descida aos infernos, o reino de Hécate, que com uma flecha lhe atingiu o coração. Não é despicienda esta "descida", pois marca a presença da treva, a assunção de uma fase de nigredo, o negro da alma que pode vir a ser caminho de mutação. 

E na verdade, de acto em acto, assistiremos a uma espécie de " drama em gente", de multiplicação de vozes, de situações, de diálogos interrompidos a que só Libbie vai devolvendo sentido, por via de uma imaginação "que não lhe falta". Não nomeia o temível Cerbero, mas quem sabe, sabe que ele está ali, no reino oculto. Há um Anjo "zangado" evocado adiante, um gigante-fera, um homem-peixe, um monstro marinho. Entrámos no sub-mundo do inconsciente, onde se forma o nosso imaginário, nos acordam arquétipos e símbolos, entre o espiritual e o material mais espesso. Lembro os Cantos de Maldoror, de Comte Lautréamont. Não temos o tubarão-fêmea, que ele desposa, mas temos "um polvo agarrado às rochas, esbracejando como um chicote de medo". O medo é uma reacção contra a qual se lutará. A presença da água, em muitos momentos, evoca o primordial mundo dos elementos. Teremos fogo, o da paixão, mas sobretudo água, a da dissolução. Assim nos surge a serpente "do outro lado", evocando, com a água, o elemento terra, a materialidade que precisará, de olhos bem abertos, de ser finalmente sublimada. Ana-Libbie usará da sua voz, da multiplicidade dos nomes e palavras, para tal exorcismo. Será fiel à "metáfora", que prefere, e por ela entra no domínio do surreal e da prática de um surrealismo inovador e próprio, que só ela domina. Ainda aqui surge o gato: enigmático, hierático, figuração do seu desejo de um Todo primordial.

Passemos ao II Acto

"Saber ser escuro, antes da luz..."

Aqui surge um homem sem umbigo: o centro do mundo, ou o despojamento de todo o egoísmo? E de novo o negro, "como um peixe escatológico: sem violência (não será Tiamat), "sem domínio, sabendo escolher". E uma referência em língua que Ana conhece e aprecia: "Nachtsseite": o lado da noite. Ainda por enquanto, a nigredo.

Adiante, a metáfora de um cão, "com pêlo que se solta e invade tudo, até que o nariz rebente nas montanhas sedosas dos invasores. Nada muda". Partiu para outras paragens, o discurso. Importante é fixar que nada muda. E em itálico, "é preciso parar e voltar para o interior".  Mas para isso subir a montanha, tão emblemática ou mais do que a água do mar. Exemplos que nos acorrem, Thomas Mann, Robert Musil. A divagação literária vai conduzir-nos a outras evocações: Celan, com o mínimo é o mais difícil, resposta a um verso em que o poeta diz, menos é mais. E não esquece o grande Hoelderlin, o que busca o sentido que se perdeu, e define o destino da vida humana neste mundo. 

Visita-se o antigo Egipto e dele se evocam os cães, deuses como Thot, o sábio dos alquimistas. E adiante outras imagens, borboletas nocturnas, asas da sublimação, como as dos Anjos que nada dizem.

Chegamos ao III Acto, com Rilke e a impermanência de tudo... com a impermanência, regressa o elemento água: " Já conheço de cor o som da água (diz Libbie) a que entra em túneis pelas artérias e se funde com o sangue numa existência murada". Os muros caem pela evocação de outros, o outro que toca em nós, alimenta o nosso imaginário, que tem de ser ampliado para melhor existir. Surge Clarice Lispector, no discurso de Libbie, A paixão segundo G.H., e a experiência das baratas, fio da meada de uma experiência de quase alucinação: "afinal as baratas têm óculos", diz. E adiante, de novo o negro de que não se saiu ainda: " o ruído do escuro por onde avança o cavalo negro como um corvo". A imagem do corvo é significativa, surge em muitos tratados de alquimia, em Basile Valentin, por exemplo, e é a marca de um negro que tem de ser transformado, transmutado, até chegar a um branco perfeito. Entretanto, neste mesmo Acto, surge de novo a serpente: ouroboros? a que morde a própria cauda, simbolizando a roda do universo? Ou a de Goethe, serpente mágica, dadora de vida e erguida em ponte de união das duas margens de um rio que será de perfeita união? Ana saberá dizer. Aqui torna-se divina. Pelo contrário, a imagem do camaleão não tem nada de divino, tudo de camuflagem e traição, espécie de regresso à dificuldade de entender e aceitar o outro, de preferir o silêncio ou a mentira. A mentira, o disfarce, alimentam o desejo, a sua efemeridade. 

