Wednesday, December 27, 2023

Agnus Dei

 

Agnus Dei

(ouvindo o Requiem de Mozart

 Era o cordeiro de Deus

mas não foi salvo.

Deus não interrompeu

o sacrifício

do filho bem-amado

o sangue teria de escorrer

para que o corpo fosse

transformado

e o Adão primordial

pudesse ter perdão

Saturday, December 16, 2023

 Na Quinta das Lágrimas

 De novo se pode amar

naqueles jardins

as árvores tão antigas

ainda carregam memórias

mas há sombras e recantos

no espaço mais alargado

que tornam a fonte feliz

depois do amor derramado

outrora foi côr de sangue

foi uma dôr do passado

agora é só luz e beleza

jardim de amor encantado

 

Y.K.Centeno

(Para a Cristina Castel-Branco

 16 de Dezembro, 2023)

Thursday, November 30, 2023

 

Yuja Wang e Gautier Capuçon

(O Cisne de Saint-Saens)

 

Na água adormecida

desliza o Cisne

de pena branca

sedutora e suave.

Vem buscar a Amada

que ali não o esperava

e quando ele chega

e se revela Deus

já não a encontra ali

já tinha sido levada

por uma asa mais negra

inesperada

 

1 de Dezembro, 2023

Tuesday, November 28, 2023

 Granada

I

Em Granada de noite

junto aos jardins do Alhambra

os jovens que se amam

tão quente ainda e tão suave

o momento que em breve

cessará

caindo noutro tempo

II

É tão fria a velhice

o sangue não circula

o coração não bate

não existe o desejo

que já nem é memória

da emoção perdida

naquela noite quente

tão suave de outrora


Y.K.Centeno

 5 de Dezembro, 2023

 

Tuesday, November 21, 2023

 Haiku da simples velhice (para o Miguel Real)

Dizemos

que bom, estou viva!

Mas não estamos,

devagar a Vida 

já começou a tirar

as coisas de que gostamos

Y.K.Centeno

21 de Novembro, 2023 

Monday, November 13, 2023

Jorge Reis-Sá, Todos os dias, ed. casa dos ceifeiros, 2023

 Hoje em dia, não todos os dias, mas de vez em quando, como ultimamente, o que me surge para ler parece ter sido escrito de propósito para mim, para mais uma leitura que não me deixe esquecer como ler é importante. Mantemo-nos vivos, por via dos outros que se ocupavam da vida, no seu tempo.

Estamos perante a reedição do que foi o primeiro romance de Jorge Reis-Sá. É raro um autor que deseje  recuperar o que foi a sua primeira tentativa, poética ou romanesca, ou porque a considera ingénua, ou imperfeita,face aos progressos que fez, e conheço alguns, que não citarei, que até omitem, na sua bibliografia, esse primeiro título.

Mas aqui não foi o caso.

 Jorge não renegou a sua primeira narrativa, feita de episódios que têm a contenção dos contos, sendo que sempre achei a arte do conto a mais difícil de todas, precisamente pela capacidade de dizer com menos um todo que ali está contido, do sentido do momento que ali se viveu, e onde é contado.

Eu, falando por mim, confesso que não releio nunca o que escrevi. O que em cada moemnto tinha de ser dito, foi dito, e assim ficará, porque o meu impulso é de seguir em frente, procurar o que há para além do dito, tentando dizer algo mais, ou outra coisa, que reflicta o momento em que vivo. Vivemos em cada momento uma espécie de totalidade que nos aguarda, ao escrever, que não tenha repetição, que seja única, ali mesmo, ainda que difícil de explicar, como a misteriosa afirmação de Deus a quem o interpela sobre quem é ele: eu sou aquele que é. Prefiro esta designação, em vez da usual eu sou aquele que sou. Nesta podemos inferir que ele simplifica a existência do Ser, sou assim como sou e não tenho mais nada a dizer. Uma espécie (perdoem-me o atrevimento...) de aguentem, ouvido na política da indiferença. Já eu sou aquele QUE É alarga o conceito de SER a uma misteriosa universalidade, eterna, de que Heidegger se ocupará longamente no SER E O TEMPO. Aquele que é, é eterno no eterno rio do Tempo, na vibração do cosmos, e está dada uma resposta que não aquieta, mas antes inquieta para sempre aquele que faz a pergunta.

O autor escolheu para epígrafe uma citação de Carl Sagan, o sábio que ilustrou e antecipou gerações que se debruçaram sobre os mistérios de um cosmos eterno face a face com a vida, a existência que é nossa, em que dia a dia todos os dias se materializam, parecendo comungar de uma esperança de eternidade que Sagan refere como desejada, mas reconhece como provavelmente impossível. Tudo no decurso dos dias, todos eles, nos dão a ver o fio da efemeridade, do nascimento à morte. 

É ilusão julgar que alguma coisa de nós, ideia, sentimento, memória que deixemos irá alguma vez perdurar. Um pouco, sim, mas não para sempre. 

Volto a esta obra de Jorge Reis-Sá, que chegou até mim, agora, depois de tantos anos. Alguma coisa nela deixou marca e temos de ler e descobrir o que foi. A forma, como se diz ? O conteúdo? como se diz ao querer determinados conceitos fixados que o Modernismo aboliu por completo, nos anos vinte da Europa? Eu diria que a fusão de ambos, conteúdo com um sentido herdado do neo-realismo detalhado, cuidando do ambiente, da descrição cuidada de personagens e acontecimentos relativos a cada momento descrito, e forma que de facto inova, na estrutura da narrativa entrecortada por reflexões que obrigam a desvio do pensamento do leitor, da época que é de memória de outros tempos, para o presente de agora. E é por essa necessidade de trazer o passado até  ao agora dos nossos dias, todos os dias, que alarga a dimensão da narrativa e deixa a marca, aquela ideia, sentimento, memória, por pequena que fosse, de que falava Sagan. 

Nisto reside o interesse e a actualidade desta obra, num momento em que diários e memórias, recuperação e transversalidades, se tornaram actuais, renovando o prazer de reler o que outrora foi escrito.

Logo no Índice temos a indicação de que estamos perante o esforço de recuperar, reflectido numa prosa cuidada, de um tempo que remonta ao passado, e se divide em fases: a Aurora, a Manhã, o Almoço, a Tarde, o Crepúsculo, o Jantar e a Noite. Para que se perceba que estamos no recuperar dos tempos de uma vida, nada seria melhor do que esta partição de capítulos. O tema, então, é aqui o Tempo, atravessando o ser, os diversos seres que a escrita materializa ao descrever as situações  e os comportamentos de cada interveniente. A progressão da vida, os incidentes do quotidiano vivido na existência mais comum ou mais complexa. Gosto especialmente do modo como o narrador é seduzido, ao longo das páginas que correm, pela imagem-memória de uma criança que por ali se atravessa e o leva a dizer que essa criança é o mlehor que se tem. Pois através dela se recupera a infância que também já se teve, e embora longínqua se torna viva e presente.

Alguém, não me lembro onde, fez referência negativa ao uso da palavra moço numa prosa actual. Não sei porquê. Está em perfeita harmonia com o realismo dos ambientes descritos, desde a casa, ao campo, às galinhas, ao ranger das madeiras, tantos outros pormenores marcantes num neorealismo ali exercitado. Sou do tempo em que na Tavira da minha avó Rosa ouvia dizer, dos rapazes, os moços, ou os mocinhos, se eram mais pequenos, e das meninas as moças, ou as mocinhas, era um modo de dizer carinhoso e adequado aos tempos. 

O que me leva ao elogio da escrita, nesta narrativa de visão e divisão: não cai em elaborações de roupagens estilísticas a despropósito, é realista, sim, mas directa e despida de arrebiques que se usam tantas vezes apenas para encher mais páginas...

Quando a narrativa, mesmo e sobretudo de evocação é genuína, nada mais lhe faz falta. Basta a fidelidade ao que se viveu e se recupera de novo. Com os detalhes necessários, que enquadram o ambiente e as personagens e emoções da altura, apenas talvez com a tal marca de que falava Sagan, o desejo de que mesmo do pouco que somos algo que seja muito permaneça. 

Y. K.Centeno

Lisboa, 2023     






Thursday, November 09, 2023

OS ANJOS DE RILKE, AGORA

 Quem se eu gritasse

me ouviria

de entre as hierarquias

dos Anjos?

