Thursday, December 06, 2012

A JOAQUIM NO SEU OLIMPO


 Chora o Olimpo 
o valoroso herói:
caiu junto aos portões 
da cidade de Atenas.

Caronte não o deseja:
não aceita as moedas,
a sua luz mais forte
ofuscaria a treva
da memória…

Diónisos vem buscá-lo
com as suas bacantes:
ele sobe triunfante
com o Rei do cortejo…

Vénus abre-lhe o colo
de abraços generosos
E Hermes cede-lhe as asas
para poder voar…

 Zeus entrega a coroa de fogo
reservada aos heróis:
o Olimpo é o Reino
de memória perpétua
onde não há Carontes 
receosos…

Y.K.Centeno
Lisboa 5 de Dezembro, 2012
(a Joaquim Benite, in memoriam)



Wednesday, November 07, 2012

A propósito de Schubert...Notas Soltas

COMENTÁRIOS PRÉVIOS

Franz Schubert (1797-1828) / J.W. Goethe ( 1749-1832)

Em 1822 Schubert escreve o seguinte:
“Quando queria cantar o amor, sentia sofrimento; quando queria cantar a dôr o que sentia era o amor”.
Assim definia a sua alma, complexa e contraditória, tal como veremos que o próprio Goethe, na obra poética como principalmente na personagem do seu herói, Fausto, também a virá a descrever: alma dupla, alma sentida como se fossem duas, cada qual a desejar e a seguir um impulso diferente; recordo o monólogo célebre  na primeira parte da tragédia, em que Fausto se dirige ao seu discípulo Wagner:
“Só duma aspiração tens consciência;
Oh, não queiras jamais sentir a outra!
Duas almas habitam no meu peito,
Uma da outra separar-se anseiam:
Uma com órgãos materiais se aferra
Amorosa e ardente ao mundo físico;
Outra quer insofrida remontar-se 
De sua excelsa origem às Alturas”. 

Nos finais do século XVIII, o século da Razão e dos Iluministas que parecia poder abafar o peso do Sentimento e da sua expressão, - artistas como Goethe, e neste caso Schubert, ambos entrando pelo século XIX dentro, conhecendo os expoentes do movimento romântico e sendo até em muitas obras seus precursores inspirados, mantêm viva a chama do mais fundamental na tradição poética: 
a expressão do amor, feliz ou infeliz,
a memória das tradições populares, com uma sabedoria própria, por vezes muito irónica,
sem esquecer o que chamo de grandes temas da literatura universal: 
a morte, a interrogação perante a vida, o sentido da vida, o destino, a consciência que se adquire à medida que o tempo vai passando e como que nos traça o desenho do que foi e do que será.
A vida faz de nós Viandantes: não admira pois que poemas como este, tão célebre, ou mesmo só os que abordem o tema da viagem, como se vê na Winterreise, a Viagem de Inverno –tenham um sabor especial para os compositores mais sensíveis à arte da poesia.
O lirismo do poema permite melhor que tudo exprimir de forma concisa as peplexidades, as interrogações que nos assaltam na viagem que é a vida.

Surge ainda nesta altura o conceito de Fragmento, de Inacabado, como forma própria, legítima, de criação. E o poético adquire também deste modo uma profundidade que o  aproxima ainda mais da filosofia. 
Torna-se género de culto, na Alemanha, como em Viena–de onde aliás, já no século XX, um Musil, um Wittgenstein farão das suas obras fragmentadas os pilares de um novo pensamento, uma nova forma de elaboração filosófica.

Schubert tem 17 anos quando compõe a canção de Gretchen na roca a fiar. Goethe era também muito jovem, não tanto quando escreveu o Fausto I, mas quando pela primeira vez abandonou uma jovem namorada à sua sorte. É esta memória que ecoa no monólogo de Gretchen, de forma tão comovente: Goethe não perdeu nunca a sensibilidade ao sofrimento de amor; sofreu e fez sofrer, ao longo de toda a sua vida!

Outros grandes poemas, datando da fase incial da sua criação, como Prometeu, Ganymed, Limites da Humanidade, irão inspirar os mais célebres compositores.
Porque abordam temas de sempre: 
Prometeu, o da revolta contra a opressão e a injustiça dos deuses, Ganymed, o da entrega a um amor luminoso, Limites da Humanidade o da aceitação humilde da vida que nos é dada:  temos de ter consciência dos nossos direitos mas sobretudo dos nossos limites, nisso reside a sabedoria verdadeira.