A autora deixa-se levar pelo prazer dos antigos filósofos que foram os primeiros a descobrir e locubrar sobre o fenómeno da consciência, que ainda hoje em vários campos nos intriga, e se vai estudando, como faz Ana, nestes passos da sua obra. Assim surge, na experiência nunca esquecida da água, " o cavalo-marinho de Homero " fonte primordial de mitos que nos alimentam ainda. Mas adiante, à medida que os Actos se vão seguindo, veremos como o despojar das palavras acompanha o desfazer do corpo, os olhos, as mãos, o apelo da música, a articulação dos sons que rompem as cordas do violino, e um discurso que recorre a associações livres, a vozes outras que interferem na relação mais seguida e sempre interrompida com Matias, o interlocutor preferido de Libbie.

São 10 os Actos do livro, como nos Lusíadas de Camões. O 10 tem uma carga especial, pois será na Kabbalah o Um intensificado. De Acto em Acto vão sempre surgindo marcas de figuração animal, que posso alinhar para ir abreviando este post: o polvo e a Medusa, p.49, insectos, p.50, borboletas, crocodilos, p. 57, cães, p.61, besouros, chocos. p. 65, roedores, esquilos, peixes, borboletas, p. 66, um ovo de gansa, p.68, lobos, rãs, p.71, cães, p.72, caracol, p.84, melro, p.85, sereias, p.92, uma pantera, p.104, abelhas, p.112, - um conjunto que é intercalado numa narrativa que se constrói pelo meio de um pensar filosófico, de um imaginário literário e artístico (percorrendo também pintura e música, de contemplação e vivência) que teremos dificuldade em classificar. Não terei aqui tempo de referir toda a simbólica alquímica contida nestas imagens: o cão, fiel companheiro do adepto, na Atalanta Fugiens, ou as abelhas, figuração dos adeptos, bebendo o mel da rosa (a sabedoria) no tratado de Basílio Valentino: dat rosa mel apibus. Rosa que é por certo a de Dante, ou quem sabe a de Rilke, de quem já se falou.

 A autora não pretende que a classifiquem, mas sim que a entendam numa busca que é de matéria e espírito, de corpo (dilacerando-se ao longo da narrativa) e alma que se vai libertando, sublimada,  num mosaico em que muito do dito e do não dito se acumulam, fazendo lembrar uma pintura de Bosch, o genial precursor de todos os surrealistas que Ana conhece bem. Uma escrita que alguns dirão a-lógica mas que se assume como tal. A mulher que tudo vê amplia um espaço que radica também no invisível, e altera para sempre a sua relação consigo, com o outro, com o mundo em geral. Algo que se consegue tendo absorvido muito, tudo, do Todo universal de que fazemos parte.


 

  



 

 



 

Wednesday, November 03, 2021

Crónica do Quotidiano Inútil, de J. Chrys Chrystello, ed. Calendário de Letras

Recebo, com alguma impaciência do autor, o livro demorou mais de 15 dias a chegar, esta crónica que celebra os seus 40 anos da vida literária, começada em 1971 e durando até estes dias, a última data que leio é 2012.

É um belo volume, de belo design na capa e na concepção gráfica, com fotos e ilustração no interior. É agradável, para um leitor, ter na mão um edição cuidada.

