Friday, January 16, 2009

Meditações II



Continuando com os haiku de David Rodrigues: é interessante verificar como o seu trabalho poético se faz do particular para o universal, exigindo do leitor uma capacidade de meditação própria, que o faça ampliar os múltiplos sentidos, como um alquimista (neste caso da metáfora viva) no trabalho da Pedra, que tem de passar pela fase da amplificatio para que se torne de verdade completa e actuante. 
O poema, sobretudo nestes casos, possui uma carga simbólica tanto mais  forte quanto mais arquetípica se revelar; no poema se faz a ponte, no poema se unem os extremos por vezes conflituosos como nos ensinam o Yi King, ou o Tao Te King, nascendo desse jogo de oposições subtis uma nova espiritualidade, um novo horizonte de perfeição (nunca alcançado). Assim as esferas naturais, do homem no seu mundo e do universo na sua essência e nas suas manifestações, se abrem à nossa sensibilidade e ao nosso entendimento.
Dizia eu do particular ao universal: é esse o segredo do poema sobretudo quando, como nos haiku, se vive basicamente de uma ideia, de um sentimento, de uma imagem-força, a tal metáfora viva de que fala Ricoeur. No caso dos poemas de David Rodrigues, isso torna-se particularmente evidente: da romãzeira contempla a romã, ou o seu bago; da oliveira descobre as azeitonas, olhos escuros contemplando aves, etc. Curiosa é a metáfora do barco / abutre (n.69,in Estações Sentidas): 

Na madrugada
o barco escuro emboscado
como um abutre.

A metáfora da vida humana, ou do corpo humano, que é frequentemente o barco,veja-se a Narrenschiff, de Sebastian Brant, ou o Bateau Ivre de Rimbaud, conduz, na sua união à imagem do abutre ameaçador, não à vida, mas à morte, à sua ameaça latente. 
A meditação oferecida é de cariz filosófico, como a que se vê na doutrina taoista, milenar, e que ainda hoje faz sentido, como busca constante e humilde do único bem precioso que se pode tentar adquirir: a sabedoria, consistindo no conhecimento de si mesmo, limite e limiar. 
Na gravura de cima, a barca dos imortais afrontando o mar revolto da vida, podemos ver a garça, no seu vôo branco de sublimação anunciada.
 Mas no caso de David, as garras do abutre evocam, indirectamente, outros perigos, outros receios, como o canto e  as garras das míticas sereias de que Ulisses se libertou.
Há muitos tipos de ameaça à fragilidade da vida: a calmaria do poema de Goethe não é menos assustadora. Se no mar do haiku de David quase se ouve o barulho ameaçador da onda, ou do vôo cruel do abutre, no mar de Goethe é o silêncio que traz o pressentimento de uma não menos temida morte próxima:

Calmaria
Reina profunda paz na água,
Imóvel o mar repousa,
E o barqueiro vê, com ânsia,
A calma superfície à sua volta.
Nenhum ar de nenhum lado.
Terrível quietude mortal!
Na imensidão da distância
Nem uma onde se move.

Goethe, o velho sábio, conhecia bem o pensamento oriental e a filosofia hermética: disso dão testemunho as suas obras de grande vulto, como o Fausto , e outras, menos conhecidas, mas igualmente importantes, como é o caso do ciclo do Divã Ocidental-Oriental:
Se estou só
Não posso estar melhor.
O meu vinho
Bebo-o sozinho,
Ninguém me proíbe de o fazer,
E tenho assim os meus próprios pensamentos.

Deste vinho, da solidão criadora,  bebe David Rodrigues, mostrando as afinidades, que Goethe chamaria de electivas (como na sua novela)entre os tempos, as vozes, as harmonias  do canto melodioso das esferas.

Termino com uma evocação de John Blofeld, autor marcante, na década de sessenta, que viajou pela China pre-comunista, visitando mosteiros budistas e taoistas, e que de um sacerdote taoista recebeu a seguinte explicação:
"A nossa doutrina não é uma religião, mas um caminho para o Caminho (Tao)...os nossos yogas e meditações começam por gerar um estado de tranquilidade, de modo a que, no silêncio dos nossos corações, possamos apreender o Tao dentro,à volta, acima e abaixo de nós.Procuramos alimentar a nossa vitalidade e prolongar a nossa vida para ganharmos tempo e podermos, com a sublimação necessária, atingir os nossos mais altos propósitos...Assim se chega à preparação da Pílula Dourada,que alguns, mal informados, julgam que se obtém por processos alquímicos, quando na verdade só se obtém no interior do próprio corpo..."
Pensamento idêntico é expresso por um filósofo hermético ocidental, Robert Fludd, no século XVI:
" Transmutai-vos de seres mortais em pedras filosofais vivas...cada homem piedoso e justo é um alquimista espiritual".  
O mesmo se pode dizer, sem ofensa, dos poetas cujo imaginário busca, na contenção do poema um caminho outro, que não o do falar disperso, avulso, sem sentido.

Mais leituras: 
J.C.Cooper, Chinese Alchemy, The Taoist Quest for Immortality, 1984



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