Sunday, October 19, 2014

The Black Book


ORHAN PAMUK
The Black Book, em nova tradução inglesa, de Maureen Freely.
Não há contraste maior, ler Pamuk a seguir a qualquer outro livro,  produto da nossa cultura europeia, ocidental. O nosso olhar lúcido, rápido, ao mesmo tempo próximo e distante, como acontece agora, no momento em que escrevo e posso seguir na televisão os progressos da guerra nas fronteiras da Turquia, os horrores do Ébola, a adiada condenação de Oskar Pistorius que matou a namorada, que fugia dele e se fechou na casa de banho para desgraça sua ( e dele?)-
Abro o livro de Pamuk e sou desde as primeiras linhas enredada num mundo que é todo seu, vejo pelos olhos dele, sinto e penso pela sua cabeça e coração. O alter-ego que surge na narrativa, debruçando-se sobre o corpo semi-adormecido ainda da mulher que ama já é, ao mesmo tempo, ele e outro. Um outro que será objecto da sua inquirição, com o qual se identifica por vezes plenamente, perdendo-se nele sem saber afinal quem é, se ainda é ele mesmo ou já definitivamente o outro que persegue.
Assim, na sua prosa de filigrana delicada, caminhamos, como caminhávamos com Proust (que ele cita) em direcção a um tempo perdido. 
Mas não totalmente perdido, antes recuperado pela constante intromissão numa narrativa que oscila e envolve, evoca e recorda como se ali mesmo no instante narrado estive diante de nós a acontecer. A tradutora chama a atenção, no posfácio, a uma particularidade da língua turca (que eu desconhecia e explica  muita coisa): não existem nesta língua nem o verbo ser nem o verbo ter. O que naturalmente levanta ao tradutor, e mesmo ao leitor, dificuldades acrescidas de entendimento aprofundado para encontrar o sentido verdadeiro, que pode ficar perdido entre palavras (lost in translation, como no filme..). 
Se na poesia algum mistério até pode ser mais sedutor, na prosa a decisão não é fácil! Mas esta tradução foi feita a duas mãos, por assim dizer e podemos ficar seguros de que é tão fiel quanto o autor desejou e a tradutora conseguiu.
Apesar de uma primeira ironia sobre as epígrafes, não devem usar-se porque estragam o mistério do que se vai seguir (Adli) no capítulo I, Pamuk abre cada capítulo com uma epígrafe, ora de autor antigo ora moderno - cita Proust e percebe-se que Pamuk é um escritor cuja narrativa tem muito de proustiano no envolvimento permanente com o tempo, ora passado, ora presente, ora entre um e outro - e cita também, já no capítulo 19, Lewis Carroll, Alice in Wonderland (obra que eu própria não me canso de ler e reler, revela um pensamento quântico inesgotável...) aquele momento em que Alice se interroga:
"Was I the same when I got up this morning? I almost think I can remember I was feeling a little different. But if I am not the same, the next question is 'Who who in the world am I ?' ".
Ora esta é a interrogação permanente que se traduz nas intermináveis descrições, minuciosas até â exaustão, do nosso narrador, cuja mulher desapareceu, isto é, saiu sem lhe dizer nada e não voltou, e que ele suspeita que possa ter fugido com um colunista que ele lia todos os dias, com admiração e alguma emulação, ao ponto de se confundir com ele, no que escrevia e quem sabe- esse é o ponto central- e no que vivia.
São um e outro ? São ao fim e ao cabo, o mesmo? no decurso da escrita? - Pamuk lembra que não há nada de mais chocante do que a vida (no capítulo II, epígrafe de Ibn Zerhani) a não ser a escrita.
