Friday, November 27, 2009

Unsuk Chin



Para quem goste de música contemporânea, mas sobretudo para quem tenha feito de Alice no País das Maravilhas o seu livro de culto, deixo a sugestão da mais bela prenda de Natal:
da compositora coreana Unsuk Chin, actualmente vivendo na Alemanha ( em que outro país fariam uma produção tão inspirada como esta? ) a ópera ALICE in WONDERLAND, apresentada na Bayerische Staatsoper.
O design dos figurinos, das máscaras, das marionettes, é tão belo quanto surpreendente e valoriza a história que é contada, a música que é ouvida, absorvendo-nos como num sonho de que não nunca mais apetece acordar.
Unsuk Chin, que escolhe livremente os motivos dentro do tema principal, decide abrir e fechar a sua composição com dois sonhos seus que enquadram a aventura de Alice, e deste modo a tornam ainda mais pessoal e interior do que já era pela mão de Lewis Carroll.
Uma citação de Proust ajuda também o ouvinte a perceber a intenção da compositora:
"We don't receive wisdom: we must discover it for ourselves after a journey that no one can take for us or spare us" (Marcel Proust).

E claro, a outra citação escolhida só podia ser a de Carroll na boca de Alice:
"Who in the world am I?
Ah, that's the great puzzle!"

Assim, de novo pela mão de Alice, caminhamos pela interrogação da consciência e do ser.
No meu ensaio sobre TEATRO E SOCIEDADE fiz referência à Alice de Bob Wilson, produção estreada em Lisboa anos atrás; agora temos Unsuk Chin, que podemos apreciar em dvd, e em breve teremos a ALICE de Tim Burton, que vai estrear em 2010 e podemos desde já encomendar.
Mas a lição que eu tiro é a do que pode um livro inspirador e fundador como este - muito mais para adultos do que para crianças - oferecer de novo à meditação dos seus leitores do século XXI.
A resposta é simples: tudo.
Tudo o que diga respeito à curiosidade, do ser e do saber; à coragem de fugir à rotina dos tempos arriscando caminhos que não sabemos como se abrirão ou fecharão diante de nós.
Caminhar é uma palavra boa.
Arriscar, para se poder ser o que se é e não o que os outros querem que sejamos, é outra palavra boa.
Os tempos precisam de Beleza, e de coragem para essa beleza.
Ainda que a rainha nos mande cortar a cabeça.

Wednesday, November 11, 2009

A Mão de Luísa Costa Gomes


Luísa Costa Gomes, com aquela criatividade feita de desprendimento (ou o que quiserem..) que já lhe conhecemos desde os primeiros contos com que nos sobressaltou, há muitos anos, apresenta agora ILUSÃO
( ou o que quiserem) romance (ou o que quiserem), nas edições D.Quixote.
Numa prosa rápida, como os tempos, incisiva de humor inteligente e distanciado, Luísa sabe muito bem o que quer: descrever uma sociedade onde impera uma inquietação que oscila entre o pueril e o golpismo, uma sociedade onde tudo e todos são de consumo rápido, e rapidamente descartáveis, o que pode acarretar alguma infelicidade.
ILUSÃO não é título de acaso, é indicação de leitura: vive-se em Portugal num espaço de ilusão, atravessado por um tempo que a seu tempo imporá a realidade, seja doce ou amarga.
Recomendo a leitura, podemos rever-nos mais uma vez nesta obra em que uma geração muito diferente da nossa (digo da minha) é exposta com subtil crueldade, (ou o que quiserem) fazendo esboçar o sorriso de quem se sente cúmplice desta autora que renovou e continua, pelos vistos, a renovar a linguagem com que descreve o mundo que a rodeia.
Não falta energia nesta prosa, nem alegria, e ainda menos cultura: por entre as peripécias vão passando algumas memórias da nossa literatura, a propósito de alguma peça de teatro, de algum guião a ser preparado, etc. o que me leva a repetir o que me farto de dizer nas aulas: sem cultura (neste caso artística, literária) não há criação original inovadora. E também só com muita cultura se pode brincar à vontade com o que a cultura é ou não é, atravessando a vida, a nossa e a dos outros (ou o que quiserem)...
Lê-se, e chegados ao fim sentimos, como o herói conturbado, que se "subiu um degrau".
Mais não digo, é obra para ler!

Wednesday, October 28, 2009

A Terceira Mão

Cada livro de Manuel Gusmão é um acontecimento no nosso mundo literário.
A TERCEIRA MÃO vem no seguimento de cinco outras obras (uma delas é libretto de ópera Os Dias Levantados, para o compositor António Pinho Vargas) .
Em todas a mesma densidade poética, o mesmo sentido da palavra recolhida, contida, o que aumenta a tensão do que é dito e não dito, e obriga o leitor a reler até ao ponto de já não desejar entendimento mas simplesmente a música e a fusão com esse outro universo transcendente.
Andam por este livro alguns amigos de memória querida e que eu também conheci, li sempre e admirei: Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Carlos de Oliveira (não é republicado, estudado, porquê?)
Nos anos sessenta, de que tenho saudades, nós líamo-nos uns aos outros, acompanhávamos as obras que iam sendo publicadas, reconhecíamos sem regatear o génio de cada um.
Mas falemos de Manuel Gusmão: esta é uma obra que recupera memórias e as transforma, recupera leituras e as transforma. Sem medo, pois na obra poética é tudo transformação.
Em O Futuro Outrora (p.23 e segs.) sinto que passa Rilke, com as suas Elegias, com o sopro que é mais do Anjo do que dele, "a mão do vento" , "um ritmo outro nas árvores invadindo a partitura" , um canto que se afunda num rio "demasiado fundo, demasiado lento, demasiado antigo".
O rio da memória, o canto de "estranhas aves"- sereias na verdade, "nomes velozes" que ferem, expondo as cicatrizes "do tempo que não cessa", como o rio que não pára, como a vida que se esquece.
Cito, para acabar, o final da última estrofe, a letra g da poética partitura:
...
Nunca saberás dizer como se move sobre as águas a verdade
- a verdade que dança no teu corpo - e no seu teatro
sopra as almas como o vento as telas.

Mas para que uma última vez possas dançar
podemos, sim, pôr aqui o fogo
e a árvore da música: a vibração da sua haste

comunica-se; E o mundo estremece: a vibração
do mundo; quando não estamos a olhar.

Ainda há pouco tempo outro grande poeta fez vibrar a palavra com o seu fogo, rodar as altas esferas com o seu canto, erguer o corpo da vida no altar mais secreto:Herberto Helder.