E se algum deles

de repente

me tomasse nos braços

e me apertasse contra o peito

 num gesto de grande amor ?

Eu morreria de certeza

pela resposta 

a um apelo gritado

uma pergunta não feita

tal o terror

que perguntar inspirava. 

O silêncio é o domínio

dos Anjos

o pavor a reacção dos humanos

se quebram esse pavor

interrogando.

Deus não permite 

a interrogação

apenas o aceitar submisso

que até aos Anjos impõe.

Que espero eu então 

do meu grito calado

além de um silêncio

que os Anjos

não interrompem?

Morreriam

desfeitos na sua luz

na sua esfera distante

onde o silêncio

e apenas o silêncio

se poderia ouvir.

Como eu 

ficariam imóveis

feitos pedra

cadáveres

aguardando sepultura

numa cova imperfeita.

Ninguém viria a tempo

de estender a mão 

limpar a testa gelada

ou dar o beijo final

da compaixão.

Fiquemos todos então

guardados

resguardados

do temível abraço

do grito

que ainda se afoga

no peito

sem liberdade

nas pregas

da sua oculta ondulação

Y.K.Centeno


 






Tuesday, November 07, 2023

António Caeiro, O que é a Filosofia.

ANTÓNIO CAEIRO, O QUE É A FILOSOFIA?

 A explicação que dá título a esta edição, da Tinta da China, 2023, responde a uma pergunta, sobre o que é a filosofia, começando pela obra de Platão e Aristóteles, que ambos dão início a uma interrogação que ora corresponde ora não, ao que mais nos inquieta: o que somos, nesta vida que é dada, e o que dela fazemos, com o que sabemos, com o que procuramos saber.

António Caeiro, de currículo vasto, nesta e noutras áreas, como na filologia a origem do sentido das definições que se atribuem à filosofia, ajuda a que se entenda melhor a definição usual: é o amor da sabedoria.

Mas definir o que é a sabedoria é uma tarefa difícil. Bom senso, experiência de vida, conhecimento num grau mais elevado do que é o ser, ou mais ainda do que é o universo criado? Do que é o seu criador? Ou ainda conhecimento de si, do que se é, o célebre nosce te ipsum? Conhece-te a ti próprio (porque assim pela via do que és, conhecerás tudo o mais?)

Ler Platão ensina o contraponto do diálogo, argumento e contra-argumento, e em alguns diálogos, como o Fédon ou o Timeu a reflexão sobre o que se é: sombras de uma realidade que nunca poderá ser conhecida, como tal e em si, e ainda, noutra vertente do seu pensamento, a descoberta de mitos, como o da Atlântida, ou o da música das esferas, que percorrerá a nossa cultura ocidental, recuperado por Shakespeare, por exemplo em algumas das suas peças. Ainda, e quem sabe se oferecendo matéria de maior profundidade, a contraposição, no livro X de A República de dois modelos de utopia social: o da cidade perfeita, em que reina a ordem de um pensamento de sábios, sendo eles que dominam e um outro, em que os criadores, os poetas, têm o seu lugar, ao passo que na cidade perfeita não o têm, devem ser expulsos, pois o imaginário criador perturba a ordem racional que se deseja que impere. Uma utopia, a ordem da cidade, um mito, o da criação perturbadora, que iremos descobrir adiante, nas tragédias, o género literário de que Aristóteles, na Poética, será um sistematizador. Mas Platão deixou um rasto na sua doutrina, o das Ideias fundadoras do Belo, do Bom e do Verdadeiro.

Aqui se torna complexo o nosso estudo do que é a filosofia: é a busca destas ideias materializadas no mundo que conhecemos, na nossa realidade? Ou sendo ideias antes fundam o que passaremos a chamar de idealismo platónico na história da filosofia? Ideias, mas não a realidade, matérias do imaginário mas não do conhecimento tal como o entendemos, de conhecimento racional da realidade palpável, por assim dizer. Séculos mais tarde, nos séculos XVII e XVIII ainda veremos que se discute a oposição razão vs. sentimento, racionalismo vs. idealismo sendo este um dos fundamentos do movimento do Romantismo, tal como o conheceremos sobretudo nos grandes criadores alemães.

Antes disso teremos com Descartes a afirmação do pensamento como razão mesma da existência: je pense donc je suis, penso, logo existo.

Embora na versão traduzida, entre o ser e o existir alguma coisa da essência (a essência do ser, segundo Heidegger) se perca pelo caminho. Em o Ser e o Tempo é aprofundada esta questão. A noção do Ser pertence ao reino da imaterialidade intemporal, universal, das Ideias de Platão, ao passo que é no Tempo que se materializa a existência da condição humana que é a nossa, particular, individual, limitada.

A escolha de Kant, sobretudo com a Crítica da Razão Prática, introduz a dimensão moral nesta apresentação das doutrinas filosóficas que até ele não tinham sido discutidas de modo autónomo. A Ética passa agora a ser uma área de reflexão com um estatuto autónomo próprio, que não só tem lugar como ultrapassa a questão do conhecimento só por si. Entram o bem e o mal na discussão dos valores e das opções que se colocam ao homem no momento da escolha.  Sem Kant não poderíamos entender Nietzsche e a sua reflexão em Para Além do Bem e do Mal que teria, como teve, um percurso que chegou aos nossos dias, pela escrita de um Musil, em O Homem sem Qualidades, ou o fanatismo de um Hitler.

Chamo a atenção dos meus leitores para o facto de eu não estar a fazer aqui um exercício de crítica literária, não faço crítica literária, nem tento, ainda menos, fazer crítica filosófica. Converso, ao correr da pena, com este livro de António Caeiro que me seduziu pelo modo como nos apresenta o seu ponto de vista sobre o que é a filosofia, através de uma escolha de pensadores que estão na base e nos dão os fundamentos do pensar filosófico, desde Platão até Heidegger ou Wittgenstein. 

Interessante como no percurso escolhido poderemos ler em Heidegger a transição para O QUE É PENSAR, suas últimas aulas de filosofia. Pois toda a filosofia é pensamento. E como se dá, em Wittgenstein, uma nova transição, muito própria do Modernismo, sobre as questões da linguagem e modos de exprimir o que se pensou e deseja dizer.  A conclusão parece simples, mas não é: wovon man nicht sprechen kann darueber muss man schweigen. Devemos calar o que não conseguimos dizer. Aqui poderia entrar o célebre comentário de Kierkegaard: onde as palavras acabam, entra a música.

Há então um limite no que concerne às palavras, a expressão, o dizer do que seja impossível. Celan trabalhou o dizer impossível, nos seus versos despidos. Mas Wittgenstein, filósofo que se ocupou em simultâneo do pensamento, como Heidegger, e da linguagem, como Saussure e os estruturalistas, pretende ir mais longe, e nega o que lhe surge como impossível. Será contrariado por Valère Novarina, pintor e dramaturgo franco-suíço que o desafia: ce dont on ne peut parler, c'est cela qu'il faut dire. O que é preciso é dizer aquilo de que não se pode falar. E não se pode por um conjunto de razões, nem sempre fáceis. Por ignorância? Por não se entender os fundamentos que obrigariam ao silêncio? A moda? A pressão social ou política? A descrença num mundo de crenças, algumas radicais e temíveis? Ou pura e simplesmente porque conceitos como os da doutrina platónica das Ideias nos parecem tão distantes do real conhecido que falar ou aspirar a um mundo melhor, mais humano e perfeito não só não pode ser credível, como está imbuído de uma irracionalidade chocante para o homem do século XXI, já bastante orientado por logaritmos, e não por sentimentos piedosos, mas que se tornaram caricatos.

E contudo... a filosofia, com o seu pensar este mundo e o outro, e a reflexão sobre o que é a condição humana (a natura naturata de um Spinoza) ainda continua e ainda nos desafia. A sua importância, o seu estudo, são cada vez mais importantes para a mente humana na inquirição precisamente do que é, e do que pode vir a ser, a menos que seja varrida do mundo por alguma catástrofe inesperada e fatal.

Pensar é algo de estruturante, na mente humana. Nasce da imperiosa busca para lá dos Sinais que, como dizia Hoelderlin, tenham perdido o Sentido). E a linguagem, o que é senão essa mesma estrutura já constituída geneticamente que podemos observar, segundo alguns, desde a infância e evoluindo depois segundo o meio cultural, social, político em que cada um se desenvolve. Discute-se nesta aquisição da linguagem, se é algo de adquirido ou já inato. 