A conclusão a que se chega, à medida que se avança, é que nada foi inútil no quotidiano descrito pelo autor, muito pelo contrário: os dias estão marcados por viagens e memórias que os poemas conservam e devolvem, em estilo ora mais evocativo (pelo momento em que são escritos) da revolta e da originalidade quase agressiva de muito da década de setenta, até à descrição, quase de narrativa realista, de um país que se prolonga para lá do continente, nos Açores, em primeiro lugar, mas de Macau, por exemplo, por onde se deambula, ou como depois se divide, em planetas poéticos de anos sucessivos: planeta Chrys ( o seu mundo, com Daniel Filipe, grande poesia), planeta Macau, planeta Timor, planeta Galiza, planeta Açores (iremos ver Natália Correia, a Grande voz do nosso e de outros mundos), um conjunto maior, recuperando Eduíno de Jesus, poeta que conheci como colega na UNL, e com quem se prepara um final expressivo. 

Retomo o final dum poema que quase resume o que é a experiência, ou a vivência, deste autor:

cantarei o arquipélago da escrita

sem títulos nem honrarias

sem adjectivos telúricos

sem versos de rima quebrada

não é açoriano quem quer

mas quem o sente. 

(p.222)


No fundo, como a Modernidade já tinha proposto, e evoco o grande Vitorino Nemésio, como poderia evocar Fernando Pessoa (que a todos nós marcou) o que se pretende é alcançar um novo discurso, despojado, que pulse ao bater do Sentimento, mais feliz ou mais desesperado (Antero de Quental), o sentimento de que todo o poético é real, e imaginária é a vida, o quotidiano que se definiu como inútil. Do início da década de 70, e dos exercícios de associação livre, de inspiração surrealista, até à mais recente, reflexiva e moderada, vai um longo percurso, que um bom leitor gostará de acompanhar. Viajar pela mão de um poeta por dentro dos seus países é uma experiência única, e que nos ajuda a crescer, a ampliar o que somos. 


Saturday, October 02, 2021

As Pedras de Sérgio Ninguém, ed. Eufeme, 2021.

Guillevic, o poeta das rochas imensas da Bretanha, batidas pelo mar, que David Mourão-Ferreira nos trouxe outrora a Lisboa, foi talvez a minha mais antiga memória do trabalho das pedras no imaginário de um grande poeta, com quem tive o privilégio de conviver, por uns dias. Tinha a força de um rochedo, o das suas convicções, naquele tempo tão estranhadas em Portugal. Vivia-se sob um manto, o do medo: e ele mostrava que não havia razão para ter medos, havia que ser forte, e lutar. Entretanto já eu andava à voltas com a secreta alquimia, a sua Pedra filosofal, cuja abundância de nomes como nota Dom Pernety no seu Dictionnaire MYTHO-HERMETIQUE, nos guia" pela floresta das alegorias fabulosas dos poetas, das metáforas, dos enigmas, e dos termos bárbaros dos filósofos herméticos explicados" (ed. 1787, reed. Denoel 1972).

A pedra é dura, é rocha de terra, a pedra é agua, é agua de vida, é variegada de cores, ou apenas negra, ou branca, voa entre nuvens do ceu (e penso em Magritte, noutro post que já aqui publiquei), a pedra é fogo e ar - vemos agora como é verdade, com a terrível explosão que se dá no vulcão das Canárias, a pedra é morte e salvação. Seca e depois renasce.

O célebre Rhasis afirma: " esta matéria dissolvesse a si mesma, casa-se (leia-se funde-se) branqueia-se, avermelha-se, enegrece, fica  côr de enxofre, e trabalha sobre si mesma até à perfeição da obra.

Passo por cima das entradas, que são muitas, para as definições da Pedra e apenas sublinho que é, nas várias definições, sempre um trabalho que o adepto deve fazer sobre si mesmo, para sua própria sublimação. Ele será, se conseguir, a verdadeira Pedra desejada.