Monday, October 26, 2009

O PARAISO

Uma discussão recente em torno da Bíblia (Antigo Testamento) com algum impacto mediático mas inútil do ponto de vista de um verdadeiro esclarecimento - levou-me a procurar na minha biblioteca um livro que aqui recomendo.
É de agradável leitura, e é principalmente o livro de um conhecedor cujos argumentos são fundamentados e não fruto de um capricho momentâneo.
Refiro-me à obra de Jean Delumeau, UNE HISTOIRE DU PARADIS, ed. Fayard, 1992, de que talvez haja tradução portuguesa.
O autor começa por citar Marjorie Reeves, a grande estudiosa de Joachim de Flora, cujo pensamento marcou, desde a Idade Média, muitos dos sonhos de utopia de que se alimentou o ocidente. Cita-a para dizer isso mesmo "os sonhos dos homens constituem uma parte da sua história e explicam muitos dos seus actos". Continuando com um poeta que é do nosso tempo e será de todos os tempos, Henri Michaux ( já me ocupei dele nos meus blogs) o autor cita-o para dizer que "não somos um século de paraísos". O que o leva precisamente à questão que é nuclear no seu livro: estudar a história e testemunho dos nossos antepassados, para reconstituir na medida do possível o que terá sido o sonho dessa felicidade eterna prometida e tão depressa perdida.
Delumeau mantém-se no círculo do ocidente, fazendo dos séculos XIV-XVIII o seu território cronológico privilegiado. Mas começa, como não podia deixar de ser, pelas grandes tradições que vão de Moisés a Homero e a São Tomás de Aquino.
Não me quero alongar, o que proponho é esta leitura e a humildade de quem aborda os grandes temas civilizacionais que ainda hoje condicionam o nosso imaginário, na literatura como na arte, e os nossos comportamentos.
A imagem que escolhi representa, extraída de um missal do século XV, o Paraíso Terreal de que Adão e Eva são expulsos pelo Anjo. Do mesmo século temos um Livro de Horas (de Rouen) representando Adão e Eva no Paraíso Terreal. E várias outras representações poderiam ser escolhidas, sempre descrevendo um paraíso terreal, materializado com o primeiro par, com os animais primeiros da mesma criação,etc.
Assim se constitui de algum modo a imagem de um espaço ideal que terá existido e que talvez um dia possa vir a ser redescoberto. Espaço caracterizado por uma abundância feliz, de todos os pontos de vista, materiais e espirituais. Primeiro mito fundador.
Com a expulsão outro mito irá ser constituído: opondo-se a uma eternidade primeira, uma efemeridade, uma mortalidade garantida também de vários pontos de vista, materiais e espirituais. Todos os bens, a começar pelo bem da vida, se tornaram perecíveis. Assim se define a realidade da condição humana, agora mais distante da divindade criadora.
O Jardim terá de ser cuidado, a horta semeada e regada, os animais guardados, o corpo da mulher poderá dar à luz o seu primeiro par: dois filhos, cada um a seu modo servindo o deus seu protector. Porque este deus não está longe, observa e acompanha.
Um dos filhos, pastor cuidadoso, figura o tempo de uma civilização agrária, que pede sacrifícios animais, neste caso, mas noutros serão mesmo sacrifícios humanos; o outro filho é fratricida, ou melhor, evoca ainda o tempo do sacrifício humano que garante mais prosperidade, e ao fugir de um crime que aquele deus já parece abominar, transforma-se no primeiro fundador de cidades.
Surge assim a cidade como espaço de oposição ao campo, e muito em especial aqui ao paraíso terreal ( que tinha sido um Jardim).
Na cidade a humanidade evolui, cresce, socializa-se, e o comportamento dos homens passa a ser avaliado por uma dimensão ética antes menos sublinhada. Antes o grande valor era a obediência, agora será a consciência moral.
A cidade deve ser uma cidade justa, como diz Platão, criando na REPÚBLICA a primeira grande utopia social.
Para um leitor moderno, a CIDADE E AS SERRAS, de Eça de Queiroz, poderá ser uma releitura também ela carregada de sentido, como estas que fazemos da Bíblia. O que encontramos em Eça é a visão pessoal, moderna, laicizada, dos mitos da nossa memória colectiva.

Sunday, June 28, 2009

Manuel Aurora, O Menino o Homem e o Rio


Perto das férias de Verão, com mais tempo para ler, a minha proposta é que se escolham livros de História, Biografias ou Autobiografias, Memórias - algo que tenha a ver com uma transmissão que ajude a recordar o que foram determinados tempos, as pessoas e as suas circunstâncias, na aventura sempre apaixonante da vida.
Escolhi desta vez uma autobiografia, a de Manuel Aurora, por várias razões: fala de si com muita simplicidade, descrevendo como nasceu e onde, como cresceu, que educação recebeu, e de que modo a sua vida primeiro se integrou e depois, por assim dizer se desintegrou nos tumultos variados do PREC (Processo Revolucionário Em Curso, como foi designada a tentativa de conquista do poder pelos comunistas a seguir à Revolução de Abril).
Manuel escreveu como quem fala, à noite, à roda de uma mesa de família ou de amigos, contando como faziam os antigos contadores de estórias. 
Diz dessa autobiografia que foi "romanceada": mas o artifício serviu apenas para encobrir os nomes verdadeiros das pessoas com que se cruza, ao longo dos anos de outrora e de agora; de resto podemos considerar o seu relato o relato fiel de um homem que precisou de fazer um balanço de vida, o seu, para nessa espécie de espelho ver reflectido um país e os seus naturais, a evolução-revolução-degradação ( ele assim entende o estado do país neste momento) as boas e más decisões tomadas por uns e por outros, as questões de lealdade, amizade e carácter - tudo o que ainda hoje se discute com paixão justificada, porque algumas desilusões, para quem teve esperança, foram demais.
Este é um livro cuja oralidade de estilo logo atrai.
O Menino, o Homem e o Rio.
Um livro escrito para os seus filhos, família, amigos e para aqueles leitores que tenham a curiosidade de saber como viveu quem de repente, nos piores momentos da Revolução de Abril, viu cerceados e perseguidos os seus direitos a um pensamento livre, ao exercício honesto da sua profissão, tendo de fugir para o Brasil com a família. Do Brasil, que ficou a conhecer como ninguém, temporária pátria  de que nos fala ora com algum sentimentalismo ora com distanciado humor, são muitos os momentos que poderíamos escolher para dar a ideia do que ali o autor viveu: desde a marmita que leva para o almoço, num primeiro trabalho, até à quase orgíaca degustação de vinhos com um outro patrão que gostava de partilhar com ele as aparentes subtis apreciações que ia fazendo pela noite fora. E Manuel sem se coibir: se sabia o que dizer dizia, se não sabia inventava, e tudo para mais uma noitada de boa disposição (ou saudade adiada):
" A minha defesa era dissertar sobre o pouco que sabia de vinhos, misturando a conversa com a criação de cavalos lusitanos, passando pelo porco preto alentejano, e ao de leve sobre os rojões e as diversas formas de fazer bacalhau. Mais uma taça, e eu agora dissertava sobre a indústria têxtil do Norte ou sobre os vidros da Marinha Grande, e entretanto já havíamos pasado pelos uísques, depois eram os champanhes e eu, quanto mais falasse menos conseguia beber. Pela meia-noite já estávamos nas despedidas à porta de casa, cada um com o seu copo na mão, a discutir , filosoficamnete, se a Alice no País das Maravilhas era virgem ou atrasada mental..." (p.255).
Entre momentos dolorosos e momentos jocosos se vai estruturando uma narrativa que nunca deixa o leitor aborrecer-se, nem perder-se no caminho: o caminho de uma vida.
De regresso a Portugal, ainda que sem fazer acusações nem guardar ressentimentos, decidiu falar desses como de outros assuntos, sendo  muito especialmente interessantes as descrições da cidade do Porto dos seus anos de menino, a cidade de Lisboa já dos anos 60, e a sua eterna pátria do coração, Ponte de Lima, com o seu rio e as muitas aventuras que as suas águas foram presenciando.
Rio que ele mantém vivo, a embalar-lhe o destino.
 