II
Wilhelm Meister, Os Anos de Aprendizagem:
Fulgurações de Mignon 

O romance de Wilhelm Meister, tal como o drama de Fausto, foram obras que acompanharam Goethe ao longo da sua vida, dos anos mais turbulentos do Sturm und Drang aos amadurecidos da plenitude do conhecimento adquirido: pela experiência de vida, pela inquirição científica, filosófica, artística dos múltiplos pontos de vista, mesmo que contrários e contraditórios.
Aliás a sua maior lição é mesmo essa: da contradição que leva à plenitude do reconhecimento do Todo e do Uno, na esfera do grande como do pequeno mundo.- para usar uma expressão corrente no seu tempo ( e que conhecemos de Shakespeare e dos filósofos herméticos).
A leitura dos seus escritos autobiográficos permite entender melhor as características da sua formação; cresce num meio burguês de cultura cuidada, onde desde cedo estuda música, aprende línguas, segue direito filosofia, teologia, embora se oriente mais tarde para outras escolhas.
Mas a formação ficou lá e moldou o seu pensamento e a sua imaginação criadora. Não é por acaso que à data em que escreve as primeiras versões de Wilhelm Meister é a criação teatral que o apaixona, fazendo com que contraponha a escola francesa de Gottshed e a proposta de um teatro clássico aristotélico ao modelo muito mais livre e sedutor de Shakespeare, que Wieland dera a conhecer na Alemanha.
 Um encenação de Hamlet é discutida longamente com a troupe de quem Wilhelm se torna amigo, viajando com eles. Entre eles viverá o seu primeiro amor e o seu primeiro desengano. Através deles conhecerá Migon, e o Harpista – duas figuras emblemáticas da obra, de que falarei adiante.
A Par das discussões sobre o teatro como arte e expressão da vida no seu todo, no que tem de melhor e pior, e como arte suprema, pois inclui a palavra, a música, a dança - é uma arte total – desenha-se ao longo da narrativa um pensamento filosófico, inspirado na Ética de Spinoza, que  que está a ler, como diz na autobiografia e ainda em Rousseau, sobretudo nas Confissões.
Temos assim a apresentação e discussão de modelos filosóficos, estéticos e éticos (bem como pedagógicos, inspirados no suiço Pestalozzi) que ora Wilhelm ora outros intervenientes introduzem numa narrativa por vezes confusa e que só com a evolução do contar, sobretudo nos Anos de Viagem se aclara finalmente.
Contempla-se em Wilhelm Meister  um grande fresco da sociedade da época:
1 do pequeno mundo do povo, do teatro ambulante que se deseja maior do que é e mais interessante, como projecto de vida;
2 à burguesia culta, dividida entre o Iluminismo da Razão Pura e o Pietismo, doutrina de misticismo laico mas muito actuante na Alemanha do norte ;
3 sem esquecer a discreta mas real proliferação da maçonaria e suas Lojas, em que se proclamava a liberdade, a igualdade, a fraternidade, e sobretudo uma utopia moral e social que em Wilhelm Meister é representada pela misteriosa Sociedade da Torre. 

Tudo isto vem a propósito de se sentir que as personagens de Mignon e do harpista que a acompanha, sendo como são inspiradoras, carecem de um enquadramento que as justifique no seu mistério e sobretudo no desenrolar do romance.
Pois na narrativa servem de fio que une os anos de Aprendizagem e de Viagem do herói, apesar de, numa leitura apressada, poderem parecer mais dispiciendas. 

Como surge Mignon e como é descrito?
De início como criatura meio andrógina, Wilhelm não sabe dizer se é rapaz ou rapariga, roupas trapalhonas, ar algo selvagem; mas vendo melhor opta por menina; de facto é uma menina, criança que anda com a troupe fazendo habilidades, e que Wilhelm, compadecido do seu destino, e logo atraído por ela a compra por 30 tálers (30 dinheiros de Cristo…), libertando-a do jugo cruel do seu dono, que era o dono do circo. 
(Mas permanece o nome de Mignon: de origem francesa, Mignon era na corte o favorito do rei; detecto aqui no romance alguma ambiguidade de relação, implícita, mas que não se pode confirmar).
Ela será a favorita de Meister, e a ele se devota de todo o coração.
Pela mão dele será educada, vestida como deve ser, ainda que sempre de branco, alusivo a uma outra origem, mística, mais sublime. Um embrião de alma descido a um mundo de imperfeição.
Mignon não fala, ou muito pouco, e sempre de modo hermético, carregado de alusões: canta, como se fosse o seu modo natural de expressão, mais intuitivo e expressivo do que seria um dizer articulado.
O seu mundo é o da pura emoção. Daí que ao longo dos tempos tenha inspirado tantos e tantos compositores, sendo Schubert um deles.

Do ciclo de Mignon, a canção mais célebre é a da nostalgia de um país maravilhoso, solar, em que florescem limoeiros e laranjeiras, se erguem belos palácios e antigas lendas e mitos encantam a imaginação. É para aí que Mignon deseja ir, levando Wilhelm, Amado, Protector, e Pai.

Conheces o país onde os limões florescem,
E brilha na folhagem escura o ouro das laranjas,
Do céu azul sopra um vento suave,
A murta silenciosa e o altivo loureiro,
Conheces?
Partir! Partir,
O meu desejo é ir para lá contigo, meu Amado.

Conheces a casa?Sobre colunas está pousado o tecto,
A sala brilha, refulge o aposento, 
As estátuas de mármore fitam-me com o seu olhar:
Pobre criança, que fizeram contigo?
Conheces isso?
Partir! Partir,
É o que desejo, contigo partir, meu Protector.

Conheces o monte, o carreiro entre as nuvens?
A mula procura o caminho na névoa;
Nas grutas vive a antiga raça dos dragões;
Despenham-se os rochedos e em torrente as águas,
Conheces?
Partir! Partir,
Seguir nosso caminho! Ó Pai, vamos embora!

Nos últimos capítulos do romance saberemos do que se trata e quais foram as peripécias trágicas da vida de Mignon.
Mas a resolução final do mistério, ou dos mistérios, da sua vida terrena, que tanto aproximou Wilhelm da sua própria iniciação nas mais altas esferas da vida Superior (a que a protecção da Sociedade Torre não é alheia) não impede a dúvida que permanece:
Afinal o que representa, na iniciação do herói esta jovem Mignon? Raptada (do seu mundo perfeito, que ela evoca numa canção), sofrendo em silêncio os males (a degradação) do mundo (evocados noutra canção), protegida pelo herói , que a entrega aos bons cuidados de uma alma generosa, Natalie (com quem Wilhelm virá a casar) morrendo nos seus braços do amor excessivo que a consumia em silêncio – afinal o que representa ela? 
No segundo capítulo do livro VIII  Mignon surge diante das outras crianças da casa vestida de Anjo, numa figuração alegórica (como era costume, ao tempo, para surpresa e divertimento nos salões, perante amigos e convidados).
É travado um diálogo que remete para o Maerchen, conto maravilhoso datado de 1795, próximo da escrita dos Anos de Aprendizagem,   carregado de simbólica alquímica e maçónica em que diálogos cifrados também cumprem um papel.
Natalie explica a Wilhelm que Mignon, na companhia das meninas da casa de que ela se ocupava, se habituara a gostar das roupas femininas, antes tão difíceis de lhe impôr. E para festejar o aniversário de umas gémeas a vestira de Anjo, de longas vestes brancas, a que não faltava um cinto dourado, tendo-lhe colocado também na cabeça um diadema igual. Tinha ainda duas asas a compor a imagem. Nas mãos levava um lírio e um cestinho com prendas.
À sua chegada Natalie exclama: Aqui está o Anjo!
E seguem-sa as perguntas das crianças, que reconhecem Mignon.

