Tuesday, September 12, 2006

Melancolia




A MELANCOLIA I de Duerer, de 1514, para além das influencias que são apontadas ao artista - Marsilio Ficino, entre outros- representa um dos tipos de melancolia definidos por Cornelius Agrippa von Nettersheim no seu tratado DE OCCULTA PHILOSOPHIA, que foi divulgado como manuscrito a partir de 1510. Neste tratado descreve-se a "melancolia imaginativa" como própria dos artistas, arquitectos e artesãos; a" melancolia racional " como característica de médicos, cientistas e políticos; e a "melancolia mental" como própria dos estudiosos de teologia e dos segredos divinos. PANOFSKY sublinha a melancolia imaginativa como faceta principal desta gravura: o que permite lê-la como produto, também ela, do imaginário alquímico de que temos vindo a ocupar-nos.
Este Anjo sentado, de cara aborrecida,contrariada, pegando com displicência numa ponta do compasso que tem na mão e com o qual poderia "redesenhar" o espaço que o rodeia, é a imagem mesma da NIGREDO, a confusão de alma que é preciso sublimar, encontrando um caminho. A desarrumação dos objectos à volta de um Anjo que mais poderia ser uma dona de casa incapaz de pôr ordem nas suas coisas é outro dos sinais que o artista nos dá: a confusão do exterior reflexo da íntima confusão, enquanto se aguarda algum sinal, ou que alguma coisa de repente mude, ainda que por acaso, mais do que por intervenção própria.
A esfera pequena,no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal como o possível arco-íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode augurar uma transformação positiva, luminosa.
Quase tão destacado quanto o Anjo, está, sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que tem por trás um anjo mais pequeno, um "putto", semi-adormecido. A nigredo é uma fase da alma em dormencia, e o mesmo sinal é dado pela cão enrolado e dormindo aos pés do Anjo. O cão, fiel companheiro do adepto em muitas das gravuras de alquimia conhecidas, e no caso de Cornelius Agrippa fazendo parte da lenda da sua vida de alquimista e nigromante.
O Anjo tem à cintura uma chave , e é Duerer quem, nos desenhos preparatórios da gravura, escreve que as chaves significam PODER.
Para Erwin Panofsky o poliedro será um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha desde logo a noção do equilíbrio das faces.O que tem todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra polida, quando desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir. E para tal a CHAVE é indispensável, pois todo o proceso é cifrado, é secreto, não é dado a qualquer um.
( E.Panofsky, Saturn and Melancholy, 1964 )

Passemos agora ao maior monumento literário que, na nossa cultura, dá testemunho da melancolia dita imaginativa, própria de artistas, neste caso Bernardim Ribeiro com a sua MENINA E MOÇA.
Pela mão do Professor José V. de Pina Martins foi publicado na Fundação Gulbenkian o fac-simile da edição de Ferrara de 1554 ( Lisboa, 2002 ). Um precioso estudo antecede o fac simile fornecendo aos investigadores, ou simples leitores, toda a informação e todo o historial relativo a esta obra- prima das nossas letras, que ainda não "transitou" para o mundo, como devia, por nunca se ter feito uma tradução inglesa. O momento há-de chegar, como chegou para outros, ainda que com séculos de atraso. Um amigo da blogosfera já colocou no éter a sua tentativa, pedindo sugestões a quem o possa ajudar com boas sugestões. Aqui fica o seu blog : IDIOCENTRISM.

A primeira nota, de grande interesse, é que nesta edição a menina diz " menina e moça me levaram de casa de minha mãe" e não de "casa de meu pai" como sempre nos habituaram na escola, devido a outras leituras de outras edições.Faz muita diferença, do ponto de vista psicológico e simbólico, dizer uma coisa ou outra.
Bernardim, seguindo a tradição da lírica de Amigo, falando pela boca de uma jovem que foi separada de sua mãe; projectando-se num universo todo feminino, com seu ambiente e sua psicologia muito próprios; somando a isso a expressão de uma saudade infinita e sem cura. Um lamento pungente.
Não vou transcrever aqui a novela, o que pretendo é deixar uma sugestão de leitura, chamando a atenção para o NEGRO DE ALMA de que ela dá testemunho.
Nos primeiros capítulos descreve-se a partida, sem razão que se conheça, criando um ambiente de mistério .
Depois a paisagem, de montes e vales, os precipícios da imaginação.
Surge o rouxinol, cujo canto melodioso cedo se apagará, também ele.
E logo de seguida aparece também, sem que se saiba ao certo de onde nem porquê, a dama vestida de negro. Toda esta imprecisão adensa a atmosfera de sonho que caracteriza a novela. A dama surge como que de dentro da água que a Menina estava a contemplar :
" E, estando assim olhando para onde corria a água, ouvi bulir o arvoredo.Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo. Mas olhando para ali vi que vinha uma mulher e, pondo nela bem os olhos, vi que era de de corpo alto, disposição boa, e o rosto de dona, senhora do tempo antigo; vestida toda de preto, no seu manso andar e meneios seguros do corpo e do rosto e do olhar parecia de acatamento.Vinha só(...) E entre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma".

Duas figurações da Anima, a juvenil, da Menina, e a melancólica adulta , a Dona que desliza mais como a Sombra que é do que como a mulher que devia ser. Bernardim exprime em ambas, logo nestes primeiros capítulos, a desordem da alma e o desespero de que se sente possuído.

2 comments:

Amélia said...

Professora: gostei muito desta sua entrada sobre a melancolia imaginativa -presente em Durer como em Bernardim (sempre optei por «da casa de minha mãe», não apenas pelo que a Professora explica, mas também porque bastante mais eufónico).É um romance de mulheres para mulheres, porque «só as mulheres são tristes» - mesmo quando as personagens masculinas das histórias que se seguem o são também - são homens com sensibili
dade feminina, afinal.Uma das obras mais belas da nossa literatura, sim.
Obrigada pelas suas reflexões.

LjoSaLfAr said...

Muito Interessante! Esta obra em particular tem influenciado também artistas contemporâneos como o importante Anselm Kiefer sobre quem o Canal 2 exibiu um documentário há algumas semanas atrás.. Artistas e obras intemporais influenciam-se mutuamente.