Friday, June 19, 2009

O Milionário de Lisboa



Com este título editou agora José Norton a biografia ficcionada do Conde de Farrobo, figura ilustre do nosso século XIX, injustamente votada ao esquecimento: a capital, como escreve o autor, não tem sequer uma rua com o seu nome. 
Há já alguns anos que entre nós as ficções de inspiração histórica se tornaram frequentes: mas nem todas possuem a alta qualidade de um trabalho prévio de investigação, feita em arquivos, nem sempre de fácil acesso, como é agora o caso.
A extensa e útil bibliografia revela que a documentação estudada ajudou a dar corpo e substância a esta obra, em que José Norton não cedeu à facilidade de, a coberto do género ficção, ignorar a realidade histórica e social que a suporta. Fez assim uma verdadeira biografia, ainda que ficcionada, desta personagem singular cujo nome conhecemos talvez por causa dos jardins do Conde Farrobo, do Jardim Zoológico, mas pouco mais.
Cito a nota da capa:
" A vida luxuosa do homem mais rico de Portugal.Uma existência repleta de histórias de amor, beleza, ostentação, pequenos luxos, prazeres e traição. Um final inesperadamente dramático, ao estilo das melhores óperas do século XIX".
Deixo de imediato uma sugestão: que o José Norton escreva o guião para uma série televisiva, ou o libretto para uma ópera...neste momento em que à cultura e à arte tudo parece faltar .
Referi o cuidado da investigação, mas sublinho agora a qualidade da escrita: fluente, elegante, misteriosa quanto baste no desenho e desenrolar da intriga, e acima de tudo amiga do seu leitor. 
(ed. Dom Quixote/Leya, Lisboa, 2009)

Friday, June 05, 2009

Hein Semke (1899-1995) por Teresa Balté


Em terceira reedição ampliada, Teresa Balté apresenta agora a vida e obra do pintor Hein Semke  que, desde a chegada a Portugal vindo da Alemanha, fez do nosso país a sua pátria, o seu permanente espaço de criação. Uma criação que abrange pintura, escultura, desenho,  cerâmica, gravura - já para não falar da sua escrita filosófica e poética, num natural complemento do seu longo e multifacetado percurso artístico. 
Como escreveu José Augusto França impunha-se conhecer esta documentação, "para a história": mas impõe-se mais, conhecer a sua obra, para a verdadeira história da criação artística europeia e portuguesa.
Semke chega a Portugal com a herança e a marca de um expressionismo feito da revolta e do idealismo místico que encontrávamos, nas primeiras décadas do século XX, na poesia e na produção dramática mais marcantes da Alemanha do tempo. Penso em Kokoschka, por exemplo: e vejo ecos da sua intensidade na côr e no dramatismo de alguma pintura de Semke. Mas há outros, como Barlach, muito de sua preferência, e esta linhagem tem de ser apreendida pelos críticos para fazerem jus à sua obra, no que tem de herança e de ampliação original.
A sua cultura era imensa e abarcava a filosofia, a literatura, o pensamento religioso de muitas e diversas tradições, que o levarão a fazer grandes livros de arte de que destaco o da Índia, entre outros.
A sua curiosidade pela tradição popular leva-o também a estudar as formas da criação dita primitiva - interessou-se aqui pela obra de Rosa Ramalho, a criadora de Barcelos que se tornou célebre com os seus Cristos, os seus animais, os seus Presépios e Ceias, hoje peças de colecção. Picasso fazia o mesmo em Paris, estudando as formas da estatuária africana.
Interessante é ver como a um artista todas as manifestações interessam - não há arrogância no olhar de um criador, há curiosidade e interrogação: ele interroga o mundo, que lhe responde, e das muitas respostas será feita a sua obra.
Como escreve Teresa Balté no prefácio, esta reedição foi pensada para 2005, por ocasião dos dez anos passados sobre a morte de Hein. Mas o tempo não conta, para a divulgação da arte e de um artista.Encontramos aqui muita matéria para ler e meditar: " trata-se de uma cronologia - de factos, textos e imagens " como diz a autora, contibuindo para o essencial do levantamento da obra.
Trata-se, na minha opinião, de um valioso documento histórico  e sociológico, pois o Portugal do meio artístico é aqui dado a conhecer, através dos artigos e críticas do tempo, no que têm de melhor e de pior.
Pois não nos iludamos: se nunca é fácil o caminho do artista, mais difícil se torna ao enfrentar, num país pequeno, à época fechado ainda sobre si mesmo, a mesquinhez de uma sociedade inculta, pouco viajada (não podendo por isso "comparar"  e conhecer é comparar), não podendo e por vezes não tendo mesmo querido, reconhecer a importância da originalidade da criação e das múltiplas formas e técnicas de abordagem que Hein Semke, o Wanderer tranquilo, à época foi expondo e propondo ao nosso meio cultural e artístico.
 Agora temos o livro, num gesto de evocação merecida.
Termino com um fragmento de um seu poema de 1949:
...
Não sou artista
Nem sou poeta:
Sou sonhador
E tudo o mais também.

É isto que nos faz falta, no século agora XXI: a coragem do sonho.