O problema não se coloca a um filósofo, no seu percurso, em que é o pensar que estrutura as suas ideias e a exposição das mesmas, ora seguidas ora contrariadas, como na acentuação do Racionalismo face ao Idealismo ou ao místico neoplatonismo que virá a ter grande influência no século XV, com as primeiras traduções dos antigos clássicos feitas por Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Reuchlin (para a Kabalah judaica). Com eles tem início o chamado Humanismo no Renascimento filosófico e literário (e podemos dizer, em parte, místico, com as traduções de Platão e Plotino). Em Pico della Mirandola é especialmente interessante o seu discurso Sobre a Dignidade do Homem, que fundamenta esse novo conceito de Humanismo, que surge em ligação com o Renascimento.

Trazer a discussão à dignidade humana, sendo o homem uma criação divina, relaciona um com o outro, o homem com Deus, a dignidade suprema, e Deus com o homem, a sua suprema criação.

 Por aqui podíamos regressar a Kant, e à sua Razão Prática, voltando a aprofundar o conceito de Moral e criando um espaço filosófico, o da Ética.

Nesta procura do saber, pela via do saber filosófico, percorre-se um caminho em que tudo está ligado, desde o princípio ao fim que ainda não conhecemos, mas pelo qual vamos, por tentativas, procurar entender o que pode significar. Torna-se explícita a necessidade de ser curioso, de ir fazendo perguntas, ainda que fiquem sem resposta, pois sem a curiosidade que nos move, em nada poderemos progredir, nem na ciência, nem na sabedoria da experiência de vida que é a nossa. A filosofia, pouco a pouco, é isso que nos mostra: o amor e a curiosidade de saber. Saber mais sobre o homem (a dada altura será diálogo com os eus da consciência e do inconsciente) a natureza e o mundo. Um mundo que se alarga para lá do planeta conhecido até ao cosmos infinito.

Até agora passeei por um jardim, com alamedas cuidadas, cada uma conduzindo a uma saída possível, diferente, e com um pequeno banco onde nos pudéssemos sentar, a reflectir. Está na hora de apresentar melhor o Jardineiro, fazendo-lhe a justiça que merece, pois foi ele sempre, e continua a ser, o Cuidador. 

Cito-o, como é devido, nas suas conclusões: 

" No tédio profundo renasce o espírito da filosofia. A filosofia exige a transparência relativamente ao modo como temos vivido, como temos sido com os outros, como temos sido com a nossa própria possibilidade, o nosso potencial. Essa transfiguração e metamorfose podem durar um breve lapso de tempo, numa manhã, no local mais insuspeito, como o corredor da nossa casa a caminho de uma divisão. Nesses momentos faz-se a experiência da vida no estrangulamento do seu sentido. É também aí que nasce a possibilidade de ser quem se é. Portanto, a filosofia não acontece num horário determinado. A possibilidade da filosofia dá-se no interior da existência, 24 horas por dia, sete dias por semana. Porque é óbvio que não nos encontramos nessa situação extrema e radical. O que aconteceu no tédio profundo foi uma vivência que temos de rever e tentar compreender vezes sem conta. A possibilidade de vivermos uma pergunta é também a sua resposta. Depois de nos ter acordado para a existência, a filosofia tem de ser mantida acordada, não a podemos deixar adormecer, porque a ditadura do quotidiano pretende vingar e fazer esquecer-nos do que verdadeiramente nos aconteceu." (p.367).

Descubro aqui uma coincidência (sincronicidade?) com o que Clarice Lispector chamaria a sua Hora da Estrela. Não estão longe um do outro esta autora que comecei a ler aos 18 anos e que agora me chega do passado e este filósofo, moderno criador que nos explica e inspira para um despertar também ele de estrela. 

 Y. K. Centeno

Lisboa, 7 de Novembro, 2023.

Saturday, October 28, 2023


Ah se eu pudesse chorava

lágrimas como rios

não apenas por mim

que já chorei

o que podia chorar

mas por todos os outros

os feridos

os mortos

os que abandonados

sobram

mas não têm destino

ah se eu pudesse chorava

lágrimas como rios

que se abatem com força

pelos ínvios caminhos

onde tropeçam homens

e mulheres

e mais à frente

ainda brincam meninos...


Y.K.Centeno 

Lisboa, 23 de Outubro, 2023

Monday, October 16, 2023

MÃES

 



MÃES

Já estavam mortas 

quando os soldados voltaram

para as matar.

Tinham levado os filhos

não diziam para onde

se mais perto ou mais longe

e as mães sem saber como

nunca os iriam encontrar.

16 de Outubro, 2023

Sunday, October 15, 2023

 Corações

São corações partidos

que se debruçam

sobre os corpos

que Alguém

se esqueceu

de abençoar.

Não há terra que chegue

e só o Tempo

com tempo

os poderá tapar

 

Wednesday, September 20, 2023

CLARICE NA HORA DA ESTRELA

 CLARICE NA HORA DA ESTRELA

Aqui vai o começo de uma nova mini-novela, a contraposição de dois pensamentos que se entendem, duas mulheres que pensando o mesmo não têm o mesmo destino, uma Clarice Lispector que morre cedo, em 1975, ano em que sai esta sua última experiência criativa, e outra, que sou eu, a caminho dos 84 anos e não procuro aqui rever a sua vida, nem a minha, mas antes pensar com ela e sobre ela, na busca dessa hora da estrela que nem uma nem outra soubemos definir, mas procurámos, cada uma no seu caminho, feito de uma vida vivida entre poeira de estrelas e o simples pó da terra a que se regressa um dia.  

Descobri a obra de Clarice Lispector e senti logo uma afinidade de pensamento, rigor de escrita, depurada, como eu gostava de ler e me entusiasmava, página a página que ia abrindo. Fui sempre lendo. Mas confesso que não gostei do seu último, a Paixão segundo G.H. por nada mais do que ter entrado uma barata no seu livro. Odeio baratas, é mais forte do que eu...

Estamos em fim de Julho, inscrevi-me num curso sobre a cultura aramaica, na tradução mais antiga de Bíblia. É on line, hoje é tudo on line, e será a maneira de me manter ocupada quando toda a família estará fora, em férias. Ficarei menos sozinha, relendo o Génesis, descobrindo o simbolismo que tantas vezes procurei.

 

Hoje acordei com um novo pensamento: por que razão me afastei da prosa, da novela, ou do romance, sentindo-me incapaz de desenvolver uma circunstância, um personagem e a partir daí uma narrativa que me vá conduzindo?

Farei esse esforço, não sei bem como. Nem será com ideia de publicar, será para afinar uma qualidade que perdi, com o tempo.

A minha vida é agora muito diferente, porque desde que tive as crises de coração e a operação, me desequilibro. Preciso sempre de alguém, para me acompanhar. É uma enorme limitação, é essa dependência, a que não estava habituada, que me deprime.

Mas vou fazer esse esforço.

 

Havia naquela escrita uma compulsão, uma intensidade, e era isso que me atraía tanto.

Hoje não tenho, e daí a dificuldade de começar.

Começar, simplesmente. Como é difícil o princípio, seja da paisagem como dizia o Pedro Chorão nos seus quadros, seja como eu agora na prosa de ficção.

Parto sempre de algo bem real, ou melhor, partia, e esse real é o que me falta agora. Porque o real é o que vejo nas televisões, as guerras brutais, as políticas egoístas, as vaidades do mundo, uma sociedade esvaziada de valores, um tremendo abandono da arte e do conhecimento. Nem sempre, mas o pouco que vejo tira-me a vontade de fazer seja o que fôr. Um mundo sem salvação, a humanidade decadente não merece.

Penso então em Clarice: a mulher que tinha dentro de si um grito, e tinha de o gritar.

Eu o que tenho?

Um enorme princípio de aborrecimento, que filhos e netos às vezes interrompem, e nesses momentos sinto-me mais viva.

Mas a seguir, mais nada.


( a seguir, o livro, nas ed.Glaciar em breve).


 

 

Thursday, September 14, 2023

Nuno Félix da Costa, Breve Manual para ser Humano, ed. Cepe, 2023

Nuno Félix da Costa, depois da prosa agora de novo a poesia.

