Saturday, September 02, 2006

Paul Celan


SCHIBBOLETH

Junto com as minhas pedras,
que foram crescendo com lágrimas
por trás das grades,

fui arrastado
para o meio da praça,
para ali
onde a bandeira se desfralda, à qual
não prestei juramento nenhum.

Flauta,
dupla flauta da noite:
pensa na escura
vermelhidão gémea
em Viena e Madrid.

Põe a tua bandeira a meia-haste,
recordação.
A meia-haste
para hoje e sempre.

Coração:
dá-te também aqui a conhecer,
aqui, no meio da praça.
Chama-o, ao Schibboleth, grita-o
para o longe da pátria:
Fevereiro. No pasarán.

Unicórnio:
tu sabes das pedras,
tu sabes das águas,
vem,
eu levo-te até
às vozes
da Estremadura.


Um leitor da blogoesfera escrevia-me, há pouco tempo, a propósito de Celan:" não se estará a exagerar o seu judaísmo ao comentar os seus poemas ? "
É claro que não se pode esquecer a sua origem, mas não é a sua origem e sim o sofrimento que ela lhe causou que marca a sua memória e a sua poética de dôr e divisão face a um mundo ( e a um Deus ) que permitiu o horror dos campos de concentração, onde Celan viu morrer quem lhe era querido e quem lhe seria estranho, se não tivesse morrido ali também naquelas circunstancias. Celan escapa, mas não esquece e há imagens que o acompanharão "hoje e sempre".
Tais imagens, e muitos dos apelos e das invocações que faz, dirigem-se a um Olhar Ausente, um olhar cego, que negra nuvem toldou durante demasiado tempo.
Será preciso falar, será preciso DIZER o que muitos tinham decidido que seria indizível, e é o esforço do dizer que estrutura a poética de Celan e não o seu judaísmo.Mas o seu judaísmo, como o comunismo dos espanhóis que foram abatidos na guerra de 1936 é a causa próxima do sofrimento e da perseguição que fazem parte de uma História vivida e não pode nem deve ser apagada.
Jean Bollack, um dos maiores intérpretes da obra de Celan aborda precisamente a questão da escrita e do apagamento contra o qual é necessário lutar. Apagamento do autor, enquanto judeu e não só: voz incómoda, voz que dá testemunho, que tem o direito de julgar porque foi injustamente julgada. " O tempo esconde, mas a escrita não é levada como o resto".
L'ÉCRIT , une poétique dans l'oeuvre de Celan, par JEAN BOLLACK ( P.U.F., Paris, 2003 )

A propósito de Schibboleth, escreve Bollack ( citando Celan : " nunca escrevi uma linha que não estivesse ligada à minha existência; sou realista à minha maneira " ) que a imagem do Uncórnio apela à unidade, à coerencia que no mundo ( e em muitos dos seus amigos) se perdia. E neste caso, muito concreto, é ainda um apelo ao amigo Erich Einhorn (unicórnio em alemão) a quem escreve para lhe lembrar uma causa comum, a da liberdade (ainda que utópica, como se verá na posterior evolução da causa russa).Este é um poema que deve ser lido a par de outro," in memoriam Paul Éluard " , também ele comunista e cujo canto à liberdade é um dos textos mais comoventes e empolgantes que se podem ler.
Assim se estrutura uma poética da verdade e do dizer a verdade, na sua circunstancia.

Mas para lá de tudo isto fica o poema, e a sua lingua própria, falando com os outros poemas, estabelecendo uma continuidade que obriga a que se leia um e outro, todos em face uns dos outros, completando imagens e sentidos numa cadeia única de percepçaõ.
Citando Bollack " Os poemas absorvem outros poemas, os de Celan e os de outros poetas.Têm uma necessidade de continuação e ao mesmo tempo usam os elementos mais contingentes, mais casuais, tornados significantes no sistema de referencias estabelecido...O encontro mais fortuito é o mais forte...A rede semântica afirma-se ao constituir-se...A obra poética é fabricada com a língua da própria obra" ( p.210 ).
Os poemas são um diálogo contínuo com a poesia " com o seu poder ilimitado de exploração, e as suas limitações; encontram-se neles todas as posições intermédias, entre o proibido e a reflexão mais corajosa e dura, entre a evasão e o bloqueamento, entre o sucesso inesperado e a constatação lúcida da impotência" 
( p. 211 ).

Digo só, para terminar, que esta poética da fractura e continuidade da consciência, que funda o Modernismo, é uma das causas do deleite de ler e reler Rilke, ou Celan ou Pessoa, ao qual se poderiam aplicar algumas das reflexões de Jean Bollack no tocante à poesia que se constitui no diálogo dos poemas uns com os outros, dos heterónimos uns com os outros.
Sempre defendi que para entender Pessoa é preciso lê-lo todo, e em permanente confronto com as suas múltiplas vozes.

2 comments:

Anonyma said...

"Sou juiz de mim mesma
e não me absolvo."
Y.Centeno

I said...

E eu sou amante da poesia e sua admiradora(anonyma)