(colecção arte e artistas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 2009)

Saturday, May 23, 2009

Ana Hatherly

Nesta obra de Ana Hatherly, agora publicada, achei especialmente interessante o último dos sonhos que descreve, não só por ser o último, mas especialmente pela sua forte carga simbólica, fazendo como que um contraponto ao primeiro, datado de 1959; entre esse e o último descrito passaram quase cinquenta anos. Uma vida.
Vamos ao primeiro:
" 5/3/59
É a aparição duma estranha criatura, de dimensões ciclópicas, mas de que só vejo a cabeça. É a cabeça dum velho, de grande cabeleira e barbas, uma espécie de Adamastor, que no meio de nuvens me fala dizendo: a vida que vives agora é apenas uma das tuas muitas encarnações; numa outra vida foste outra coisa e na tua primeira encarnação o teu nome foi Tahelda Nimbo.(Ele pronunciou o H aspirado)".
E agora o último, de Julho de 2008:
"Sonhei com Platão. Sonhei que tinha estado em casa dele.Eu andava à procura de casa, uma casa grande com grandes vistas. Visitei algumas mas nenhuma me servia, até que me levaram à casa de Platão. Ele então aparece, com suas grandes barbas brancas. Mas a casa não tinha grandes vistas, tinha só um quintal grande onde, em vez de plantas, havia grandes lápides de mármore. Mas não eram lápides funerárias, eram só enormes lascas de pedra, todas rabiscadas. Então eu exclamei: Ah! Que sítio mais desolado!" 

Numa primeira leitura, quer do primeiro quer do último sonho, o que sobressai é a imagem de um sábio, um Animus forte (o Adamastor) que de início transmite uma doutrina, da encarnação, mas acompanhada de um epíteto ininteligível, o do seu primeiro nome. Podemos locubrar sobe Nimbo, mas não é esse o essencial da mensagem. O essencial é que é dito à sonhadora que a sua vida é complexa, mais do que ela julga, e que o seu caminho se encontra em aberto. Se fossemos recorrer a uma leitura alquímica este velho, de cabeça enorme, de barbas brancas, poderia ser considerado o Pai da Obra; uma obra incipiente ainda, em curso, mas já de forte marca espiritual: o velho, além das barbas da sabedoria, fala do meio das nuvens.
Um longo ciclo parece fechar-se (mas nada se fecha nunca, tudo evolui e se transforma) com o último sonho: Adamastor é Platão, o filósofo das Ideias, um dos pais que os alquimistas consideram, a seguir a Hermes, havendo como se sabe ligação estreita entre o imaginário neo-platónico e alquímico, desde os primeiros séculos da nossa era.
A sonhadora procura uma casa grande e de grandes vistas: a que o caminho da platónica erudição lhe oferece não lhe serve: tem um quintal onde não há plantas mas "grandes lápides de mármore".
Contudo é afastada a ideia de que possam ser lápides funerárias: são enormes lascas de pedra, rabiscadas.
Torna-se claro que no percurso de vida, de procura, tendo adquirido conhecimentos, experiência, erudição, a sonhadora busca algo mais (o uso repetido do adjectivo grande ): as plantas, que deviam ter crescido no quintal; em vez delas há pedras, grandes lascas rabiscadas com sinais que não são decifrados, como no primeiro sonho não tinha sido decifrado o sentido do nome da primeira encarnação.
A Pedra, descrita como lascada (por polir) e a exclamação desolada da sonhadora, revelam que  não está concluído o caminho, que a Pedra tem de ser trabalhada, e que só depois disso a Casa, o Centro, se revelará como seu perfeito local de acolhimento.
O Animus condutor continua presente e forte: primeiro de energia, depois de sabedoria. Alguma coisa me diz que o devíamos relacionar com o Abraxas dos gnósticos, o daimon de que Jung se ocupou nos Sete Sermões aos Mortos.
Mas falta, e ainda bem! continuar o caminho. Que só pode ser o da criatividade: a tal planta que ornamentará o quintal, transformando-o em jardim.

Friday, April 10, 2009

Pessoa Hermético


É hoje mais fácil do que outrora, no meu tempo, quando no início da década de setenta me interessei pela influência hermética na produção poética de Fernando Pessoa, aprofundar tais estudos. 
A marca era visível, explícita, em certos poemas, mas até ser possível estudar os livros da sua biblioteca particular, na casa da meia-irmã Dona Henriqueta Rosa Dias e passar a pente fino os milhares de documentos preservados na célebre arca, eram mal aceites as argumentações a que, dizia-se, "faltava suporte". 
Com estudo e paciência, e devido à amável disponibilidade de Dona Henriqueta, que sempre recebeu com grande gentileza quem a procurava, chegou finalmente o momento de provar que Fernando Pessoa fora um bom conhecedor da chamada filosofia hermética, tanto quanto do Rosicrucismo e da Maçonaria, mais do Rito Escossez Rectificado (de estrutura simbólica alquímica) até do que do Grande Oriente propriamente dito.
Os livros da sua biblioteca eram prova disso, sobretudo os dos Mestres Arthur Edward Waite, Hargrave Jennings e Oswald Wirth.
E acima de tudo os célebres papéis da Arca, dispersos, que era preciso ir lendo um a um e reunir para que fizessem um todo, ainda que parcial, fragmentário, mas com sentido próprio e inteligível. 
Comecei por publicar um pequeno ensaio sobre o poema CHUVA OBLÍQUA: nele, para além do experimentalismo modernista, que é marca pessoana, se pode descobrir uma estrutura de cariz alquímico e simbólico, que lhe confere uma singularidade especial. Aí se encontram, em pares de opostos, os elementos terra-água, sombra-luz, consciência-inconsciente (presente-passado) a par de um exercício mental de recuperação de uma infância perdida e de imagens de sublimação como o círculo da bola redonda que escorrega pela costas abaixo da criança que brinca.
Haverá que ler o poema todo, é óbvio, e integrá-lo no contexto adequado.
Eu deixo apenas a citação de uma carta que o poeta escreve a Adolfo Casais Monteiro, em 14 de Janeiro de 1935:
"Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm".
Sobre o caminho alquímico muito haveria a dizer, havendo em Portugal, como nos outros países da Europa, desde a Idade Média, conhecimento dos principais tratados, árabes e latinos, que circulavam de mão em mão.
No caso de Pessoa as leituras certas foram as que indiquei acima e  sobretudo a seguinte obra, de extrema importância: 
G.R.S.Mead, THRICE-GREATEST HERMES, Studies in Hellenistic Theosophy and Gnosis, London and Benares, The Theosophical Publishing Society, 1906.
Aqui fica a indicação, para quem deseje iniciar-se. Não haverá outra forma, além do estudo, em biblioteca onde se escondem as fontes...

Tuesday, April 07, 2009

Thursday, February 26, 2009

Literatura Brasileira


Havendo agora uma especial atenção à literatura brasileira, sobretudo depois da obra de João Ubaldo Ribeiro ter ganho o Prémio Camões, evoco uma grande universitária especialista das nossas literaturas: Luciana Stegagno Picchio.
Com ela estudei melhor do que nunca a lírica medieval portuguesa, a história do nosso teatro,  a poesia brasileira com destaque especial para Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Vinicius, entre tantos outros. 
Com ela, depois da publicação deste pequeno grande livro, voltei a ler Clarice Lispector, que Luciana classifica de "escritora lunar". 
Em oito capítulos, abrangendo o tempo que decorre "Das Origens a 1945", temos um guia que nada perdeu da sua actualidade.
A prosa é clara, directa e prazenteira como é raro serem os livros de estudo.
Merecia o olhar atento dos editores e uma reedição.
 