O que há de tão especial na sua escrita, que se desdobra em géneros tão diferentes (mas na verdade nunca se opondo, antes se completando) como o ensaio, científico ou filosofante e literário, a prosa de ficção entre o real e o imaginário, a poesia que inquieta no decurso em que a palavra se busca e, mais difícil, nos busca, a nós que lemos, e não sabemos, caminhando pela mão dos seus versos, livres ou libertários (deslizando ao estilo do abjectionismo, que também na pintura se poderia encontrar) e que por vezes abandonam a primeira das linhas indicadas, seguindo outras, mais leves ou mais pesadas, de um modo que é, em simultâneo, convidativo (à reflexão) e displicente (como quem diz, é só para quem percebe e deste modo se liberta e encontra).

Há um ponto de encontro, o da atracção que exercem, contra tudo e contra todos, se assim fôr necessário. É a condição que ser humano impõe, descobrimos, enquanto lendo vamos chegando ao fim. Do livro e em parte de nós mesmos.

Será que atrai precisamente porque não se percebe? Porque, herdeiro pósmoderno do surrealismo, deixa a mão correr pelas associações livres do seu imaginário, sem receio de exibir a cultura que tem, e que no fundo, desprezando, preza acima de tudo? É sem dúvida um poeta que transporta uma cultura assimilada, de que se nutre como alimento base para um pensamento diferente. Cultiva a diferença como planta rara que é e surpreende. Por isso prende? Entre os versos a flôr azul de um nostálgico Novalis? A flôr que nunca se colhe, preferindo ficar na contemplação de uma raiz oculta e que vibrando algures, de tão grande e tão funda, mantém em suspenso o mistério das vidas no universo.

Porque Nuno Félix aborda várias vidas em cada um dos poemas que se dispõe (ou é forçado?) a escrever. A sua escrita é a vida, e na escrita é a poesia que nos fala mais alto. Não transporta imposições, mas emoções que levem ao pensamento do que se é, mudando em cada momento. Nada é igual, nem o que nasce do silêncio contido, nem o que nasce do discurso escolhido. Cada verso uma escolha, cada poema um destino escondido. 

Uma hora de estrela, no que diria Clarice Lispector, cuja voz nasceu sem o toque da infância, mas logo amadurecida.  Um olhar renovado e que renova a vida.

Leio estes poemas para ser Humano e embora não saiba qual a definição de humano que seria adequada, logo sinto que é a mim que se dirigem, são a expressão da condição humana na sua mais nua realidade, do quotidiano banal ao sonho mais sonhado.

É importante o dizer, o bater do seu ritmo quando lemos os versos em voz alta. Por ali corre sangue. 

O poema que Nuno escolheu para a contracapa veio ao meu encontro como se fosse escrito por mim, ou para mim. Agora demoro em especial em dois momentos: demorar a levantar, prolongar a abertura da janela (...) os olhos que pareciam colados ao escuro, por instantes são sonhos, espelhos densos que sabemos se fragmentarão e ao sairem da boca criam as órbitas dos astros, o brilho das estrelas e - finalmente, o resto do cosmos.

Demorar, prolongar, criar. Um exercício de paciência, um saber que a espera contida recompensa, embora não resolva o essencial mistério que só o cosmos sabe e guarda. 

Dirão, e não se alude aqui às outras qualidades deste médico que é  Professor, Poeta, Fotógrafo, Pintor, e filosofa como no tempo dos gregos sobre a existência, o ser, o ser humano na sua condição? Ou simplesmente a descoberta da consciência do que se é, na nua simplicidade da vida e da morte, ambas com destino marcado que ele, na sua sabedoria, melhor do que ninguém poderia antecipar? Não lhe faz falta, nem a nós, o excesso da consciência que se torna pesada e impede a libertação da voz. 

Na qualidade de médico conhece bem os limtes do corpo, a matéria mesma de que se ocupa noutras horas, sendo que o corpo é albergue da alma e desta também é preciso cuidar. Na qualidade de poeta conhece bem a liberdade imprescindível da voz, a que brilha com um brilho de estrela, mas que ainda que seja luz é no corpo que se materializa. Corpo e alma eis o que podemos inferir da condição humana. É pouco? É a realidade possível, frágil e com grande necessidade de compaixão e amor, pois no Éden a esse corpo e alma a eternidade nunca foi concedida. Uma parcela apenas, uma pequena por vezes tão inacessível, parcela de conhecimento. É o que o autor aqui nos oferece, em páginas múltiplas, variadas, de entrega generosa.

 




Wednesday, August 16, 2023

GELO, de SÉRGIO NAZAR DAVID

 Poemas de um grande poeta que olha em seu redor, enquanto também se rodeia de silêncio, que não lhe pesa, antes o deseja, quando escreve.

A sua mão corre no papel, o primeiro verso quase que arrasta os outros, que constrói ou desconstrói, com o bater de um mesmo ritmo, podia ser de Camões ou de Pessoa, ou de Mário de Andrade, o Modernista.

A narrativa poética é aqui tão natural que fulgura, apesar de algum hermetismo no poema que, apesar de tudo, por ser poema, permanece fechado em si mesmo, exigindo releitura. E voltamos a ler, decifrando o que se esconde no intervalo das palavras, aí reside o sentido do verso, a sua necessidade.

Em Tercetos Queimados, que também li, e foram a minha primeira revelação da sua obra (terei de ler o blog mais uma vez) não referi o que agora ma parece tão óbvio, pelo contraponto com o GELO. No primeiro a presença subtil do elemento Fogo, e neste agora a presença da Água. Pois este gelo é água, um dos quatro elementos da alquimia transformadora. 

No poema da p.19, Gelo -1, que indica que deve ser lido junto com outro de Mário de Andrade, eis o que escreve:

Por isso descremos dos gestos profiláticos,

por isso sempre que possível o compasso

de ombros e pernas fora da máquina-mundo, 

e a sede do nada se nos alcança o êxtase

da carne ou do verbo. Um corpo é sempre

um corpo estranho; um ano, vinte e tantos

anos. Dentro de mim um cubo muito se perde mas

daqui indago a emaranhada forma humana

corrupta da vida que muge e se aplaude.

Ossos rijos, por enquanto, sangue em temperaturas

voláteis. Algo o detém como se esperassem.

Exegetas pouco pouco alcançam a miserabilíssima arte

nossa ao mesmo tempo em que se rompem

e se dobram fronteiras e colunas (vertebrais).


Adiante, em Gelo II, p.33, o contraponto surge mais claro, nestes versos:

...

Num pico

de neve escarpas de medo

e coragem ardendo.

As mãos frias dos mortos

têm esse fogo por dentro.

E segue num Gelo III, p.37 a experiência que um " grito primevo" num sonho lhe permite ouvir, enquanto"tanta coisa se move, e a vida desaba". Por isso o poema, este, dialoga com outros, como no poema que deve ser lido com e, como ele diz, "não deságua, nem se move nem se abre". Tem de ser o leitor a abrir.

Sérgio dialoga, nos seus poemas, com outros que são poetas, como ele. Num dos seguintes, No Teu Rosto, a experiência provém de Gastão Cruz, O Verão Novo, na p.63:

E termina: "o gesto busca um novo sopro / uma sílaba ao menos - agora / que já somos outros". A experiência que define como " de tempo e espaço, tempo e modo" é a experiência da cidade e de um corpo que mudam. Mudaram e são outros, e talvez essa mudança lhes permita o verso.

E de novo o Fogo marca a sua presença, p.73, em O Cacto:

O poema é o próprio fogo, imaterial

em sua imanência mas fogo

...fecho os olhos, apenas fecho

os olhos para que o poema nasça.


No poema AINDA, (saberia ele que é o título de um meu próximo livro?, ou é uma destas sincronias, como dizia Jung? ) que releio porque ali surge a pergunta de "quem sou", igual em todos os que escrevem, para saber quem são, e ainda que não haja resposta, pois só Deus disse eu sou o que sou (ou aquele que sou) - não disse sou quem sou, nem sou aquele que é, a questão do ser ficou em suspenso, desde os primeiros tempos, e até hoje. 

Sérgio escreve no poema que tudo foi mudando, e até as frases já não são inteiras, pobres versos fracturados, incompletos, em busca do que seriam, se o ser afinal fosse outro e não o que é. Mas conclui, Ainda assim escrevo, e é nesta palavra que desejo ficar, pois vem ter comigo assim que a leio, eu que me julgava parada, não apenas interrompida por coisas que são mais do que eu, e de repente me descubro Ainda a escrever .