Por uma razão que iremos acompanhando: na escrita tudo é possível, até o impossível que a vida não concede.
A escrita, única consolação com que termina a útlima página do romance.
Mas voltando ao princípio o narrador, o que salienta, após a descrição do olhar de Galip ainda meio adormecido, sobre o corpo da mulher estendida  a seu lado, a mulher que ama e de quem tem ciúmes, é simplesmente que ele se lembrava que aquele jornalista seu preferido,  Ce|âl, escrevera numa crónica que a memória era um jardim: Memory is a garden,(p-1). Logo Galip aproximou essa imagem da mulher, Ruya, e que esses seria os jardins de Ruya...
Pensar nisso era ser atacado de um ciúme que não conseguia evitar. Pensar nisso reenviava a sua imagem para os tempos felizes da infância em que sendo ambos crianças, ele e Ruya, passeavam de barco, com  as pernas fininhas lado a lado, praticamente idênticas como nessas idades são os corpos indistintos das crianças. Tempo feliz.
Desse tempo tão longínquo datava o seu conhecimento, convívio, aproximação, casamento...e agora havia um colunista Celâl, que Galip idolatrava, não prescindindo de o ler todos os dias, sonhando poder um dia vir a escrever como ele. Celâl que era afinal um outro que se intrometia na relação de homem e mulher que ali tinha sido apontada, no início da narrativa.
A narrative corre depois em torno da ida embora de Ruya, deixando apenas uma nota de despedida, quando em páginas anteriores, e sob uma epígrafe de Rilke, se tinha falado de "família". Sel ela não havia mais família, e a dôr dessa perda ocupará muito do deambular do herói, e da obssessiva inquirição do outro, o tal colunista admirado, emulado, Celâl...
Continuando a ler, apercebemo-nos de que gradualmente o Mistério de que o autor nos vai falando, bebido também nos grandes clássicos da cultura árabe, como as Mil e Uma Noites, ou as muitas lendas e pequenos contos moralizantes da herança turca, é um mistério que ultrapassa as memórias de infância, de Galip e de Ruya, e se desenvolve nas páginas de antigos manuscritos que o seu pseudo-rival, Celal, também teria lido.
Nesses folios antigos, roídos pelo tempo, ou nas páginas da transcrição recente , aí, na leitura, no entrelinhado de um alto pensamento, descobre o autor o peso da palavra, escrita, lida, transcrita, relida, viva - a palavra para sempre viva - que fará dele o que ele é : um escritor, com a paixão da escrita.
Um escritor que transpõe no que escreve o que a memória da sua pátria (sim, ele tem uma pátria cultural, ainda que atravessada por dois lados opostos, como relembra numa das lendas que recupera, da divisão eterna entre os lados do oriente e do ocidente) lhe transmite.
Não é apenas a infância feliz, e cheia de interrogações, é um passado que abre, no presente, as mesmas interrogações (voltávamos a Alice) sobre o valor da história e da memória.
Mas para se chegar à solução final desse Mistério absoluto teremos de concluir, com Galip, todo o caminho feito: um caminho por dentro da memória, por dentro da sua antiga herança, e pela meditação do que aceita ou recusa, o poder afirmar quem é e o que é. Ele é um contador de histórias, na melhor tradição turca, ele é um escritor que reinventa a palavra, na melhor tradição do ocidente. Faz a ponte, entre Celal e Galip, num impulso de androginia cultural assumida.
Uma escrita carregada de sonhos (o passado, o corpo de Ruya a dormir ainda, virada de costas) carregada da inquirição do presente:tudo o mais que sucedeu.