Monday, February 09, 2009

Antonio Brasileiro


Henrique Chaudon, poeta amigo, deu-me a conhecer este poeta: Antonio Brasileiro. 
Da sua Antologia Poética escolhi alguns textos que podem ajudar a ver/ler o seu percurso e a sua evolução  no caminhar da escrita.
Esta antologia cobre os anos 1968-1996, talvez esteja na hora de ver outra, igualmente interessante e completa.
Acompanhamos mal, entre nós e por culpa nossa, o percurso dos poetas brasileiros. Já foi Henrique Chaudon quem antes me "apresentou" à poesia de Jayro, poeta tão camoniano e ao mesmo tempo tão moderno que a sua leitura me comoveu profundamente. Tem a nossa melancolia, e penso como é possível, a não ser porque a linguagem poética não tem fronteiras e a dimensão universal de um poeta se afirma em todo o lado, por uma cultura interiorizada pelo estudo, pela leitura, pelo saber, enfim, pelo gosto de ler e de escrever. 
Em Jayro, sem perda da originalidade própria, do seu cunho pessoalíssimo, reencontro Camões, e algo como que da melancolia do fado, que a voz de Amália espalhou por todo o mundo. 
E o mesmo me acontece agora, com a poesia não menos expressiva e bela, de Antonio Brasileiro.
Da selecção mais recente, 1988-1996, escolhi Cantar da Amiga, que nos traz tanto da nossa lírica medieval à memória:

Um pouco de mim está em teu olhar, amiga.
Bem sabes que é assim.
Gosto de pensar que sabes que é assim:
em teu olhar reflecte-se o que sou,
o que em mim te quer perdidamente.

Um pouco de mim é teu olhar, amiga.
É mesmo tudo assim, pouco sabemos
desses imensos rios em nosso peito.
Pouco sabemos, quase nada mesmo,
dos rios que escuros correm em nosso peito.

O discurso poético aborda discretamente o escuro da alma, "os escuros rios que correm em nosso peito". Não é preciso dizer mais, sobre a saudade, a inquietação que unirá sempre amigo e amiga, e que já Dom Dinis, na lírica da amigo nos fizera antever. 

Cálice
A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
 do mar.

Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.

Toma-a (como se toma
 um cálice de rosas)
na mão.

Ah, esta elegância, as rosas na mão, como as rosas na fronte coroada de um Ricardo Reis, ou as rosas da Rilke, cuja picada, reza a história, o haveriam de matar. 
Em Soneto do Amor Profano encontramos então de verdade o eco de Camões, mas não é por isso que o poema é tão belo. A sua beleza provém de um eco mais profundo, da lucidez que se quer distanciada, do poeta:" eis que, perdidamente já pressinto/ e quanto e quanto- que em amor, perdidos / todos os lances, não há como obtê-lo / de outro modo que não por sacrifícios / e eis que este, pois, gratuita dádiva, / me chega às mãos de um modo tão profano,/ que quase certo estou de que, se o tenho, / já não o tenho por justo e dadivoso, / mas por amor que é fruto só de engano.../E não me engana um amor quando enganoso".
 
Continuando nesta viagem, Tudo o que Somos é a manifestação, ou o lamento, do pouco que somos, do "apenas":
....
Viver é um sonho,
não esqueçamos.

Viver é a sombra,
o assombro, o apenas.

/ tão frágeis somos !
Frágeis e imensos.

Sinto-me tocada tocada pelos ecos de Camões e Pessoa, considerando ser uma honra estas memórias que outros conservem da nossa tradição poética. Fazendo jus ao que o poeta nos diz, noutro poema: " Debruço-me sobre poemas/ para os engravidar de eus" (Sobre as Pedras do Caminho).
Caminhando ao contrário, como esta antologia foi organizada, vemos na década de sessenta a produção de uma poética surrealista, de que saliento o Estudo 91 :

Os deuses estão sentados e cochicham.
O olho verde da cadela dorme.
E vela.

(E chove; e um cogumelo
cresce sobre mim.)

Minha mãe, cadê minha égua?

(E meu cavalo era a égua
e o general se molhou na chuva imensa.)

Os deuses riem
e suas bundas fofas estremecem.
E o olho da cadela é verde como um sapo.

Eu penso logo nas minhas próprias leituras e paixões desse tempo, os felizes anos sessenta, carregados de esperança e ilusões:Boris Vian, Jacques Prévert, Chagall, Michaux, e tantos outros, para quem o livre imaginário da arte poderia ser a marca de uma liberdade maior, que chegaria.

Estudo 204
Vejo o vento que sopra nas árvores
e estou aqui.
Há uma sensação de paz antiga
no vento que sopra nas árvores.

(Vou plantar esperanças no quintal
e decidir o que farei com a vida -
com esta e com a outra.)

Estou aqui e o mundo está aqui.
Olho as folhas movendo-se nas árvores
e alguma coisa silenciando no coração.

Com António Brasileiro vamos aos clássicos, vamos aos modernos e aos modernistas...viajamos pelas palavras dentro, recuperando as nossas próprias memórias. Goethe, Caeiro, em poemas sobejamente conhecidos, e agora Antonio Brasileiro, conversando com eles enquanto conversa consigo mesmo, comnosco, e decide de sua vida: esta, magnífica, de poeta. Quanto à outra... os deuses de bundas fofas lhe perdoarão qualquer impertinência ! 






 

Wednesday, February 04, 2009

Lavar, a obra da Mulher



Do calendário da Moleiro editores, que reproduz um magnífico códice alquímico, eis o que no mês de Fevereiro nos é aconselhado: trabalhar, lavando a matéria da obra, limpeza que conduzirá do negro ao branco e ao vermelho. 
A lavagem, além da utilização do elemento água, um dos quatro das operações alquímicas, permitindo a solutio, a dissolução (sendo que solve et coagula é o lema dos alquimistas), liga ainda a mulher, o elemento feminino, ao processo que acabará por unir feminino e masculino, água e fogo, ou mercúrio e enxofre, no caminho da sublimação.