Neste Gelo de Sérgio Nazar David se regressa ao corpo, e de forma muito especial à Vida. 








 

Friday, August 04, 2023

João Cunha Borges, Chão de Estrada Nenhuma, 2023

Um chão de Estrada Nenhuma, título que se torna apelativo pelo facto de uma estrada ser assim, que pode ser sonhada, ou sentida como enigma, pois onde leva, se não existe, ou pelo contrário existe sem limites, esse nada é um tudo, acelera o caminhar em tantas e tão múltiplas possibilidades que difícil será escolher. Mas estão lá, em nenhum e em todo o lado, e é para o caminhar que se aponta no simbolismo do título. O poeta é um caminhante, um viandante, um Wanderer, sobre um chão que se materializou, enquanto a estrada se transformou em onda, roubando agora os conceitos da física de partículas, o poeta vivendo ora no chão-partícula ora na onda que o seu olhar transforma. 
Pois todo o olhar transforma aquilo que vê, e o do poeta ainda mais, pois tem um olhar que sente, um olhar que vibra e que transforma o mundo à sua volta.
Em livros anteriores, pequenas edições altamente cuidadas, com belos desenhos e ilustrações de hors-texte de conhecidos artistas, temos livros de desejo em suspenso e de paixão, seguidos de um desalento citadino, como era tão próprio de Pessoa, o mais citadino dos nossos grandes poetas.
Neste livro encontramos, dedicado a duas amigas, ambas artistas, um Quarto com vista para o silêncio (pag. 59).
Falarei adiante do silêncio, mas de momento devo salientar a cultura vasta deste poeta, que se manifesta logo de início pelas epígrafes que escolhe para enquadrar num pensamento orientador, dos muitos que leu, a sua própria criação. É um poeta lido, culto, e que nos dá em antecipação a memória de algo que o inspirou. 
Era Eduardo Prado Coelho que valorizava muito, nas suas apreciações, as epígrafes que cada um, incluindo ele próprio, escolhia. E na verdade representam uma afinidade do criador com outro criador que também ao leitor podem abrir caminhos de pensamento.
Foi um acaso, ou uma coincidência feliz, que estando eu a ver na televisão o discurso formal do Papa no primeiro dia, o tenha ouvido falar de caminhos, a variedade, e  que na inquietação da procura, ou da escolha, tantas possibilidades fossem oferecidas.
João Borges tem o seu chão. Mas caminha, na inquietação de que não vê estrada nenhuma. Mas caminhando alguma estrada lhe surgirá pela frente, e no caso dele a pulsão do poema, em movimento irrecusável, será a estrada que parecia não existir.
Penso em Clarice Lispector, que dizia que eram tantos os gritos que a abafavam que às tantas se tornava imperioso gritar, por via da sua escrita, apaixonada e intensa, de  coração selvagem. 
Assim nasce o poema. Da necessidade absoluta de ser dito. Esse dizer será construído no silêncio em que as palavras se procuram. São estradas, essas palavras, são caminhos esses versos, tantas vezes imprevisíveis, mas que na inquietação precisamente se afirmam.
Gostei de ver, ao ir lendo o livro, a presença de uma certa marca oriental, sob a forma de um ciclo de dois versos, como se fossem um percurso de Kaikai e que destaco os finais: " dúvidas sobre a verdade / e contas a ajustar no coração / sou eu".
Que belo final, não apenas para um poeta mas para todos nos que o lemos. Pois é a dúvida que conduz à vida, não a certeza, a inquietação conduz, a certeza mata. 
O poeta é o puer eternus de que fala Jung, a criança eterna em nós, a irrequietude da curiosidade, que só ela, como também disse Hawking aos seus alunos de astrofísica conduz ao progresso. O chão a que o poeta se refere, não é o chão que nos prende e paraliza, como na frase popular de ficar pregado ao chão. É o espaço em que o tempo se suspende e nos protege, até que novo impulso nos leve a arriscar, novos desejos, nova paixões ainda que breves se esgotem e possam deixar desalento e amargura. Faz parte da vida, viver o que a vida nos dá de melhor e pior. Viver é uma abertura permanente ao que aí está, e acabaremos por ver, ao caminhar. Nenhuma estrada é o silêncio que a seguir abre a convulsão da palavra. e lembro para lá de Clarice, o filósofo Kierkegaard : quando se esgotam as palavras vem a música. 

Mas gosto da escolha de Gastão Cruz, neste ciclo de dois versos que acima referi. É  dele que João retira o título do seu livro, O chão de estrada nenhuma (pag.17). Criador, com os do Grupo da Poesia 61, ele quer renovar o discurso poético do tempo, junto com Fiama, Luisa Neto Jorge, e outros. Era o discurso do neo-realismo, mas mantendo na mesma um olhar realista sobre a necessidade de mudança social e política, em tempos de ditadura.
 Gastão afirma: " um verso é uma zona proibida" . E era, na altura.
Agora não  há zonas proibidas.
João Borges é já um produto dessa novo imaginário na poesia, nas experiências que abalam corpo e alma, e nada impede que se exprimam, na dôr ou na alegria mais íntima. Os surrealistas serão os grandes arautos da nova escrita, da imaginação em liberdade, da experimentação automática, de cariz freudiano assumido e obrigando a novo pensamento sobre as mensagens do inconsciente, individual e colectivo. 
Quantas estradas, afinal...
Não cabe no curto espaço de um comentário tudo o que a leitura no oferece. terá de ser o leitor a completar os sinais e os sentidos do escrito, do dito e do não dito.

 




 

Thursday, August 03, 2023

Portugal, Lisboa, Bairro da Mouraria

 Mouraria, Mouraria

tanta côr tanta alegria

imagem de tanta vida

de longe e de perto vivida

por amor foste escolhida

tua gente repartida

como versos de cantiga

aberta nos corações

não há lágrimas que durem

são limpas por tua luz

pelo encanto das ondas

desse mar que nos seduz



Friday, June 30, 2023

The First Century Aramaic Bible in Plain English - (The Torah - The Five Books of Moses)

 Fica-se logo a saber, na introdução, que estes livros resultam da tradução feita por um cristão do séc.I, convertido e conhecedor do hebraico e do aramaico e que achou útil dar a conhecer esta versão, mais antiga, dos livros sagrados da Bíblia, dos espaços onde decorreriam os momentos da História de Israel. O Aramaico era a  língua de Israel, da Síria e dos imensos territórios férteis da Mesopotâmia, então a Pérsia e a Babilónia e  os berços da civilização e mesmo até, diz o autor, do Jardim do Éden. 

Era esta a terra de Abraão, de Isaac e de Jacob,  em que todos falavam em aramaico,   há mais de dois mil anos.  O primeiro livro do Génesis está em aramaico, de que o autor da tradução vai dando alguns exemplos.

Para mim o interessante é ver em que pontos difere, esta sua versão, da tradicional, conhecida, da Bíblia de Jerusalém. Começando com as primeiras linhas da Criação, não se notam diferenças. Os episódios, a expulsão do Éden, a morte de Abel por Cain, as gerações e a multiplicação pela terra, que Jeová ordena, mais do que uma vez, o desgosto com os pecados das suas criaturas, a excepção de Noé, nada por aqui me suscita interrogação. 

Mas chegando ao capítulo 6 é interessante ler o que se diz: os filhos do homem começaram a multiplicar-se Na face da Terra e tiveram muitas filhas. "os filhos de Deus viram como eram belas as filhas do homem e ficaram com elas todas" o que lev a Jeová a dizer que o seu espírito não perdurará  no homem porque ele é feito de carne, e viverá até aos 120 anos ( antes podiam viver até aos 800 anos, e a partir de agora é imposto um tempo certo, e este limite dos 120 anos, o que hoje em dia está a ser quase verdade, no nosso tempo actual...).

Segue-se a referência aos Gigantes, Homens Poderosos, filhos desta união dos filhos de Deus com as filhas do homem, e que seriam os heróis míticos e "da fama" dos tempos antigos. 

Poderia o autor estar referir-se a Homero, à sua obra por onde tudo passa, de mitos e de lendas, que a memória arcaica foi fixando? Lembro Polifemo, o Gigante de Rodes, de que se encontrou um pé..haverá outros, como Golias ou como os que surgem nos contos populares.

Segue-se o desgosto de Jeová com a humanidade que criara, e a decisão de ajudar apenas Noé, indicando-lhe como fazer a sua arca de salvação e levar um par de cada criatura animal e humana, para escapar ao dilúvio.