Falemos então da primeira das Pedras de Sérgio, na sua interrogação afoita: procura, ainda não sabe. Mas deixa na capa, como sempre em tudo o que faz uma indicação, uma imagem preciosa: o desenho de um cérebro, duas metades que um fino corte divide ao meio, o lado esquerdo e o lado direito, cada qual com os seus atributos emocionais our racionais a ser explorados. Na contracapa indica: vamos ser pedra, pedra mole e quente. 

O arranque para este exercício poético está no primeiro poema:

....

as árvores invertidas são raízes

vamos ser pedra,

 derreter a dureza, e ficar mole,

os rios são frios

os mares são espuma

 e as montanhas onduladas são camelos 

em linhas convergente distantes

e no deserto o frio nocturno

não aquece, recolhe.

Eis o desejo expresso, sem esquecer o fogo no chão que se vê da janela: "um rochedo infinito - uma pedra só!" 

Algo no decurso do poema deixa uma ou outra imagem de marca surrealista, como a do galo a cantar para baixo, o prazer ficando de lado a observar a intensidade de ser pedra. O imaginário livre começa a tomar conta da metade racional de um cérebro dividido, e cujo destino último, como hoje até a ciência admite, terá de ser o da fusão dessas duas metades, razão e emoção, num corpo ( a Pedra) único, que a experiência e a maturação da vida irão com a passagem paciente e aceite do tempo, permitir. O eterno lege et relege...et invenies.

De que modo chega o poeta ao fim do seu livro, tendo já atravessado tantas experiências? Firme na convicção de que as pedras são, como diziam alguns, "os ossos da terra". Dela nascemos e a ela regressaremos ainda que desfeitos em pó. A Pedra é o primeiro e o último princípio de um todo que celebramos sem o conhecer bem.

Num belo e desafiante poema (aqui entra o imaginário insubmisso do poeta) Sérgio fala das batatas cosidas pela mão de uma Penélope expectante: colar feito de amor, de paciência, quantas vezes se terá partido o fio? E esse colar? será usado? será por fim comido, pois a batata é ainda assim alimento? 

E chegamos quase sem querer ao fim:

....

um demónio e um deus,

vergonha do nosso conhecimento.

....

rebentar com todo o nosso entendimento, 

e ser livre. E no final?

- o fim...

Acabamos tendo provocado "feridas nas pedras", mas a ferida não é ainda o fogo que se acende e se deseja e espera, o fogo no coração da pedra, que poderemos ler em PEDRAS II, deste ano de 2021.

Mas não sem antes dar atenção ao mais esclarecedor de um dos poemas, em que se resume a novidade e a originalidade com que o poeta nos quer brindar É um brinde, nós pressentíamos, mas ele confirma:

 (o meu poema)

explodi com a métrica

 e com a normas rítmicas

construí tudo através de ruínas

sonoras e infernais.

Pedra II é um livro que temos de ler com cuidado, pegando nele com pinças, para que nenhum verso fique magoado.

O livro está dividido em três andamentos. Sugere que há uma estrutura harmónica, musical, a que se deve dar atenção. E como tem uma dedicatória de in memoriam, exigindo talvez  maior recolhimento, como se algo de um Requiem se pudesse ouvir por ali, no intervalo dos versos. os poemas tornaram-se, por vontade do poeta, "mais paradoxais" pelas imagens em que se vê "o obscuro e o brilhante, juntos", na fusão das metades do cérebro que no livro anterior estavam ainda tão finamente divididos. A busca é a mesma, da "pedra!".

Mas há uma modificação, importante de notar: versões alternativas ao verso que podia, mas nem sempre é, o verso definitivo:

(outra versão)

Vamos acender o fogo 

ao fundo da pedra

e a mim que o leio, neste momento crucial, quase me apetecia acrescentar "o fogo no coração da pedra". Porque a pedra foi terra e foi mãe parideira, outras pedras foram dadas à luz pela sua intensidade, esse fogo secreto, que a faz expelir verso após verso, o sentido que se procura. O Emblema II da Atalanta Fugiens, de Michael Maier representa isso mesmo: Nutrix ejus terra est. A terra é o seu corpo, e o seu alimento.