Friday, January 16, 2009

Meditações III


Sobre o simbolismo alquímico do abutre.
Dom Pernety, no Dictionnaire Mytho-Hermetique, obra do século XVIII (Bibliotheca Hermetica,1972),que contém "a explicação das alegorias fabulosas dos poetas, as metáforas, os enigmas e os termos bárbaros dos filósofos, explicados" refere-se deste modo ao abutre:
"Ave de rapina muito voraz,aparentada à águia. Os Antigos tinham consagrado o abutre a Marte e Juno. Apolo foi apelidado de Vulturius, ou Apolo dos abutres. A Fábula representa Prometeu agrilhoado a um rochedo do monte Cáucaso, a ser devorado por um abutre, por ter roubado o fogo do céu. ...Hermes disse ' eu sou o abutre pousado no alto da montanha, gritando sem cessar, ajuda-me que eu te ajudarei. E ainda: eu sou o branco do negro, o citrino do branco, e o vermelho do citrino, para indicar as sucesssivas cores da Obra" (p. 366).
Na Atalanta Fugiens, de Michael Maier, obra do século XVII, encontramos esta gravura de um abutre alquímico, segurando uma fita que diz: ego sum niger albus citrinus et rubeus: eu sou negro, branco, amarelo e vermelho, definindo as cores da Obra alquímica de transformação.
O negro ( a nigredo da alma de que nos fala Jung, o espectro da depressão a meio da vida) marca o início da obra de transformação; o vermelho, rubedo, a conjunção final, muitas vezes representada pelo abraço do sol e da lua, ou de outro par de opostos, que podem ser o rei e a rainha, o dia e a noite, o céu e a terra, o fogo e a água, etc.
O Epigrama que acompanha a gravura reza assim:
No cume duma alta montanha
Um abutre grita sem cessar: dizem-me negro e branco;
Sou ainda amarelo e vermelho e não minto.
Sou também o corvo que sabe voar sem asas
Na noite tenebrosa ou em pleno dia.
Um ou outro será a cabeça da tua obra.

Entenda-se :
corvo negro ou abutre serão a imagem da obra que o adepto persegue.
Um, porque negro, marcará o início ; o outro, porque de múltipla coloração, o seu progresso até ao momento da conjunção final, que a rubedo confirma. 
O interessante, neste jogo das gravuras alquímicas, é que se abrem, ampliando o sentido, como acontece nos haiku,  poemas também eles condensados, e em evolução a partir de um dado momento fundador. 



Meditações II



Continuando com os haiku de David Rodrigues: é interessante verificar como o seu trabalho poético se faz do particular para o universal, exigindo do leitor uma capacidade de meditação própria, que o faça ampliar os múltiplos sentidos, como um alquimista (neste caso da metáfora viva) no trabalho da Pedra, que tem de passar pela fase da amplificatio para que se torne de verdade completa e actuante. 
O poema, sobretudo nestes casos, possui uma carga simbólica tanto mais  forte quanto mais arquetípica se revelar; no poema se faz a ponte, no poema se unem os extremos por vezes conflituosos como nos ensinam o Yi King, ou o Tao Te King, nascendo desse jogo de oposições subtis uma nova espiritualidade, um novo horizonte de perfeição (nunca alcançado). Assim as esferas naturais, do homem no seu mundo e do universo na sua essência e nas suas manifestações, se abrem à nossa sensibilidade e ao nosso entendimento.
Dizia eu do particular ao universal: é esse o segredo do poema sobretudo quando, como nos haiku, se vive basicamente de uma ideia, de um sentimento, de uma imagem-força, a tal metáfora viva de que fala Ricoeur. No caso dos poemas de David Rodrigues, isso torna-se particularmente evidente: da romãzeira contempla a romã, ou o seu bago; da oliveira descobre as azeitonas, olhos escuros contemplando aves, etc. Curiosa é a metáfora do barco / abutre (n.69,in Estações Sentidas): 

Na madrugada
o barco escuro emboscado
como um abutre.

A metáfora da vida humana, ou do corpo humano, que é frequentemente o barco,veja-se a Narrenschiff, de Sebastian Brant, ou o Bateau Ivre de Rimbaud, conduz, na sua união à imagem do abutre ameaçador, não à vida, mas à morte, à sua ameaça latente. 
A meditação oferecida é de cariz filosófico, como a que se vê na doutrina taoista, milenar, e que ainda hoje faz sentido, como busca constante e humilde do único bem precioso que se pode tentar adquirir: a sabedoria, consistindo no conhecimento de si mesmo, limite e limiar. 
Na gravura de cima, a barca dos imortais afrontando o mar revolto da vida, podemos ver a garça, no seu vôo branco de sublimação anunciada.
 Mas no caso de David, as garras do abutre evocam, indirectamente, outros perigos, outros receios, como o canto e  as garras das míticas sereias de que Ulisses se libertou.
Há muitos tipos de ameaça à fragilidade da vida: a calmaria do poema de Goethe não é menos assustadora. Se no mar do haiku de David quase se ouve o barulho ameaçador da onda, ou do vôo cruel do abutre, no mar de Goethe é o silêncio que traz o pressentimento de uma não menos temida morte próxima:

Calmaria
Reina profunda paz na água,
Imóvel o mar repousa,
E o barqueiro vê, com ânsia,
A calma superfície à sua volta.
Nenhum ar de nenhum lado.
Terrível quietude mortal!
Na imensidão da distância
Nem uma onde se move.

Goethe, o velho sábio, conhecia bem o pensamento oriental e a filosofia hermética: disso dão testemunho as suas obras de grande vulto, como o Fausto , e outras, menos conhecidas, mas igualmente importantes, como é o caso do ciclo do Divã Ocidental-Oriental:
Se estou só
Não posso estar melhor.
O meu vinho
Bebo-o sozinho,
Ninguém me proíbe de o fazer,
E tenho assim os meus próprios pensamentos.

Deste vinho, da solidão criadora,  bebe David Rodrigues, mostrando as afinidades, que Goethe chamaria de electivas (como na sua novela)entre os tempos, as vozes, as harmonias  do canto melodioso das esferas.

Termino com uma evocação de John Blofeld, autor marcante, na década de sessenta, que viajou pela China pre-comunista, visitando mosteiros budistas e taoistas, e que de um sacerdote taoista recebeu a seguinte explicação:
"A nossa doutrina não é uma religião, mas um caminho para o Caminho (Tao)...os nossos yogas e meditações começam por gerar um estado de tranquilidade, de modo a que, no silêncio dos nossos corações, possamos apreender o Tao dentro,à volta, acima e abaixo de nós.Procuramos alimentar a nossa vitalidade e prolongar a nossa vida para ganharmos tempo e podermos, com a sublimação necessária, atingir os nossos mais altos propósitos...Assim se chega à preparação da Pílula Dourada,que alguns, mal informados, julgam que se obtém por processos alquímicos, quando na verdade só se obtém no interior do próprio corpo..."
Pensamento idêntico é expresso por um filósofo hermético ocidental, Robert Fludd, no século XVI:
" Transmutai-vos de seres mortais em pedras filosofais vivas...cada homem piedoso e justo é um alquimista espiritual".  
O mesmo se pode dizer, sem ofensa, dos poetas cujo imaginário busca, na contenção do poema um caminho outro, que não o do falar disperso, avulso, sem sentido.