A numerologia é algo de tão frequente e tão fundamental, nestes escritos, que de facto se torna uma verdadeira ciência, que só os peritos, os kabalistas podem entender.

Mas para mim, no episódio sobre o alfabeto e o significado de cada letra, a começar pelo Aleph, foi muito interessante que significa o NADA, e não como podemos pensar o VERBO primordial.

Primordial foi o Nada e nesse Nada tudo teve a sua origem.

 

Tuesday, June 20, 2023

FILIPE MELO e JUAN CAVIA, SANTIAGO VILLA, Dog Mendonça e Pizza Boy, 2023

 Neste sumptuoso volume, de verdadeira edição de arte, se reúnem as aventuras de Dog Mendonça e Pizza boy, com um extra que os aficionados da banda desenhada irão apreciar ainda mais. Por ser inesperado, este extra, que se inspira numa lenda, que pode ser real na origem ou fictícia, o que interessa é que ocupa ainda hoje o imaginário da cultura chinesa, e remonta às aventuras de uma feroz pirata - mulher -  que reinou pelos mares da China no século XV, tendo por base um conjunto de belos  poemas, cujos versos, variando conforme o autor, mas todos louvando a coragem, o desaforo, a violência dos saques daquela misteriosa mulher.

A aventura começa com a vida de Lo Pan numa pequena aldeia de Cantão, junto ao rio das pérolas. É um menino  cujo maior prazer é passear com a mãe na praia, brincar apanhando conchas e pedras redondas, e à tarde aprendendo velhos poemas, ou inventando outros que lhes ocorriam e nunca tinham sido ditos. Era uma vida de rotinas tranquilas, esta de Lo Pan com a sua mãe até lhe acontecer uma aventura extraordinária, que interrompe a sua infância feliz e o leva a um crescimento de verdade imprevisível.

A mãe, de nome Lu Shi, tinha um sonho nunca revelado, pois às mulheres ir o teatro ou de algum modo conviver com a música ou a dança ou o teatro eram actividades interditas. Mas ela guardava esse sonho, de um dia poder vir a ser actriz...sonho impossível de facto. Filha de mãe pobre, a mãe tinha-a vendido a um homem mais velho que tomaria conta dela, e do filho que tivessem.

Assim, Lu Shi o que fazia com o seu filho era brincar também, sonhar com os personagens das óperas conhecidas, repetindo os versos que uma vez ouvira, quando se disfarçou de rapaz e foi ver a Ópera de Pequim.

Nos mares do império Quing, o desta época em questão, navegavam os mais terríveis piratas, cujas aventuras corriam de boca em boca, com os assaltos os roubos, e a fama que adquiriam. O mais célebre era Zhen Pan, o marido de Lu Shi e pai do pequeno Lo Pan, dono de centenas de barcos.

Aos dez anos o pai leva-o na sua primeira viagem de barco, para que aprenda as artes do mar e da guerra. E certa outra viagem o pequeno assiste a algo de terrível, viu o pai decapitar um outro pirata, seu rival, pois queria ser o dono de todos os mares. 

De regresso a casa o pequeno Lo Pan corre para os braços da mãe, e do seu carinho cheio de amor e conforto. Tinha sido para ele uma experiência terrível.

Também ele, como a mãe, tinha um segredo. De noite vestia as roupas de mulher que ela usava, pintava-se com a elegância que lhe conhecia, e depois cantava e dançava, enquanto o resto da casa dormia.

Mas um dia a mãe apanhou-o nessas brincadeiras, diante do espelho onde ele se imaginava como se fosse o palco de um grande teatro, e zangou-se com ele. O seu destino estava traçado, ele teria de ser um pirata, como o pai.

Contudo, o pequeno Lo Pan acabara de fazer uma descoberta : a beleza da Arte, e do Feminino (que Jung chamaria Anima, o feminino no Ser). Não conseguia entender por que razão algo que o fazia tão feliz podia ter algum mal. 

A história sofre então uma reviravolta: o pai chega um dia antes do previsto, e apanha o miúdo vestido com as roupas da mãe, a cantar e a dançar em rodopio feliz. O pai perde a cabeça, e furioso zanga-se ao ponto de o expulsar de casa, renegando-o para sempre. Exclama que aquele não era o seu filho, e melhor ficaria na casa de uma célebre prostituta. 

Ameaçado até pelos criados que o tinham visto crescer, sem que a mãe o possa ajudar, Lo Pan sai e estremece ao ouvir o bater com estrondo do portão da casa. 

Foge pela noite fora, apavorado com medo dos bichos que a sua imaginação criava, até que chega a uma cidade, onde o veremos transformado de jovem rico em pedinte, a estender a mão para uma moeda ou algumas migalhas de comida.

Surge a dada altura diante de si uma mulher, que se debruça com voz suave para o ajudar:  acorda, diz, chamo-me Mei Li e o seu olhar era cheio de compaixão. Lo Pan levantou-se e seguiu essa mulher, sem saber muito bem para onde. Ia começar uma nova etapa na sua vida, num barco enorme, de prostitutas que serviam com grande sucesso, clientes que ali vinham regularmente e de quem ele, nas suas vestes femininas, também serviria conforme pudesse. 

Por muito estranho que de início lhe parecesse, acabou por se habituar e sentir feliz, entre elas todas. Já tinha perdido a esperança de alguma vez encontrar o caminho de volta a casa,  e aceitou esta nova forma que o seu destino tomara.

O seu gosto pelo canto e pela música nunca diminuíra. e certa noite ouviu Mei Li a tocar e lembrou-se de cantar os versos da célebre canção que ele conhecia desde a sua infância, a da flor de Jasmim tão bela, tão bela e tão perfumada...Mei Li ficou espantada com tão grande dom assim revelado, e de novo a vida de Lo Pan iria levar uma volta. A beleza do seu canto tornara-se conhecida e vinham pessoas ouvi-lo cantar, juntando-se por ali à roda do barco.

Ele escolheu então o seu nome artístico :

MADAME CHEN - A MULHER DRAGÃO

Podia demorar-me aqui um pouco, para reflectir nesta escolha e no seu simbolismo: mulher-dragão, reunindo o feminino Yin e o masculino, Yang, a sombra e a luz, nesta história de alguém que busca sua identidade real, complementando contrários.

A aventura vai crescendo em acção e mistério, levando consigo o leitor.

A fama de Madame Chen chega aos ouvidos do Imperador, que chama Lo Pan ao seu palácio de Pequim. E ele/a ali fica com ele adoçando uma velhice que levava já o velho imperador para o fim dos seus dias.

O sucessor não ligava nada às artes e Lo Pan perdeu o seu lugar, saiu de Pequim, regressou à protecção de Mei Li. Não cabe num post um guião como o que Filipe Melo concebeu, base real para um filme que pode vir a ser extraordinário de acção e emoção. Basta agora dizer que numa das suas sessões, no meio de grande multidão reconhece um dos criados das su casa de infância, e força-o a levá - lo de volta até lá onde fica a saber que a mãe se suicidara com o desgosto da sua expulsão e o pai, por sua vez destroçado com a morte da mulher se retira para o mar, para os seus barcos, nunca mais sendo visto em terra.

A escrita de Filipe Melo, minuciosa, delicada e subtil, adensa a curiosidade e a emoção de quem lê, e seguimos, como quem segue uma aventura estranha que, sem que se diga, é na verdade uma história de iniciação, como num Bildungsroman - romance de formação ao modo de um Goethe, em Wilhelm Meister's Lehrjahre ou de um Fielding, por ex. em Tom Jones. E passo o célebre Dom Quixote...Há muito suporte cultural, também oriental, claro, de um imaginário antigo, aventuroso, mas contendo uma lição, ao modo do Taoísmo, ou da moral de Confúcio. 

Apresso-me a não revelar tudo, o leitor deverá fazer também ele o seu percurso de iniciação pela leitura. Lo Pan usará a sua fortuna para comprar um barco, arranjar uma tripulação de assassinos de coração duro como o dele agora se tornara, feito pedra, e decide correr os mares e tornar-se tão conhecido pela ferocidade e riqueza dos saques como fora o seu pai. No seu barco serviam homens e mulheres desde que dispostos a todas as atrocidades.

E a aventura continua até ao encontro com o seu pai, que não aceita a rivalidade e tendo conseguido prendê-lo o decapita, de um só golpe, e lança corpo e cabeça ao mar.