A pedra é o sentido que se procura. E agora com outra idade, é na infância das casas, dos lugares comuns da terra  que se pode encontrar. A noção do comum, da platitude de uma serra por onde se passeou em busca de segredos que já seriam de uma vida (uma procura futura) que se vai precisamente descobrir "o texto interior", esse mesmo que pode dizer a pedra.

Pela mão do poeta visitamos a casa, o espaço das infâncias:

A casa era alta:

 duas bocas de madeira; 

cinco olhos de vidro;

o cabelo de um fulvo exuberante.

As divisórias, grandes e plenas;

o chão de madeira, apenas.

A cozinha num cimento vermelho escuro;

o fogo

sentava-se num pedaço de chão 

mais elevado, ao canto;

três pernas, nos potes, que ferviam a sopa nas labaredas

do lume sentado

na melancolia 

daquela cozinha em pedra.

A casa era alta e nós ínfimos.

Aqui está todo um percurso de crescimento e de amadurecimento que só na idade adulta, vivida e sofrida, se pode enunciar e reviver, em versos de grande simplicidade em que a mera descrição do que se vê já nos diz tudo.

 Poderia ir pelos caminhos das versões alternativas em vários outros poemas, e isso teria aberto os portões de um outro imaginário: o do eterno possível. Mas as casas da infância ali continuam e pedem a nossa atenção: pois são de pedra, são a pedra  e a perda,  "uma ruína cheia de agonia".

Sofre quem cresce e adoece como se a vida fosse uma doença, que nos cura da veleidade de ser, para crescer. Nunca saberemos o que somos, nem o que viremos a ser. As sílabas do que escrevemos podem ser "os sílexes afiados que cortam / as sílabas / ao poema / e os pulsos / ao poeta".

Quando hesita, noutra versão que surge em rodapé, Sérgio escreve: "Apagamos os nossos vestígios".

Também aqui devemos ponderar o que é o caminho da pedra: não é brilho refulgente, como se julga, e sim apagamento. É o que faz, ao fim e ao cabo, em fim de vida 

o medo da infância

atada a um cordel.

Nos poemas é mais a água que dissolve, do que o fogo que endurece, que se constitui a essência deste novo ciclo poético. Mas também a água é elemento primordial, e desta dissolução se faz a pedra. Basta ver as gravuras alquímicas, ou as ilustrações dos códices medievais mais antigos, para se entender a lição que é dada. Dissolver é, a seu modo, regressar a uma pureza natural, desfeita, despida dos corpos que nela se unem. Deles nascerá um corpo novo e esse será o coroado. Terá o nome de pedra.

A luxúria das palavras, o seu excesso abundante, redundante, não terão aqui lugar, embora se possa descobrir, algures numa outra versão de rodapé, um resquício das mil e uma noites sonhadas e perdidas:

lótus perfumado 

nos húmidos

 lábios dela.

A água, o momento do êxtase em que a conjunção se pode dar. Mas também o fogo está presente, e no fogo, em fusão com a água, a união se dará. Jung escolhe uma bela ilustração desse momento numa gravura indiana que escolhe para o seu belo livro da Psicologia e Alquimia, que já tem tradução portuguesa.

Sérgio refere a "alquimia do nada" e o gosto insaciável pelo vazio. É o caminho  do budismo tibetano, e dos perigos que contém, para uma cultura ocidental como a nossa, que vive do fazer, e não do "não fazer", mas o caminho cada um saberá, a seu momento, escolher. Não há imposições.  "Metáforas cortadas ao meio" - é isso que afinal somos - diz o poeta, que na busca da pedra se despe e simplifica, é a terra que devemos escolher. A terra, sempre, pois nela as sementes crescem, " e a pedra é apenas um verbo". Tem variante: " a metamorfose de uma semente apertada". E é nessa imagem da semente-pedra que o processo se amplia. Na escrita como na vida. 