-Tu és um Anjo?
-Quem me dera, responde Mignon.
-Por que trazes um lírio?
-Se o meu coração fosse tão puro e sincero eu seria feliz.
-E as asas? Mostra lá!
-As mais belas são as que ainda não se abriram.

Cumprido este momento mágico ( e de verdadeira iniciação, como acontece no Maerchen), quiseram despir Mignon das suas vestes, ao que ela se opôs, pegou na sua cítara, sentou-se numa escrivaninha e cantou uma canção de grande suavidade: “ So lasst mich scheinen, bis ich werde / Zieht mir das weisse Kleid nicht aus! “
Nesta canção se exprime o alto conhecimento adquirido por toda uma experiência de vida que trouxe Wilhelm Meister até aqui, ao reencontro com Mignon, e com o destino que junto de Natalie o tornará maduro e sábio, pois entenderá as emoções que desde a juventude (na agitada vocação teatral o tinham perturbado). Mignon for a a sua Anima : incipiente, indefinida, como um Daimon ( a que Goethe se refere, noutros escritos) exprimindo-se por impulsos intensos a que cedia. Mignon morrerá para ele sobreviver: pois a pulsão tem de ser integrada ( sofrer morte simbólica, como na alquimia) para se progredir no domínio da Razão superior, da Sabedoria que só a vida concede. No Maerchen, de que se respira aqui muito da sua influência, as palavras de redenção iniciática são maçónicas: a Sabedoria, a Aparência, a Força ( na maior parte dos tradutores de “die Weisheit, der Schein, die Gewalt” , a que no Conto se irá acrescentar outra palavra, o Amor, como força criadora). Rudolf Steiner, Oswald Wirth, teósofos e maçons é assim que traduzem  estas palavras de iniciação.
João Barrento, na sua tradução escolhe a palavra que me parece mais adequada: “ a Sabedoria, a Luz e a Força” (p. 318, vol I, ed. Relógio d’Água). 
Porque o verbo scheinen, e  especialmente aqui, nesta canção de Mignon,tem tudo a ver com o brilho, o brilho da luz da alma, da pura essência em que ela, ao morrer se tronará para sempre, ascendendo à esfera em que não se distinguem mais as formas masculinas/femininas, partilhando todas a mesma fusão do Uno e do Todo na perfeita completude primordial.

Assim também eu traduzo de um modo que me parece mais fiel ao ideário iniciático de Goethe, esta canção que fecha o ciclo, aberto no capítulo IV do Livro Segundo, quando Wilhelm, ao ver Mignon surgir de surpresa e logo fugir dali, não sabe dizer ao certo se a criança é rapaz ou rapariga. Opta pelo sexo feminino, a que ela se irá moldando com o tempo (sobretudo com Natalie). O que faz todo o sentido, pois Mignon será um daimon prefigurando uma Anima que Natalie incarnará por completo, já no fim.
Curiosamente, ao traduzir esta canção, João Barrento que no Maerchen optou pelo brilho da luz, aqui cede ao jogo da rima entre parecer e ser (scheinen /werden) recuperando o termo dos tradutores que acima referi.
Prefiro manter a sedução da luz e do brilho das altas esferas, até porque o termo werden implica, como no Fausto, transformar-se, não é um verbo estático, como sein, em que o ser (a essência) já se dá por adquirida.

Deixai então que brilhe até me transformar,
Não me tireis ainda as brancas vestes!
Da bela terra apresso-me a sair
Para descer àquela escura casa.

Deste termo, “feste Haus” casa segura, há uma variante, que prefiro recuperar: “ dunkle”, escura. Pois é na descida à escuridão da alma ( a casa) que toda a sublimação se dá.

Aí descansarei por um momento,
Até que que em mim se rasgue um novo olhar
E deixarei então as vestes puras
O cinto  e a coroa de enfeitar.

E aquelas formas celestiais
Que não distinguem homem ou mulher
Ou roupagens ou pregas envolventes
Receberão o corpo sublimado.

É certo que vivi sem esforço nem cuidado,
Mas sofri dores bastantes nesta vida
E de desgosto envelheci antes de tempo;
Fazei-me jovem de novo eternamente!
Aqui está finalmente a chave do romance e a sua conclusão: que o mistério da vida é insondável, que o destino é força que tem de ser entendida e assumida na sua complexidade, que inclui a treva ( o sofrimento) como inclui a luz, a Vida Eterna por todos desejada.
Jeanne Ancelet-Hustache, grande germanista, tradutora de Wilhelm Meister,(ed. Aubier Montaigne) relembra no Prefácio os poemas órficos de Goethe, nos últimos anos de vida (1815-1831). Um deles é especialmente interesssante para esta figuração, fulguração de Mignon como daimon-pulsão sublimadora: o título é Daimon, e  tem o seguinte verso: “ a ti não fugirás, assim terás de ser” (trad. Paulo Quintela).