A lenda reza que o dragão rei daqueles mares se toma de compaixão pelo jovem, opera o mágico milagre de reunir a cabeça ao corpo e lhe devolver a vida com uma condição....

E fico por aqui , o leitor terá de descobrir o que depois sucedeu. 

Sem esquecer  o que as ilustrações de Juan Cavia, no seu desenho ora mais carregado ora mais leve, acrescentam ao sabor das páginas com o prazer e o entendimento do que vamos lendo.  A ilustração é uma arte especial, o criador tem de se fundir com o que ali está criado pela escrita, ampliando o sentido.



 


Saturday, May 27, 2023

João de Mancelos, CORAÇÃO DE ALUGUER, ed. Colibri, 2023

 Já tenho escrito sobre João de Mancelos, com prazer especial, julgo que nos é comum, pela arte do Haikai. Embora um ou outro autor me tenha dito que tanto faz dizer Haikais, para plural, eu aprendi com Alberto Pimenta, cuja erudição é indiscutível, que o singular é Haiku, e o plural Haikai (sem se usar o "s"). Como não falo japonês e só leio traduções, não entrarei nesta discussão, mas tenho uma linda prenda do Alberto à minha frente, uma linha vertical de um Haiku condensando nessa imagem uma única ideia. Esse é o segredo e o encanto desta prática artística japonesa: uma ideia única numa única imagem que a condensa e contém. A ideia dirige-se ao nosso espírito, a imagem ao nosso sentimento e sensibilidade, como faria um desenho ou um quadro. Uma imagem.

Logo no título do seu livro, que prefiro chamar de poemas e não de Haikai, excepto num caso ou noutro que o permitem, o autor nos deixa com a imagem de um coração"de aluguer". É de aluguer por estar livre e feliz ou por ter sido libertado por outro, com desgosto seu? 

Ficamos com curiosidade de saber e vamos ler o que nos diz, nas suas páginas. Está dividido em 4 secções: Deslumbramento, Labaredas, Abandono e Memória.

Momentos que revelam Atracção, Paixão, Afastamento e  Memória

(Saudade do fim dessa paixão, poetizada ao longo dos vários versos?).

Há que ler, devagar, a leveza dos versos escritos como feridas de alma que não se ultrapassaram. Ou não haveria memória, mas esquecimento, ou apenas simples evocação. A memória traz um actualizado sofrimento, a evocação pode ser tranquila em paisagem  de horizonte longínquo.

Muitas vezes me ocorrem os poemas de Rilke, a propósito das cartas a um jovem poeta, a quem recomenda que não fale logo dos seus primeiros impulsos de amor, pois o amor perturba a clareza do verso. E que só escreva se para si fôr a escrita questão de vida ou morte. Para Rilke era, e assim ele criou uma obra que se tornou universal, para não dizer eterna.

O amor, deste coração de Mancelos, não sei se será de vida ou morte, na narrativa que é oferecida. Mas a algum impulso mais fundo obedeceu, ou não o estaríamos agora a ler, acompanhando o que sentiu nos diversos momentos que também eles são universais: pois quem nunca amou, viveu e sofreu amando, até que tudo findou? O tema do amor é o mais universal, como há pouco tempo, falando de paixão e morte nos dizia José Pedro Serra em Mythos, o seu programa da televisão.

Na minha idade sei bem que paixão e amor não são a mesma coisa, e conforme as épocas e as culturas a sua vivência é diversa.

Vivemos uma época de veloz vivências, ou seja de paixões, intensas mas condenadas à brevidade dos tempos. Já o amor seria vivido de outro modo, e nem sequer está na moda. Daí que neste livro as labaredas tenham mais peso e rápido se desfaçam em abandono. 

Mas volto à capa do livro, que além de ser muito bela, (parabéns à Raquel Ferreira, que não conhecia como ilustradora) nela sim, com o seu título inscrito, coração de aluguer, descubro o impulso misterioso de um Haikai: Fino rosto no meio da sombra e mão que vivamente afasta, recusa (quem sabe se depois ter aceite, alugado, alguma relação de momento, passageira?)

Um Haiku pode ser assertivo, mas pode igualmente ser de interrogação deixando ao leitor a hesitação da resposta. João de Mancelos, e este seu gosto pela cultura oriental, japonesa, terá lido Kawabata e as suas Belles Endormies, notável romance testemunho de uma prática usual ainda no seu tempo e que eu li ainda jovem, em Paris e tanto me deslumbrou pela beleza e pela crueldade que indirectamente revelava. Jovens que eram adormecidas para que os seus corpos indefesos pudessem ser alugados por quem pagasse uma noite junto delas, e vivesse a ilusão de amar e ser amado em entrega total. Muitas morriam, devido à anestesia que lhes era dada. No caso deste romance o homem já de idade que procura e aluga sempre a mesma jovem, por quem se apaixonara de verdade, e a visita uma e outra vez, o amor é vivido de forma intensa e trágica, pois ela acaba por morrer. 

O amor de aluguer descrito nos Haikai de Mancelos é forçosamente diferente, pois ele é jovem, e num jovem a relação é vivida de forma intensa, e não busca um corpo tranquilo,  quem em nada se recuse, mas que esteja bem vivo e que lhe corresponda, enquanto a relação dure. É o momento das LABAREDAS. 

Meditando sobre a capa, uma ilustração também pode evocar uma forma de Haikai. Atrevendo-me a pensá-la ( a idade que tenho já me permite tudo, ou quase, e a intenção é  desvendar amor e não  criticar) eu escreveria:

Olhar que se desvia

Mão que afasta

Paixão que se acabou 

ou

 perdendo-me em variantes:

olhar desviado

mão que afasta

paixão que se extinguiu.

Fica-nos a questão do adjectivo, " de aluguer" .

Coração de aluguer não pode ser um coração qualquer, e só o poeta poderia explicar melhor: nessa relação que a narrativa poética descreve quem foi que por momentos a viveu, a Amada ou o Amado, quem abandonou primeiro e para sempre, disponível apenas para aquela espécie de aluguer e nada mais? Amor de acaso e de ocasião?

Mas que foi enquanto durou intenso e deixou marcas?

Vamos ler.

A PRECE é um apelo, depois de um deslumbramento, da descoberta de alguém que se deseja. Os versos adiante confirmam essa sede de amor: " o meu amor vinha / de um deserto longínquo / e tinha sede de mar.

A solidão é a imagem escondida o amor a revelada. Lembro a epígrafe de Italo Calvino, no início, o mar dentro de um copo", metáfora para a poesia. Ou aqui um deserto que procura a água do mar.

O imaginário da água atravessa estes poemas, e sabemos como da água nasceu Vénus, a deusa do amor esplendoroso a que os poetas se podem entregar. Água, amor, beijos de princípio do mundo, pássaros em busca desses vôos de pura elevação espiritual. Na verdade, tudo é inocente, o corpo do desejo, só de sonho, ainda não está presente.

Mas haverá em breve a imagem do fogo, acelerando o bater do coração sequioso.

Já em RISCANDO A NOITE, depois do elemento água  temos no fósforo o elemento fogo. Água e Fogo, como Terra e Céu, os elementos base do imaginário poético desta narrativa. 

No poema seguinte ANDORINHAS EM OUTUBRO, outono da melancolia,  da velhice sei bem, surge o que diria uma evocação das Belas de Kawabata: "clandestinamente / a jovem e o velho amam-se". E finalmente o corpo desejado, em SOLETRO TEU CORPO DESPIDO:

"soletro o teu corpo despido / entre dosi versos. vem /

interrompe a minha morte".

Entramos assim na segunda parte, de título LABAREDAS, pois já o fogo arde na paixão finalmente vivida.

Água e fogo, fusão alquímica, de que há uma bela gravura indiana do século XVIII que Jung reproduz no seu tratado sobre Psicologia e Alquimia.

Em RAPARIGA ENTREABERTA a fusão torna-se explícita:

"ela entreabre-se ao amor: / afastam-se as águas / entra-lhe o fogo". Ou ainda em RITUAL:

"noite a noite, eu colhia / estrelas ou versos na escuridão / incendiada do teu corpo". Toda a relação se passa na escuridão da noite, como se apenas de noite (ou a dormir, como em Kawabata) a paixão pudesse plenamente ser vivida.