Mais leituras: 
J.C.Cooper, Chinese Alchemy, The Taoist Quest for Immortality, 1984



Thursday, January 15, 2009

Meditações I



A leitura de dois livros de David Rodrigues - ambos de Haiku ordenados ao sabor das horas, dos meses, das estações do ano, do tempo enfim, pois é do tempo que as formas surgem e a ele regressam, no seu eterno ciclo - trouxe-me à memória o poema de Borges sobre uma versão do Yi King, a Bíblia do oriente que Richard Wilhelm e Carl Gustav Jung deram a conhecer ao ocidente:
Para una versión del I King
El porvenir es tan irrevocable
Como el rígido ayer. No hay una cosa
Que no sea una letra silenciosa
De la eterna escritura indescifrable
Cujo libro es el tiempo. Quien se aleja
De su casa ya ha vuelto. Nuestra vida
Es la senda futura y recorrida.
El rigor ha tejido la madeja.
No te arredres. La ergástula es oscura,
La firme trama es de incesante hierro,
Pero en algún recodo de tu encierro
Puede haber una luz, una hendidura.
El camino es fatal como la flecha.
Pero en las grietas está Dios, que acecha.

A lição, continuada no conjunto de ensaios dedicados ao Yi King, nesta edição de que me sirvo (Erfahrungen mit dem I Ging, ed. Diedrichs Gelbe Reihe) é a de que da mais recôndita prega do tempo, do destino, surge a luz: luz que se condensa numa ideia, num sentimento, numa imagem poderosa, ora suave ora fulminante. Assim é o caminho, com as suas variações. Deus nem sempre espreitará do escuro de uma fenda, ao contrário do que escreve Borges, mas a condição humana sempre se revela.
A marca do Tao Te King também está presente no filosofar tranquilo que encontramos nos Haiku de David Rodrigues, embora eu tenha pressentido primeiro a ânsia a que o Yi King dá ( ou não dá) resposta.
Passemos aos seus livros, de edição cuidada, bom papel, letra agradável de ler - o objecto livro é importante- apela aos sentidos, da visão, do tacto, influenciando a relação que teremos com ele, antes e depois de o ter lido.
Publicado em 2007, ESTAÇÕES SENTIDAS, 111 HAIKU;
Publicado em 2008, RESPIRAR, 101 KAIKU 
Os títulos já indicam a fidelidade ao género literário, que se mantém nos poemas, na delicada concentração dos ritmos e das imagens.
As Estações Sentidas abrem com o Outono, a estação por excelência de toda a melancolia, fecham com o Verão que parece, numa apetecida sensualidade, permitir que o poeta se abra às emoções da paixão, no capítulo final, Sentidas, onde se faz do corpo a imagem condensada de um cosmos estelar:
103
O corpo
haiku feito de universo
e sentimento
Adiante noutro poema, e tal  como em Pessoa, ou em Caeiro (sua variante de desejada inocência), é na ignorância que o mundo se revela, a iluminação se dá. A ignorância, que se perde com a noção da consciência de que se é (e de que ser é uma realidade implacável), é glosada neste haiku 109:
O lago não sabe
até que chegue o vento
quantas ondas tem.
Meditando, lendo e relendo, como os haiku nos pedem, somos levados a concluir que todo o destino, ( o tempo) é impenetrável e que talvez seja melhor que assim permaneça, para que não se destrua a ilusão de alguma felicidade. Essa é a ilusão com o autor fecha o livro, no haiku 111:
Hoje ainda não há
toda a felicidade.
Só amanhã
Fecha-se a obra, abrindo-se a uma esperança que o futuro dirá se não foi vã.
Em 2007, a revista japonesa Ginyu escolheu como um dos sessenta  melhores haiku desse ano este poema, belíssimo pelo que tem de nosso (além do caminhar...):
Pedras das calçadas
como estilhaços de sonhos
deixados para trás.
 David Rodrigues tem uma paleta variada, que inclui todos os elementos da natureza que lhe prenderam, a dado momento, o olhar: como na alquimia, encontramos a terra, a água (lago, mar) o fogo ( que o sol ou a luz figuram ) o ar ( o céu, o vento ); e encontramos ainda,  na abundância da terra, as árvores, os arbustos, a flôr, o fruto, oferendas da mãe antiga, do corpo universal. Mais interessante ainda, o bestiário simbólico, de que ambos os livros dão testemunho e por onde passa quase toda a escala animal, do paciente caracol à pequena joaninha, da inocente borboleta ao canário ou ao melro,  às gaivotas ou ao falcão, sem esquecer o elefante, não menos significativo, na sua grandeza, do que o minúsculo pirilampo, cuja luz é afinal um marco do caminho:
Ver os pirilampos
como sabendo o caminho
 a seguir na noite. 
 (n.77,Estações Sentidas)
Se estivessemos a fazer uma Renga ( outro género, em que vários poetas dialogam por via dos poemas)  diria, tentando acrescentar sentido:
Relâmpagos de noite:
múltiplos são os caminhos. 
Mas, continuando com David: os seus haiku são pontos de emanação de um sentido que já contêm, imanente, como no ponto inicial o universo já se continha no todo que veio a ser. A fracção que é o poema, ou melhor, a fractura, situa-se precisamente entre a potência e o acto, movimento que a leitura repetida, mais até do que a escrita, permitem adivinhar. Há um momento de iluminação, que não tem de ser como a de Angelus Silesius, mística e comovente de ingénua entrega; a fulguração quase ou mesmo só panteísta, da contemplação da natureza e da centralidade do olhar do homem nela, faz igualmente parte da iluminação que pela obra nos é dada.
Coloco estes poemas de David entre dois poemas dos meus poetas favoritos: Sophia de Mello Breyner, que me acompanha desde a juventude, e Paul Celan, já na maturidade a que fui chegando:
Coral
Ia e vinha.
E a cada coisa perguntava
que nome tinha.
( Sophia )

Entrada de Violoncelos
...
tudo é menos do que
é,
tudo é mais.
  ( Celan )



 


Wednesday, December 24, 2008

Uma relíquia


 A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner, musicada por Fernando Lopes Graça, com as vozes de Eunice Munõz, Francisca Maria, António David e Luís Horta, e direcção de Artur Ramos.
Poderá haver melhor?  
Para todos os que gostam de literatura e arte.