  






Tuesday, October 30, 2012

RUI ZINK, A instalação do medo



Rui Zink, A Instalação do Medo (2012)

De vez en quando sofro da saudade de ler um bom livro. Bom neste sentido: que me surpreenda, pelo imaginário e pela estrutura narrativa, original, inovadora, irrepetível. Repeti-la seria plagiato (ainda que pelo mesmo autor).
Já li tanto, já li sempre, e às vezes vou antes ler um livro antigo do que algum destes novos que surgem em catadupa e de que não se dá conta, nem mesmo só a folhear.
Penso: estou velha, perdi sensibilidade, capacidade de alguma nova emoção. A culpa é minha.
E de repente, como aconteceu ontem, quando fui ao correio, dá-se o milagre!
Pela mão de um amigo, antigo e que muito admiro, desde os tempos da sua juvenil irreverência (e já nela a criatividade se deixava adivinhar) e do enorme brilho da sua inteligência e da sua cultura, bem maior do que o usual nas antigas décadas da Universidade.
Sempre gostei da inteligência irreverente, porque segura de si: do que sabe e do que ainda vai desejar saber, no decurso da vida. É a boa atitude de livre independência, nada tem a ver com a autocomplacência imbecil dos ignorantes.
Mas dizia eu, ontem tive a graça desse milagre que a leitura, pela mão do amigo Rui Zink, me concedeu. Abri o seu romance e não mais parei.Há muito tempo que não me acontecia. Tive, ao ler A Instalação do Medo, a mesma emoção feita de espanto causada pela leitura de O Processo, de Kafka.
A situação, inesperada; 
os diálogos, ao mesmo tempo roçando o hermético ou o absurdo de um Ionesco, reconhecíveis nas nossas perigosas situações actuais, como a forçada instalação dos célebres tdt...( ou será que já eram ddt? );
a violação da privacidade, a dois, como nos tempo da PIDE, que parece ter regressado de forma ínvia, não declarada mas dolorosamente genuína.. ;
e esse medo que vem para se instalar, e já está mesmo muito espalhado por grandes manchas da nossa sociedade (eu diria que até mesmo entre nós, criadores, sob a capa da autocensura...); 
e para lá dos diálogos ( que só por si já poderiam ser o suporte de uma bela peça de teatro, ou de uma ópera ao gosto post-moderno)
as subjacentes alusões, ou descrições do que se torna insustentável, a ponto de levar à loucura, à violência e à morte. 
Mais do que este medo que se anuncia porta a porta e se instala, de modo viral, incontornável, a descrição de situações com que deparamos dia a dia em destaque na net, nos jornais, na rua, -por todo o lado: a da indiferença perante o outro, despido da sua humanidade, como os judeus o foram outrora, de modo sistemático como nunca se vira até ao tremendo momento da "solução final".
Este medo descrito, de diversas maneiras, é próximo parente dessa ideia de alguma solução final, agora modernizada e mais adequada ao que se julga ser de imediato mais útil: empobrecer, em vez de matar logo. Pois a promoção da pobreza, física, mental, moral - matará tanto ou mais do que as câmaras que consumiram os corpos mas acabaram por elevar as almas: hoje a consciência do Holocausto é mais viva e o apelo a que nunca mais se repita fala alto.
O medo fala baixinho, por isso se tornou em arma melhor escolhida, mais fácil de espalhar e mais actuante: medo e silêncio coabitam nas almas enfraquecidas.
E de novo Rui, cuja obra é a meu ver a mais radical e significativa que nos foi dada este ano coloca na mão da mulher ( que é mãe, ou sonhou apenas ser mãe tentando esconder/salvar o filho? ) um pé -de - cabra com que rebenta a cabeça de um dos instaladores do medo.
Não por acaso é de Alberto Pimenta a epígrafe do cap. IV intitulado Corolário:
Dizes: é necessário construir o futuro.
Agora percebo por que afundas o presente.
Para instalar os alicerces.

Pimenta, o pai dos nossos radicalismos, o da desconstrução da palavra balofa, o criador da performance em que a grande erudição está sempre presente e nos ofusca com o seu brilho. Ele confronta-nos com a nossa ignorância e com muito da nossa preguiça  ( a tão louvada paciência lusitana, tão feita de desistência e cobardia...e que um dia rebenta, como a cabeça do outro cai no chão, rebentada).
 Ah, mas o que são os alicerces: os do medo, é evidente; e sobre eles se ergueria então o edifício sonhado, o da esfera dos puros, bem no alto, de onde nada do que se passe cá em baixo de arrastamento e miséria possa alguma vez ser visto, ou discutido.
Outros leitores dirão: eu prendi-me mais ao jogo subtil de trocadilhos, bem ao gosto surrealista, evocador talvez de um Boris Vian, por vezes mais do que de um Kafka. Pois sim. O humor (negro) atravessa muitas das páginas de Rui. Mas são páginas que do sorriso (de quem as entenda) logo conduzem ao pensamento profundo que não escondem, revelam, acentuam.
Nesta obra, Rui Zink deixa um grande fresco da nossa sociedade portuguesa e não só, pelo nosso exemplo passa a nova realidade que no mundo se enfrenta : e escusado será dizer, é uma realidade que ele, pela ironia crua nos convoca a combater.


Tuesday, October 23, 2012

RÓMULO DE CARVALHO-ANTÓNIO GEDEÃO

Esta Biografia do pai, Rómulo de Carvalho, cientista, e de António Gedeão, poeta, é-nos oferecida pela mão de sua filha Cristina Carvalho, ela mesma escritora conhecida, reconhecida, admirada.
Poderia não ter tido este gesto de grata memória: eu, que li no Porto, pela mão do meu pai, o Rómulo divulgador de conhecimento científico, e mais tarde em Coimbra, já com dezasseis-dezassete anos descobri o poeta (sem adivinhar que era o mesmo até me dizerem) agradeço à Cristina esta possibilidade que me dá de fazer com os netos o que o meu pai fez comigo.
Assim os grandes se perpetuam, pela nossa leitura e pela transmissão continuada. 
O livro foi concebido como eu gosto: agradável dimensão, pode ir connosco para todo o lado, ser lido em casa ou num café, bom papel que ajuda a que se ame e se guarde para outros, letra que permite leitura até de olhos cansados como os de pessoas de idade que ainda conservem espírito alerta e curiosidade intelectual.
Ah, e last, but not least: a qualidade da escrita, simples, directa, de mão corrida que não tropeça, conduz!
Por outras palavras: um livro bom, bem escrito, para todas as idades.
Carregado de boa informação, permitirá aos estudiosos da obra- seja do cientista, humanista, seja do poeta, aprofundar os seus conhecimentos.
Como Cristina escreve na Nota Prévia, Rómulo de Carvalho foi um Homem do Renascimento, o do século XX.
Na biografia é revelada a sua "vontade da ciência, da divulgação e do ensino" algo de que, pessoalmente, me lembro de ter beneficiado, ao ler os livros que o meu pai trazia, para eu ler.
Mas o encantamento da sua poesia já foi por mim descoberto: em Coimbra li Sophia de Mello Breyner, li Ricardo Reis, (sempre gostei deste heterónimo de Pessoa), António Gedeão, Miguel Torga, a par de Prévert e outros do meu convívio francês. 
Como se pode dizer tanto em tão poucas palavras?:
...
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos 
À confusão da harmonia.
(in Movimento Perpétuo)