Thursday, October 09, 2014

Rita Ferro

A MENINA É FILHA DE QUEM?
Rita Ferro, Prémio Pen Club 2012
Entre Pamuk e Rita Ferro...
É verdade que a leitura de um livro puxa outro...
Aconteceu com Orhan Pamuk, quando li RED, a seguir li SNOW e agora espero pelo BLACK BOOK.
Aconteceu com o Diário 1 de Rita Ferro, VENEZA PODE ESPERAR, que me fez andar para trás e comprar A MENINA É FILHA DE QUEM?, livro anterior e se define como autobiografia.
Rita nasceu em 1955: significa que aos vinte anos é apanhada, como tantos da sua geração na onda que só não chegou antes a Portugal por causa da Ditadura de Salazar e com o PREC rebentou pelas rochas (os mais velhos, empedernidos) e areias e lamas das almas do nosso país, com toda uma revolução de costumes que não se esperaria tão rápida, mas foi o que foi. Já sedentos, desde o Maio de 68 de Paris (apesar de tudo viajava-se....) agora podiam, uns e outros, embebedar-se à vontade. Uns de política, outros de paixão. Rita era a mais nova dos três filhos de António Quadros. E pelo que nos diz, a mais irrequieta, a mais disponível para a travessura, no colégio ou no grupo de amigos.
Não falarei aqui do seu pai, do círculo da amigos - também eu estive em casa da Natália Correia, com o David Mourão-Ferreira, a tentar não sorrir daquela apetência de Além, tão pessoana, ou dos serões no Botequim, onde tudo podia acontecer, do piano, do canto e da poesia à Revolução. Com Alberto Pimenta, lia-se o Tarot.
Com Mestre Lima de Freitas buscava-se a nova alma, o novo destino de Portugal. Na Nova Filosofia nunca acreditei muito, e a prova está à vista, não produziu os efeitos esperados. Mas respeito o esforço de repensar o país.
Entretanto, uma jovem menina, depois já mulherzinha, corria em busca do seu caminho: espreitando as amigas mais velhas, ou os amigos  mais velhos já tentando cortejar, ela observa, ela aguça os sentidos, ela diverte-se enquanto a vida e as vidas acontecem.
Numa prosa por vezes rasgada - entenda-se realista para além do que seria preciso, por vezes sugerir é mais interessante do que explicitar ao pormenor, o mundo em que cresceu, feito de boa educação (severa, claro, como se devia, ainda que hipócrita tantas vezes) de livros, boa música, poesia pelo meio, algo enfadonha, mas resiste-se e adquire-se sensibilidade, essse mundo chega até nós de modo irónico e irresistível, quando uma avó, por exemplo lhe diz àcerca de uma amiga:" essa não a traga mais, dá dois beijos e diz mala em vez de carteira!" Tão aguda, tão perfeita observação de um mundo que já tinha acabado, pela mão dos próprios, que ainda não se tinham apercebido. Conheci-o bem, e não resisto a sorrir quando a Rita o evoca, rindo também ela, com ternura.
Mas Rita vira chegar o novo mundo, e decidiu vivê-lo, todo e com sofreguidão. As casas que se perdem, se dividem, os casamentos que se fazem e desfazem, as memórias que nos tomam de assalto e sentimos o dever de recontar.
Pelo meio um país que muda: exigente, mas mesquinho, mas ainda invejoso, - como lamentam os "Pensadores" poucos, que temos, e cujo pensamento não ajudou à mudança (Não, não vou citar! ).
O que faz ela? Mulher que se diz bicho, que se diz fêmea, devoradora, que se interpela enquanto caminha e ora sai ora regressa ao que aspirava a ser, o que faz ela? Toma a vida nas mãos e luta: pelo dia-a dia-, por um trabalho que garanta independência e altiva elegância até poder libertar-se e plenamente ousar dizer o que é. Dizer é pouco? Mostrar!
Afinal a vida ensina que se é muito pouco, mas esse pouco é a nossa vida, só mesmo nossa, merecida, bem sucedida, finalmente ganha contra tudo: o que se foi, o que se é, o que se virá ainda a ser. Como em todas as vidas, houve, na sua, o sofrimento, a perda, e o desgosto.
E haverá quem sabe ainda mais.
Mas a graça com que intercala situações caricatas e divertidas com outras discretas e penosas - aquelas que se calam (Rita tem desde logo a noção de que falar nada adiantaria) - são a chave do ímpeto com que se lê esta biografia, que foi o ponto zero do Diário de Veneza.
Aqui está tudo ainda em embrião, pois a menina - sendo ou não sendo filha de quem era, carregada dos genes de uma família de criadores - podia nunca chegar a ser o que é: jovem irreverente, mulher ávida e ao mesmo tempo mãe de família, que colocou a família no centro enquanto a loucura da escrita a empurra e possui, como possessa que é da necessidade absoluta da Palavra.
Não farei aqui nenhum resumo, seria ofensivo para quem a deseje ler.
Mas leiam, porque se aprende, como ela aprendeu, e nós com ela, também a desaprender!