Wednesday, April 26, 2006

Ursula Le Guin,The left hand of darkness


Encontramos em autores modernos, como Ursula Le Guin, a recuperação, ainda que de forma distópica, de mitos antigos, neste caso o do Andrógino.
A mão esquerda da Treva não torna apetecível a ideia de um paraíso em que todos os seres, sendo andróginos, se bastam a si próprios, numa desolação em que ninguém precisa de ninguém.
O mito fez carreira, desde o tempo de Platão, e há códices da Idade-Média, como o desta imagem, do LIVRE DES MERVEILLES do séc.XV francês, em que vemos o Criador debruçado complacentemente sobre uma Eva hermafrodita a colher o fruto da árvore que se adivinha ser a do conhecimento.
Mais interessante é antes a estória contada na QUESTE DEL SAINT GRAAL( ed. de Pauphilet, 1984); no conto messiânico da Nave de Salomão, os heróis são conduzidos a uma cidade que é, na opinião do estudioso francês, "o símbolo transparente da Jerusalém Celeste "; antes de se lá chegar é narrada a lenda da verdadeira Árvore da Vida:
Eva, ao ser castigada com a expulsão do Paraíso, levou um ramo da árvore de cujo fruto tinha comido.E guardou-o,para lembrança da sua infelicidade. Plantou-o na terra, onde o ramo se manteve erecto, criou raiz e cresceu.Este ramo, que a primeira pecadora trouxe consigo, tinha um grande significado.Eva era ainda virgem, conta o autor da QUESTE, mas fez um discurso dirigido aos seus sucessores: "Não vos lamenteis por termos perdido a nossa herança; não está perdida para sempre,vede aqui no crescimento do ramo o sinal do nosso regresso futuro". E o autor explica por que razão é a mulher e não o homem a portadora do ramo (a portadora da vida, pois ele cresceu). Pela mulher se perdeu a vida do Paraíso, e pela mulher a vida será recuperada (com a Virgem Maria e o fruto do seu ventre).
Continuando: o ramo em pouco tempo se fez árvore, uma árvore alta,frondosa, com o tronco, os ramos e folhas tudo branco como a neve.Sendo o branco o símbolo da virgindade, percebe-se que Eva, ainda virgem, só podia plantar uma árvore dessa mesma côr.
Estando a dada altura Adão e Eva sentados junto da árvore, ouvem uma voz do Alto que lhes diz para não se lamentarem pois a árvore continha mais vida do que morte; e eles passaram a chamar-lhe ÁRVORE DA VIDA.Plantaram de seguida muitas outras,que logo tomaram raiz, mantendo a mesma côr branca.
Mais tarde ainda voltam a ouvir uma voz que lhes ordena " que se unam carnalmente". Consumada a união, a árvore, que era branca, tornou-se tão verde como a erva dos campos, e passou a ter flor, e dar fruto, o que antes não tinha acontecido.

Podemos especular sobre o sentido da Árvore que Eva traz do Paraíso: do Conhecimento, e da Vida, pois a seguir à união do casal que antes fora "andrógino" se transforma em verdadeira árvore, portadora de flor e de fruto. Adão e Eva também cumprirão o destino previsto: crescem (em conhecimento e vida) multiplicam-se, e os seus filhos cobrem a terra.

2 comments:

pedro moreira said...

Esta história, tão bonita e poética, resolve o problema essencial da expulsão do paraíso. Tal como vem contada na Bíblia, trata-se basicamente de uma troca: a árvore do conhecimento pela árvore da vida. No meio do jardim do Éden estão as duas, e o homem pode comer de todas, excepto da árvore do conhecimento. A razão é simples. Com as duas o homem assemelha-se demasiado a Deus. A serpente diz claramente: "Deus sabe que, no dia em que comerdes da árvore vossos olhos se abrirão e sereis como Deus". Ora Deus não gosta disso. De facto Deus confirma, depois de consumada a desobediência: "Eis que o homem se tornou num de nós, capaz de conhecer o bem e o mal". O verdadeiro castigo é retirar-lhe a árvore da vida: "Não ponha ele agora a mão na árvore da vida, para dela comer e viver para sempre". Ou seja, o homem perde a imortalidade, e a partir daí tem de se reproduzir (com a agora necessária união carnal).
Dessa forma cumpre-se a ameaça inicial de Deus: "No dia em que dele (do conhecimento) comeres com certeza morrerás." Deus tinha razão, ao contrário do que garantiu a serpente...
Desta forma o homem ganhou o conhecimento à custa da imortalidade.

Yvette Centeno said...

Pensei que precisamente esta lenda, pouco ortodoxa,podia ajudar à discussão do Paraíso, não celestial, mas terreal- aquele que nos foi dado, enquanto espécie humana.
"verde é a árvore dourada da vida"diz o maroto do Mefisto ao estudante que se quer ilustrar com teorias cinzentas...
Só a vida nos dá sabedoria-uma lição alquímica.