A Poesia - espaço dado ao humano, no seu tempo, entre o caos e a harmonia - conceitos ao mesmo tempo abstractos, científicos, filosóficos (filosofia é conhecimento) e que podemos ler a par de outra obra-prima, desta vez de Sophia:
Ia e vinha 
e a cada coisa
perguntava
que nome tinha
( in Coral)

Rómulo / Gedeão alquimista da ciência, alquimista da alma.
Não me admirei, ao encontrar na vastíssima bibliografia que Cristina recolheu, um volume de 1947 sobre A Ciência Hermética, na Biblioteca Cosmos, n.55.
Já era um primeira aproximação.
Eu vejo agora, lendo este volume, editado mesmo a tempo do Ano Escolar e que desejo seja bem recebido, até como exemplo de vida de um homem que prezou acima de tudo o Ensino e a Educação como formas de progresso social, vejo agora, repito, como em pleno século XX houve em Portugal sábios da dimensão de um Leonardo da Vinci, e outros que já só se descobrem nos alfarrábios dos séculos XVI !
Perto do fim, há um episódio especialmente comovente, o do ovo, (já só casca guardada com cuidado) que um amigo oferecera à sua mãe quando do seu nascimento. Rómulo guardava esse ovo, que mostrava aos filhos, com ternura e um respeito também envolto em mistério. Cai-lhe das mãos, quebra-se em pedaços, como se da vida frágil se tratasse.
O que era? Figuração da Vida, da tal Pedra Filosofal, de que ele sabia o sentido, os outros não?
Há na biografia muito de evocação poética, como seria de esperar: é uma filha que recorda, é uma filha-escritora que dialoga com o passado e através dele nos fala..
Na biografia procura-se um sentido ao mesmo tempo de paixão e dignidade. A dignidade do Ser Humano nas suas múltiplas facetas.
Aprenderemos com este exemplo assim descrito?
Espero que sim.



Friday, October 05, 2012

UBI SUNT


Com a saudade de David Mourão-Ferreira, grande poeta, que publicou os meus primeiros poemas, aqui deixo um texto dele, que muito prezo, pois foi dedicado com amizade generosa!

Abraço: uma palavra a habitar!

Neste ano, em que não sei porquê se organiza, como se nunca tivesse existido um encontro Brasil-Portugal, quero lembrar que nunca foi preciso oficializar um conhecimento de longa duração e de muitas amizades estabelecidas, pelo menos, no meu caso, desde os anos 60!
Vinicius trazia o seu canto e encanto a Portugal, com ele vinham Chico Buarque e tantos outros, Nara Leão, Touquinho, dos últimos que vi, Ellis Regina, o sucesso era imenso, a música alegrava um país que precisava dessa emoção e alegria brasileiras.
Vinha o teatro de vanguarda: proibido, é certo, mas entretanto vinha...E para não falar depois da Revolução, das célebres telenovelas, que faziam parar os Conselhos de Ministros (talvez hoje precisassem de parar outra vez?)
Conhecíamos de cór os livros de Jorge Amado, a geração dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, a indescritível Macunaíma, a bela e intensa Clarice Lispector...e toda a outra poesia, que não cabe aqui, por ser tanta e tão de excelência. A modernidade vinha toda de lá, aqui recuperava-se um neo-realismo envelhecido!
Ocorre-me agora evocar Henrique Chaudon, que se define como poeta-marceneiro. Na Alemanha está a ser traduzido. Por aqui aguardo que alguém o descubra, como merece.
Artista também da técnica dos blogs, tem um blog: a terceira gaveta. Recomendo que se visite!henrique chaudon, busca no google.


Tríptico com melopeia

Sob a pele 
lento e surdo 
um lume. 
Pelas ruas 
somente a palha 
o velho cascalho 
das palavras.

Onde os claros, longos dias do Verão? 
Onde uns olhos amorosos, a chamar?

Tortos mortos rios
 as planícies devastadas. 
Pedra e cal 
e a mó moendo infatigavelmente.

Distante, muito além 
um obstinato fagote
recorrente e rouco.

Impossível não evocar aqui a Ballade des Dames du Temps Jadis, " de François Villon, com o célebre refrão: "Mais où sont les neiges d'antan?" que sempre acorre à memória quando a saudade do tempo que passou de repente nos ataca.
O nosso David Mourão-Ferreira também dialogou com este tema e este poema, em UBI SUNT.
Mas falo De Chaudon, o abraço é para ele e tantos poetas brasileiros que só esperam ser lidos!