TODA A ESCURIDÃO DA NOITE

tinha uma só boca, 

mas toda a escuridão da noite

para te beijar.

NÃO SEI O QUE CEGA MAIS

não sei o que cega mais:

o lume, o amor, o silêncio

a tua pele de cal na escuridão.

PARA SER DEUS

deus precisa da eternidade 

para ser deus. a mim,

basta-me uma noite contigo.


Adiante falará do que é o seu amor como "ofício de labaredas". Até que tudo se consome e se transforma, nas cinzas do ABANDONO. Terminou a hora da entrega, acabou o que parecia eterno e era só aluguer? Paixão, mas feita de empréstimo e não de completa entrega? Só ele saberá dizer, o que encontrou no amor e na paixão a intensidade do verso.

A paixão definida como "outrora seda" é agora " a pele que a serpente despiu". Resto seco que se deixa para trás como a da serpente , que introduz aqui uma nova metáfora, pois fica no ar a perversidade que atribuímos à serpente, desde logo no Éden, jardim perverso que até agora não tinha surgido. 

Recuperando o imaginário que temos acompanhado, vimos a água, o fogo, vemos agora o céu que fora indicado pelos pássaros e agora é de novo pelo vento.

O vento é o pensamento, é o que transporta e transforma, neste caso um coração que o poeta interroga:

"diz-me: quem flutua, agora,

no teu coração

assombrado pelo vento?"


Deixo ao leitor a continuação da leitura pelos versos da Memória, destacando apenas o final, porque de novo, como no início há um apelo pungente, a última chamada que se guardou algures na memória: " esta noite e para sempre /que o meu coração anoitecido / amanheça no teu peito".

Um belo livro.






 


  





Sunday, April 30, 2023

  

O MELRO

Não estás aqui ao meu lado.

 Bem posso olhar

quando a luz diminui

e na varanda

vem um melro falar.

Se me levanto ele foge

tem a sua relva algures

num jardim não muito longe

onde irá pernoitar.

É feliz esse melro

tem um poiso que conhece

e não tem de procurar.

Eu ainda te procuro

mas já não estás ao meu lado

e não sei adivinhar.

 

30 de Abril, 2023

 

 

Nuno Félix , O Desfazer Das Coisas E As Coisas Já Desfeitas, ed. Companhia das Ilhas, 2015

 

O desfazer das coisas, mais uma vez.

Durmo de noite, durmito o dia todo. Tenho o seu livro à minha frente. Abro ao acaso numa daquelas páginas em que apanho logo o sobressalto de um exercício de surrealismo que joga com uma espécie de auto-cadáver exquis entre a ciência, a anatomia cruel de imagens de gráfica anatomia, descerebrada, e um puro jogo de imaginação literária, erudita, por vezes mesmo simbólica, arquetípica que nos deixa perplexos enquanto tanto imaginário que se auto desconstrói nos eleva para outro patamar.

Nuno Félix, é preciso reconhecer, é demasiado sábio para que o possamos entender. Não nos oferece conhecimento, a nós pobres leitores, mas experiência e sentimento. Exige que o sigamos por caminhos estreitos, as finíssimas ou mesmo raras sinapses entre neurónios que se vão esgotando no meio dos exercícios. O que procuro, quando o leio?  De modo nenhum repetir o seu impossível exercício, mas descobrir, nos intervalos, algo que esteja escondido e me seja revelado.

Arte é revelação, e a escrita meio surrealista, ainda que entremeada de realismo, traz consigo surpresa, desafio, vontade de continuar. Viramos as páginas, seguimos outro parágrafo, procuramos, numa nova metáfora o sentido que traz. Na Ciência como na Arte o sentido dá vida.

Na desconstrução, que é busca e exercício, ambas se encontram e voltam de novo a construir. Essa é a secreta lição?  O sentido da Vida?O que andava perdido do Sinal primitivo?

Leio "Isto é um risco real":

Poderemos continuar ágeis a entrar e sair dos símbolos e a papaguear detritos de uma democracia adulterada? Poderá a mente fazer os dedos agarrar as coisas e espremê-las até o nome aparecer? Como um macaco agarrar e lambê-las e esse saber ser uma nuvem com todas as cores? Quem aparecerá para pensar? Quem ouvirá o pensador desfazer-se no meio do lixo gritar por si - pelo seu nome - pelo nome das coisas querendo tudo separado por gavetas com rótulos? O tempo come os pigmentos da cabeleira das letras - Deixa os símbolos sem correspondência física ou a lei do próprio movimento destruindo a relação à coisa e recriando-se como negação - Funcionará ainda o cérebro com os símbolos rindo da sua loucura?" (p.47).

Para entender seja o que fôr, mesmo uma Democracia deteriorada, há que voltar aos gregos como num outro texto, de abertura, o autor avisou. Heidegger fez o mesmo, quando escreveu, em fim de vida e de carreira recuperada,  sobre O QUE É PENSAR. E fez o que é impossível não fazer, se quisermos pensar...recorreu a um verso inicial de um dos grandes poetas, para epígrafe, Hoelderlin, no Hino à Memória, Mnemosyne: somos um sinal que perdeu o sentido...

E aqui estou eu, com Nuno Félix, e o macaco real que também pode ser um sinal, o deus Thot dos egípcios, metáfora escondida de Hermes, o da sabedoria, a cogitar sobre o que leio, também eu em busca do nome,  o nome oculto, não meu para que o gritem, mas para que eu o saiba, e o guarde em silêncio? 

Será pura coincidência que há dias me tenha debruçado sobre os últimos poemas de Ingeborg Bachmann para descobrir nela o peso das palavras, os nomes que Celan carregou de sentido e lhe foi transmitindo até morrer? Ao mesmo tempo que atrai e recusa os símbolos, eis Nuno procurando à rebours, ele já é de outro tempo, o de agora, o de uma nova negação que constrói e desconstrói, mas sempre para recuperar o que não queremos perdido, o Sentido que só ele dá Vida renovada ao Sinal.    




Thursday, April 13, 2023

O TEMPO

 Uns viram-se para fora

outros viram-se para dentro

entre o fora e o dentro

o Tempo

Tuesday, April 04, 2023

LILITH

 

Lilith

Chegara por fim

a sua hora.

À volta dele

todos queriam ajudar

queriam que se salvasse

daquela Mãe negra

que ali pairava com

 sofreguidão de raiva.

 Ia directa ao coração,

que não comia

como tinha feito com outros

em tempos imemoriais.

Não, desejava agora

arrancá-lo, parando

esforços de salvação,

queria arrancá-lo

do peito tão amado

e enterrá-lo bem longe

na cama de lençóis brancos

que tinha preparado

no seu reino de trevas

onde ficara exilada

por um deus sem nome

que a tinha castigado.

 

5 de Abril 2023

 

 

 

Saturday, April 01, 2023

 UM LIVRO

Um livro é um amigo

pode ficar na mesa

à nossa frente ou

ao nosso lado

com os outros

que foram lidos

 e deixamos ali

desarrumados

é uma presença fiel

não obriga a ser lido

pode ficar assim

no seu silêncio

não há ofensa

ele fechado

e nós calados

 

2 de Abril, 2023

Saturday, March 25, 2023

GATOS , para o João

 

Ele quer mimo,

tem um gato.

O gato

também quer mimo

e busca na cama fofa

o seu lugar mais quentinho.

Primeiro na almofada

mas é só para enganar

ele quer mimo no pescoço

do seu dono a dormitar

e logo a seguir

no seu rosto

escondido sob o lençol

que ele ajuda a destapar.

Calor a mais não é bom

estraga o mimo procurado, 

e o gato deseja agora 

 o seu peixinho sonhado.

Tanto amor liga estes dois

nunca dormem separados

onde está um 

está o outro

este mimo é de durar.



Ainda o Tempo

 

Descubro que afinal

não vivo o Tempo, que

o grande Heidegger definia 

como essência que dava ao Ser

a sua parca existência.

E digo parca

porque o Tempo será talvez eterno

se confiarmos nessa filosofia

ou no cosmos que é 

 também ele um infinito 

segundo agora se afirma.

Mas esse Tempo não é nosso,

ensina a experiência de vida,

o nosso é o tempo pequeno

o tempo feito dos dias

que hora a hora se vivem

na busca inútil do Ser

que Heidegger definia.

Também o Ser é pequeno

conforme o tempo vivido

conforme os dias que passam

afinal vão permitindo.