Tuesday, November 25, 2008

Marquesa de Alorna(1750-1839)



Vanda Anastácio apresenta os SONETOS da Marquesa de Alorna numa bela e cuidada edição onde se ocupou da fixação e organização do texto, com uma  Introdução, notas e bibliografia que ajudam a bem entender e situar a obra e a vida de uma mulher notável no seu e em todos os tempos.
Alcipe, a quarta Marquesa de Alorna, ousava lidar com temas de todo o género, como escreve Fernando Mascarenhas, seu descendente: " desde a educação dos jovens, não só criticando a mesquinhez do que lhes era ensinado no seu tempo, como avançando as suas próprias ideias sobre pedagogia, até ao próprio sanctus santorum do mundo masculino- a política!"
Podemos ler, na Introdução, o que foi a vida da Marquesa, de seu nome Leonor de Almeida Portugal, como prisioneira de Chelas; o que foi, de seguida, a sua vida como mulher "das Luzes", numa Europa culta, mas onde ainda era raro brilharem as mulheres; o papel que desempenhou na Política, de 1793 a 1815;o regresso a Lisboa, onde vem a morrer, em 1839.
De Chelas se conhecem 44 sonetos, sendo o último dedicado às Musas, e daí o interesse de o comparar com outro, de Goethe, seu contemporâneo, que se autobiografou como Filho das Musas. 
As Musas ainda conservavam o seu estatuto de condutoras de almas, de paixões, de suspiros, por muito que nos Salões se discutisse pedagogia, filosofia ou política.

ÀS MUSAS

Co'a frauta agreste os beiços compremindo,
Desde que alva a manhã se despertava,
Ante Febo submissa me prostrava,
O sublime furor ao Deus pedindo.

Iam-se os Céus co'a clara luz abrindo,
Morfeu ao mundo alegre costas dava,
E Délio, sem mostrar que m'escutava
A rápida carreira prosseguindo.

Sobre a tripode em vão triste me sento,
Corro os três tetracordes sobre a lira,
Nenhum iguala a voz do meu tormento.

Musas cruéis, se aquele que delira
Mil vezes em vós acha acolhimento,
Porque não confortais a quem suspira?

A autora alude ao mito de Apolo, aqui chamado Febo, segundo o qual o deus concedia aos poetas, por meio de um furor sublime, uma súbita e incontrolada inspiração. 
Mal acordava, e o sono (Morfeu) perdia, tentava a jovem compôr a música que lhe pudesse alegrar o coração. Délio, outra figura mítica, conduzia o carro do sol, que surgia na manhã clara.
Mas nem flauta nem lira conseguem animar a poetisa. Sente-se abandonada pelas Musas, que parecem não lhe reconhecer a existência.

Diferente é o tom do poema de Goethe, igualmente dedicado às Musas:

O Filho das Musas (1822)

Percorro bosques e campos
levando a minha canção,
e assim vou pr'a todo o lado!
Com medida
 e a compasso
tudo gira à minha volta.

Ansioso aguardo as flores
 que vão brotar no jardim
ou nos raminhos das árvores.
Saúdam a minha canção,
e quando o Inverno regressa
ainda eu estou a sonhar.

Lanço a minha voz bem longe
sobre o gelo mais distante,
onde floresce o Inverno!
Também essas flores se vão,
e novos amigos farão
nas aldeias lá do alto.

Quando encontro sob as tílias
jovens a repousar,
encanto-os com o meu canto:
os jovens enchem o peito,
e as moças dançam contentes,
respeitando a melodia.

Vós dais asas aos meus pés,
 levando-me, vosso eleito, 
a correr montes e vales,
 pr'a longe da minha casa.
Ó belas Musas graciosas, 
quando repousarei nos braços da minha amada?
(versão Y.C.)


Goethe apresenta-se aqui como o favorito das Musas, que não lhe dão sossego, fazendo-o correr montes e vales com a sua melodia, encantatória, que alegra corações e desperta neles os amores e nostalgias que o próprio poeta sente. 
Um outro poema seu, o Canto Nocturno do Viandante,  completaria bem o seu desejo de uma paz que não chega: 

Tu que és do céu,
e todo o sofrimento e dôr acalmas,
que ao duplamente infeliz
duplamente conslas,
-Ah, estou cansado de tanta agitação,
de que servem a dôr e o prazer?-
doce paz,
vem, ah vem aquietar-me o coração!
(versão Y.C.)

Goethe teve a sorte de um compositor como Schubert transformar em obra de arte o seu poema dedicado às Musas.
Para a Marquesa de Alorna aguarda-se ainda uma inspiração igual. A música eleva a um outro patamar de Beleza e Emoção o suporte do canto do poema. Mas Portugal não tem ainda a suficiente preparação, o suficiente desejo de fazer do Ensino da Música uma verdadeira necessidade, para além das vocações que felizmente ainda vão surgindo (com que dificuldade...).
 
O poema da Marquesa contrasta com o de Goethe por várias razões: foi escrito, bem como os outros deste ciclo de Chelas, para consolar e entreter o seu pai, preso às ordens do Marquês de Pombal, com a acusação de ter participado, ainda que indirectamente , no suposto atentado contra o Rei Dom José; tem marca de estilo algo juvenil, muito próxima das leituras que o pai lhe aconselhava, a começar pelos clássicos e a continuar com Camões, o expoente máximo da criação poética na arte do soneto; e é de tom  bem feminino, de melancolia suave, paciente, o que se explica não apenas pela influência camoniana, mas sobretudo pela situação de prisioneira no Convento de Chelas, vítima também ela da perseguição movida à sua família. Como lemos no estudo de Vanda Anastácio, foram dezanove anos de cativeiro que, embora no seu caso permitisse visitas e bastante convívio, nunca tinha longe o verdadeiro horizonte de um castigo injusto e  impiedoso:
"Note-se que o encerramento das três senhoras (a mãe e as duas filhas do Marquês de Alorna) numa casa religiosa foi determinado pelas autoridades políticas como um equivalente da prisão, e que este era um meio correntemente usado na época pela sociedade civil para castigar, pressionar, ou simplesmente controlar os comportamentos da população feminina".
Outro pormenor interessante, que mostra bem como as "Letras" numa mulher não eram apreciadas, é o facto, que Vanda também narra, do pai da jovem poetisa não apreciar muito o que ela fazia...

Esta obra, delicada, merece mais atenção.
Talvez sob a forma de prenda de Natal.


Wednesday, October 15, 2008

Herberto Helder


Ao Herberto Helder, sempre

(depois de ler A FACA NÃO CORTA O FOGO, capa de Ilda David, ed.Assírio e Alvim, Lisboa, 2008; um conselho amigo: comprem, roubem, peçam emprestado e não devolvam nunca)

Ah, essa faca
não corta o fogo
mas corta
o coração da pedra
florescendo
em palavras-pétalas 
de ouro

 e corta a veia
no fio
do horizonte

deixa escorrer 
um delicado
 sangue

voz abafada

grito nascendo

dessa faca
no corpo
desse fogo


Wednesday, October 08, 2008

Erdnah /Perto da Terra



Lançado agora em Leipzig pela Erata, bilingue, de bolso, para ir mais depressa de mão em mão, podendo ser lido em qualquer lado, no metro, em casa, no jardim, com as fotos do editor, que é também escritor e fotógrafo de arte.
Um livro à margem, com paisagens do corpo, paisagens da terra, paisagens da alma.
Em tradução e edição de amigos: assim, carinhosamente, circula melhor a poesia.