Sunday, September 30, 2012

Pó dos Livros ao Domingo

Neste primeiro dia de domingo, com a Livraria Pó dos Livros aberta ao público, tive um reencontro feliz: com Italo Svevo, nas ed. &ETC., as Fábulas (capa e desenhos de André Ruivo).
Li outrora A Consciência de Zeno, obra-prima romanesca em que se nota, filtrada por uma ironia subtil, a influência de Freud, de quem o autor tinha traduzido a Ciência dos Sonhos.
Nascido em (1861-1928) em Trieste, cresce numa cultura atravessada por outras, como a alemã, a francesa e a italiana, de todas retirando o que de mais interessante e actual havia. Considerado precursor de Proust, e de Joyce, pela subtileza e pela criatividade da linguagem, é primeiro muito lido e traduzido e depois esquecido, como tantos outros.
Vale a pena ler este livro, pequeno de tamanho, elegante como todos os que a &Etc publica..
As suas fábulas são de grande actualidade....deixo-vos apenas com um exemplo:
3
O Senhor Deus fez-se socialista.
Aboliu o inferno e o purgatório e pôs toda a gente no paraíso, em pé de igualdade.Aí gozava-se o bem-estar de uma beatitude eterna.
Num dado momento morreu um Creso: ficou estupefacto por ser acolhido no paraíso. Mas logo se habituou à sua nova existência e bem rapidamente começou até a queixar-se.
-O que te aflige? perguntou o Senhor, colérico.
- Ah, Senhor! Manda-me para a terra! Aqui não é o verdadeiro paraíso; aqui não se vê ninguém sofrer.

Thursday, September 27, 2012

Amigos leitores,
Está on-line - agora é assim que os editores preferem vender- o meu livro, com o Pedro Gama e suas belas ilustrações,
O OUTRO LADO DA LUA, na página de Editora ESTAMPA.
Nestes momentos em que o cosmos maravilhoso se vai descobrindo, dia a dia, um conto para crianças e adultos, com alguma informação e muita imaginação bebida em lendas antigas é a porta para que todos se apaixonem pela noite. pela lua, pela astronomia.
A experiência de uma leitura em grupo, de uma avó, no Alentejo de céu límpido, rodeada de netos e amigos, despertou no fim muita discussão e curiosidade: afinal o menino, que se revela em sonhos, quando parte, regressa a um mundo imaginário ou à poeira cósmica de que todos somos feitos? (Leia-se morreu? )
Mas não: nada morre no mundo imaginário, tudo vive de muitas e variadas maneiras...
No dia seguinte as crianças fizeram os seus próprio desenhos, ao acordar, enquanto não saíam, para fugir ao calor...
Assim pode uma professora que goste de crianças inventar muito também , a partir deste livro (que nas informações objectivas foi relido por um astrofísico brilhante...)....e quanto à ilustrações tudo foi entregue à sensibilidade criadora de um artista como o Pedro Gama. a quem agradeço, do coração!

Thursday, August 30, 2012

William Blake, Songs of Innocence and of Experience


O pedido de um amigo Editor, José da Cruz Santos, fez-me voltar a Blake e à sua poesia, misteriosa e actual pelo desafio que lança à nossa imaginação.
Nesta obra Blake pretende mostrar, como diz, " the two contrary states of the human soul" - os dois estados contrários da alma humana, através das líricas da pureza inocente, canções de grande beleza rítmica, e no seu oposto as líricas misteriosas, intensas, quase perversas na inesperada inversão, do que apelida de canções de Experiência.
A Experiência é a percepção do Mal, no Universo criado, como se a mão de Deus fosse de repente desviada do seu verdadeiro primordial caminho.
A mais célebre das canções de Experiência é a do Tigre - e foi esta que o meu amigo me pediu para traduzir.
O Tigre como figuração do Mal: um mal absoluto, inexplicável, ardendo nos olhos de um animal de grande porte e nobreza. Saído da mão de um Deus não menos perigoso, cuja "outra face" é essa mesmo que o Tigre representa. Deus é um deus dividido, pois se dividiu na criação. E dele fazem parte o Bem e o Mal.
Blake, teósofo, visionário, pertencendo ao grupo de leitores de Boehme, sabe, sente, que a treva se esconde no coração da luz, e que na alma humana, como já Goethe dissera no Fausto, coexistem duas almas: a luminosa e a obscura.
Das traduções que conheço em língua portuguesa, a mais inspirada é sem dúvida a de Augusto de Campos, notável poeta e tradutor brasileiro. Pode ser encontrada pelo google.
Mas fiz a minha, para a edição do conjunto que Cruz Santos publicará na colecção "Oiro do Dia".

William Blake (1757-1827)
O Tigre

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta,
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria desenhou?

Em que céus ou profundezas
arde o fogo dos teus olhos?
E ele, que asas deseja ter?
Que mão ao fogo se atreve?

Qual o ombro, qual a arte,
que o teu coração torceu?
Ao começar a bater,
mão terrível, pés de horror,

que martelo e que corrente?
O teu cérebro, em que forno?
Que bigorna e que tormento
te prenderam ao temor?

Quando as estrelas suas lanças depuseram,
e o céu com as suas lágrimas molharam,
sorriu Ele perante a obra?
Ele, que fez o Cordeiro, também a ti concebeu?

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria em ti ousou?

(versão livre, 2012)

Wednesday, August 22, 2012

Chagall

Chagall, O Pintor e a Lua, aguarela de 1917.
O seu imaginário solto, antecipando o dos futuros surrealistas, com quem conviveu em Paris, permite que se entendam símbolos e arquétipos fundadores: veja-se como neste quadro é de um sólido corpo de terra-mãe que emana a forma do pintor flutuante no espaço azul da noite; e é a terra-mãe ou é a lua, que afinal o ampara, seios grandes redondos como de lua cheia ou seu reflexo?
Outro nome é Cybele: lua, sim, mas deusa primordial ao mesmo tempo, com seus rituais assassinos, que no quadro de Chagall não transparecem..
Ele na lua bebe a inspiração que o liberta dos pormenores das casas da cidade, bem longe, lá em baixo, reduzidas a casinhas de brinquedo da sua infância, nem sequer falta o camponês com a sua cabra (animal bem terrestre): da terra à lua, do sono (que a cortina de algodão, no lado direito do quadro, protege) ao sonho, e no sonho a recuperação de símbolos primordiais. A lua é um deles,  figuração da Sombra da alma, mas em Chagall extremamente suavizada.
Desta noite da alma nasce a inspiração.
Também aqui, em Shubert...