No Segundo Andamento, A Prosa (Moderato) não sei explicar porquê, ocorreu-me Comte Lautréamont, os Cantos de Maldoror. O autor não abandonou a pedra, tão procurada, mas escolhe agora a prosa, em vez do poema, mais livre, uma prosa intensa, concentrada, e alude ao medo que grita "a verdade definitiva: queremos ser pedra e nunca o somos". E surgem as imagens dos corvos ( o negro na alquimia), que "conhecem o caminho mas não o sabem. O preto das penas reluz: desconforto e nojo". Estaremos numa fase de regressão, que exige o esforço tão penoso do recomeço, assim descrito:

Na vida percorrem-se caminhos de pedra, o tempo todo, com corvos negros que nos interrogam constantemente.

Versos das páginas anteriores, como por exemplo pedra agora para mim!, ou

A pedra abra o mistério às palavras, só os pregos falam aos buracos 

fundos

 e vorazes

perderam aqui a sua magia. Nesta prosa que só os alquimistas teriam entendido, volta o negro, volta a vergonha de ter falhado a ocasião. Percorrem-se as imagens e os desvios das mesmas, "com o olhar do espanto".A esperança absoluta é impossível, avisa. E conclui:

Com o peito oprimido e negro  tenta-se caminhar por cima da respiração... uma entropia sem regresso.

A imagem do negro surge várias vezes como uma moldura que se tornasse infinita no quadro que é a alma: "Omissos, absorvemos contornos negros da matéria viva". E segue:

Queremos mas não podemos, afastar, a cegueira do nosso olhar, dos estilhaços da esperança. Ninguém vê nada e nada vê ninguém.

Ver é ser desigual.

Afirmação que muito nos faria pensar, se fossemos como Baudelaire, ou Rimbaud, ou Whitman, os desiguais do seu tempo, que Sérgio cita. Mas não, nós somos os do século XXI, sonolentos...autênticos calhaus normalizados pela existência asfixiada.

Cruel conclusão a que se chega, na travessia brutal do século que é o nosso, em que temos de viver, e assistir à descida aos infernos que é a vida na maior parte do mundo, embora pelo caminho se possa relembrar a simplicidade das antigas civilizações, dos povos primitivos já em busca da beleza que deixavam gravada nas pedras das sua grutas.

Mas não haverá regresso.

Ou haverá sim, um único possível, que o poeta agora para fechar o último andamento do seu livro, Allegro, nos descreve:

Era uma vez eu, naquela terra da infância, um lugar com nome de ave. Eu, na terra por dentro da criança.

Deixo ao prazer da descoberta do leitor este último conjunto, que fecha, com mão de guia verdadeiro, uma análise que um psicólogo não faria melhor, da casa, do quarto, dos objectos, das pedras, ou melhor da pedra.




 













Wednesday, September 22, 2021

 

 

Acordar

 Acordar é difícil,

à minha frente

não vejo um tempo novo

fecho os olhos mas é

um gesto fútil

porque não voltarei

já sei a adormecer.

 Cumpro então um ritual:

espreitar o Facebook,

ver o que se passa por ali.

Tempo perdido,

mas se não faço sequer

o esforço de o perder

o que farei então de tanto tempo

que do dia me sobra

e de noite me ensombra

porque nada de novo fui fazer?

 Definir o que é novo?

Na velhice adiantada

só o disfarce é novo

e tudo o mais é nada

me diria o poeta.

 Impossível amar,

pois já se amou demais

e ainda menos lembrar

o que passou.

 Assim vai indo o tempo

neste correr de vida.

Não foi desperdiçado,

mas é difícil viver

estando acordado.

 (22 de Setembro, 2021)