Saturday, August 18, 2012

A RUA

Na rua larga passeiam as mulheres
que arrastam pelo chão
o último vison e a última visão

casas fantasmas de tectos ideais
emergem da noite em nevoeiro
vermelhas azuis verdes amarelas
recém pintadas fugidas dum tinteiro

duas crianças brincam no passeio
duas crianças sós e sem asseio
mas com passeio largo
reservado para elas

ratos e gatos
jogam ao polícia e ao ladrão
e um cão de guarda fuma
o cachimbo da paz
que segura na mão

há sinfonias demasiado completas
a dançar no ar
(nuar: verbo irregular;
eu nuo, tu nuas, ele nua, nudismo geral)
e por toda a parte cavalgam
os cavalos de Chagall
transpondo o arco-íris de todo o pensamento
que é realmente mento
porque só pensa é fácil
o difícil é o verdadeiro e completo
pensa-mento
(mente? pergunta alguém
não mente, mento)

no restaurante há omelettes em chamas
servidas por bombeiros voluntários
e as banheiras estão cheias
de afogados mentais

a lápide de inscrição no cemitério
 diz apenas
a vida não deu pra mais!

(in Opus 1, ed. Ática, 1961)




Thursday, August 16, 2012

O ELÉCTRICO

Para a Rita Roquette de Vasconcelos ( que vê por trás das Máscaras...)

O Eléctrico

Era o eléctrico amarelo
cheio de homens e mulheres
recortados à faca dum papel
com caras de madeira
máscaras de olhos frios
pintados a gouache sem pincel

Era o eléctrico amarelo da noite
por fora tinha côr
por dentro estava cheio de rostos
macilentos
olhos de sono
revistas de amor

Era o eléctrico feio das viagens
a noite às costas
e o vento nas janelas
e pessoas que entravam e saíam por elas
ou ficavam sentadas
e de pé
a olhar estupidamente o espaço em frente
o espaço mais além que já não tinha gente

Wednesday, August 15, 2012

Robert Bréchon

A morte recente de Robert Bréchon (1920-2012) despertou na memória dos especialistas de Fernando Pessoa a biografia que Bréchon publicou e se tornou marcante pelo novo olhar que trazia sobre a vida e obra do nosso poeta. 
Mas poucos recordaram a sua biografia de Henri Michaux: 
HENRI MICHAUX, La Poésie comme destin (éditions aden, 2005) talvez ainda mais marcante para os estudiosos de Michaux, pintor e poeta cuja obra nos desafia ainda hoje, pela sua complexidade, e que Bréchon, que foi seu amigo, acompanha numa viagem de alma páginas adentro nesse seu livro. 
Começa por contar como o conheceu, e como diante dele se sentiu primeiro intimidado. E como pouco a pouco uma relação de iguais se foi estabelecendo.
Também eu conheci Henri Michaux : um privilégio que me emocionou profundamente.
Ele dirigia ao tempo (há muito tempo) a revista HERMES e eu já me interessava por matérias ligadas à simbólica hermética e tinha lido, em Paris, alguns dos livros de Michaux.
Escrevi-lhe, pedindo alguma orientação para o meu estudo e para as minhas leituras futuras (estava já a pensar numa futura tese de doutoramento).
Respondeu logo - ah diferença para os portugueses que não respondem nunca! - e recomendou-me um autor que eu não conhecia, tradutor de Jung, fundador da Revista Junguiana de Paris, Etienne Perrot, que ele conhecera e cuja orientação (alquimia junguiana) considerava ser muito mais útil para mim. 
Assim fiz, escrevi e depois travei conhecimento com E.Perrot, com quem mantive laços de orientação e trabalho durante muitos anos.
O que desejo salientar é o modo acessível e amável de Henri Michaux: tempos mais tarde, numa das galerias de Paris que expunha obras suas (as célebres Encres) haveríamos os dois de comentar a minha paixão pela alquimia e a ajuda inicial que ele me tinha dado.
Encontro na Biografia de Bréchon, para voltar a ele, muitos detalhes destes, que nos fazem gostar do artista, mas tanto ou mais do homem que foi, e do destino que assumiu como poeta.
Eu acrescentaria também pintor: pintou a alma dos seus poemas, como os poemas pintavam a sua própria alma, a sua energia por vezes descontrolada, mas sempre tão iniciadora (iniciática mesmo) nos segredos da alma: luminosos ou negros, como em certos momentos de abismo que viveu e descreve em obras como Misérable Miracle (1956)
Bréchon fala do destino de Michaux como poeta que ele mesmo foi: era poeta, discreto e falava pouco de si.
Deixo a minha homenagem, eu que o conheci antes que ele conhecesse Pessoa, mas já amando Lisboa, onde vivia.
E sugiro que se traduza para português esta sua obra: não haverá melhor guia para o destino poético de alguém como Michaux.

Monday, August 06, 2012


Escrito para quem gosta de contos, da noite, dos segredos da lua que fascinam as crianças. Com as inspiradas ilustrações igualmente "nocturnas" do Pedro Gama. Para ler em férias....e durante o ano!

Wednesday, July 18, 2012

Manuel Alegre II


José Gil, numa obra que gosto de recordar, A Imagem-Nua e as pequenas percepções (1996), abre com “A visão do invisível”  e dedica um capítulo em especial ao “Caos  e Quadrado Negro” (p. 135).

Interroga-se José Gil: “ Porque é que a percepção estética precisa de ao mesmo tempo conhecer e ignorar a forma como objecto? Se a percepção neutraliza o conhecimento, este último, ainda que neutralizado, permanence: o quadro mais abstracto conserva sempre alguma coisa de ‘figurativo’. Até mesmo no Quadrado Branco sobre Fundo Branco de Malevitch o olhar  reconhece alguma coisa, um ‘quadrado’ pintado sobre um ‘fundo’ falso: adivinham-se aqui formas e fantasmas de formas. O quadro mais informal mostra ainda pontos, manchas, contornos, ou materiais rugosos, pregueados, lisos” (p.136).

De modo que a perturbadora criação do Quadrado Branco e a do Quadrado Negro levam o pintor a considerar a ruptura “total e definitiva com o mundo do objecto” (p.138).

Nasce a arte abstracta, como Suprematismo.

Neste movimento, de descoberta e de anulação, o que acontece à imagem como representação?

Permite o anular da imagem dar lugar a novas formas ainda que não o desejem ser? Ou é imperioso que, para existir negação, haja primeiro alguma forma de real que se negue?

E como podemos, pintando, anular a pintura? Ou falando anular a palavra? Esvaziando o sentido? Procurando um sentido no Vazio criado, adivinhado?

Encontro numa poema recente de Manuel Alegre uma interrogação semelhante:
Depois do Branco
Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro

e se depois do muro não há onde

e se depois do branco é tudo escuro?


Quem sabe o que pode acontecer

quando ao verso já escrito outro se junta

e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?

Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?
(in NADA ESTÁ ESCRITO, 2012 )




Este poema sublinha uma contradição de fundo : 

a do branco com o escuro ( podia chamar-se negro, como na alquimia e teríamos claramente o jogo de opostos da albedo com a nigredo); a da afirmação (do verso escrito) com a pergunta (a dúvida).

Servem estas reflexões para o aprofundamento da definição de Imagem? Imagem como representação ou anulação de um real que na Arte perdeu o sentido?

Haverá sempre um momento em que a energia profunda de uma ideia poderá apropriar-se da mão que pinta, ou que escreve – e então nascerá uma Imagem: mais realista do que outrora ( com os surrealistas, por exemplo) ou mais abstracta, mas representando sempre a pulsão que impele o criador nesse seu gesto, que será sempre vivido como primeiro, primordial e fundador.

Sendo que este branco de Manuel Alegre, como o do Quadrado de Malevitch, pressupõe uma revelação que o pintor, no seu tempo, também teve. Não a da fusão intemporal de Rimbaud no seu poema, mas a da anulação objectiva, temporal,  que o branco sobre o branco permitiu, abrindo a imaginação dos artistas a novos e revolucionários conceitos de produção artística.
O Suprematismo de uns, abolindo o Simbolismo ou o Realismo de outros, está na base da produção dos Modernistas em geral; e aqui se poderia aludir ao exemplo de Fernando Pessoa e a um dos seus mais antigos e interessantes poemas, ALÉM-DEUS, datado de 1913. Lança uma mesma interrogação, com a mesma carga metafísica, ao olhar o rio Tejo:“O que é ser-rio e correr?
O que é está-lo eu a ver?”
A descrição do que sente conduz à imagem de “Vácuo”, o vazio que toma o lugar do momento ( o tempo) e do lugar ( o espaço). 
Desta anulação da consciência nascerá a experiência de Deus.Veja-se através de que passos:
“ Tudo de repente é ôco-

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo – eu e o mundo em redor-

Fica mais que exterior.



Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, idéia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus.

E súbito encontro Deus.”
Este Deus, secreto, escondido no escuro e no silêncio da alma, Essência que não se revela mas arrebata e absorve, como um buraco negro, levando à dissolução da consciência de si, na dissolução de todo o mundo exterior – não é um Deus que Malevitch ou outros dos seguidores tenham de verdade procurado. O que procuravam, no exercício da sua Arte, era antes como destruir a norma, que lhes pesava, de um Figurativo realista que se tornara obsoleto. E pelo apagamento da Forma recuperar o Sentido: um sentido, qualquer um, desde que aberto a todas as sensações (o que em Portugal seria o projecto do Sensacionismo). E por oposição, seguindo o mesmo modelo, recusando todas as sensações, pois a recusa de tudo é uma forma de inclusão.
No Poema O Silêncio, que antecede o que citei acima, Depois Do Branco, Manuel parecia adivinhar o que eu iria dizer. Que à interrogação corresponde o silêncio, e que a este, e só a este, como sabem os místicos, pode corresponder Deus.:

O Silêncio
Subiu ao cume da montanha e não viu Deus

desceu ao fundo do mar e não o viu.

Andou caminhos e caminhos
procurou no céu procurou na terra

na confusão e no barulho da cidade
no grande espaço aberto e limpo do deserto.
Procurou na palavra e perguntou aos livros
pediu à música pediu ao vento
mas nada achou mas nada ouviu.
Procurou no silêncio
e no silêncio viu a pedra branca.
Mas a pedra que fala não falava
e o silêncio era a única palavra.
(p.26)


Ao longo das outras 7 partes do livro, muita outra coisa acontece: o olhar que se demora na rua da cidade, na beleza do campo ou no vôo da gaivota, no desgosto de um falecimento ou de um extermínio cruel (o de Auschwitz), sem esquecer alguma evocação de amor antigo, ou memórias graves da História, antiga (Tróia) ou mais recente (a morte de Trotsky).Percebe-se que há neste poeta uma cultura literária, política, artística (Malevitch, com os seus quadrados) e religiosa até no que encerra de mais fundo: a meditação da noite do silêncio e dentro do silêncio uma Palavra, única, a do Poema.
Não é por acaso que se escolhe como epígrafe um dizer de San Juan de la Cruz: “ aunque es de noche”….(p.41).
Não se estranhe pois que eu escolha, de SETE, o poema Sombra e Forma (p.84):
O poema há-de emergir da sombra
florir no zero e no silêncio
o poema que está dentro
da forma por nascer
o poema que já é
antes de ser.

Retomo aqui a reflexão sobre a Imagem/Representação, tal como nos pode surgir a partir do Quadrado Negro; o negro, bem sabiam os alquimistas, absorve e afunda; mas dele emerge o branco (da Pedra, ou do Poema) que liberta e explode.