Agnus Dei
(ouvindo o Requiem de Mozart
mas não foi salvo.
Deus não interrompeu
o sacrifício
do filho bem-amado
o sangue teria de escorrer
para que o corpo fosse
transformado
e o Adão primordial
pudesse ter perdão
Agnus Dei
(ouvindo o Requiem de Mozart
mas não foi salvo.
Deus não interrompeu
o sacrifício
do filho bem-amado
o sangue teria de escorrer
para que o corpo fosse
transformado
e o Adão primordial
pudesse ter perdão
Na Quinta das Lágrimas
naqueles jardins
as árvores tão antigas
ainda carregam memórias
mas há sombras e recantos
no espaço mais alargado
que tornam a fonte feliz
depois do amor derramado
outrora foi côr de sangue
foi uma dôr do passado
agora é só luz e beleza
jardim de amor encantado
Y.K.Centeno
(Para a Cristina Castel-Branco
Granada
I
Em Granada de noite
junto aos jardins do Alhambra
os jovens que se amam
tão quente ainda e tão suave
o momento que em breve
cessará
caindo noutro tempo
II
É tão fria a velhice
o sangue não circula
o coração não bate
não existe o desejo
que já nem é memória
da emoção perdida
naquela noite quente
tão suave de outrora
Y.K.Centeno
Hoje em dia, não todos os dias, mas de vez em quando, como ultimamente, o que me surge para ler parece ter sido escrito de propósito para mim, para mais uma leitura que não me deixe esquecer como ler é importante. Mantemo-nos vivos, por via dos outros que se ocupavam da vida, no seu tempo.
Estamos perante a reedição do que foi o primeiro romance de Jorge Reis-Sá. É raro um autor que deseje recuperar o que foi a sua primeira tentativa, poética ou romanesca, ou porque a considera ingénua, ou imperfeita,face aos progressos que fez, e conheço alguns, que não citarei, que até omitem, na sua bibliografia, esse primeiro título.
Mas aqui não foi o caso.
Jorge não renegou a sua primeira narrativa, feita de episódios que têm a contenção dos contos, sendo que sempre achei a arte do conto a mais difícil de todas, precisamente pela capacidade de dizer com menos um todo que ali está contido, do sentido do momento que ali se viveu, e onde é contado.
Eu, falando por mim, confesso que não releio nunca o que escrevi. O que em cada moemnto tinha de ser dito, foi dito, e assim ficará, porque o meu impulso é de seguir em frente, procurar o que há para além do dito, tentando dizer algo mais, ou outra coisa, que reflicta o momento em que vivo. Vivemos em cada momento uma espécie de totalidade que nos aguarda, ao escrever, que não tenha repetição, que seja única, ali mesmo, ainda que difícil de explicar, como a misteriosa afirmação de Deus a quem o interpela sobre quem é ele: eu sou aquele que é. Prefiro esta designação, em vez da usual eu sou aquele que sou. Nesta podemos inferir que ele simplifica a existência do Ser, sou assim como sou e não tenho mais nada a dizer. Uma espécie (perdoem-me o atrevimento...) de aguentem, ouvido na política da indiferença. Já eu sou aquele QUE É alarga o conceito de SER a uma misteriosa universalidade, eterna, de que Heidegger se ocupará longamente no SER E O TEMPO. Aquele que é, é eterno no eterno rio do Tempo, na vibração do cosmos, e está dada uma resposta que não aquieta, mas antes inquieta para sempre aquele que faz a pergunta.
O autor escolheu para epígrafe uma citação de Carl Sagan, o sábio que ilustrou e antecipou gerações que se debruçaram sobre os mistérios de um cosmos eterno face a face com a vida, a existência que é nossa, em que dia a dia todos os dias se materializam, parecendo comungar de uma esperança de eternidade que Sagan refere como desejada, mas reconhece como provavelmente impossível. Tudo no decurso dos dias, todos eles, nos dão a ver o fio da efemeridade, do nascimento à morte.
É ilusão julgar que alguma coisa de nós, ideia, sentimento, memória que deixemos irá alguma vez perdurar. Um pouco, sim, mas não para sempre.
Volto a esta obra de Jorge Reis-Sá, que chegou até mim, agora, depois de tantos anos. Alguma coisa nela deixou marca e temos de ler e descobrir o que foi. A forma, como se diz ? O conteúdo? como se diz ao querer determinados conceitos fixados que o Modernismo aboliu por completo, nos anos vinte da Europa? Eu diria que a fusão de ambos, conteúdo com um sentido herdado do neo-realismo detalhado, cuidando do ambiente, da descrição cuidada de personagens e acontecimentos relativos a cada momento descrito, e forma que de facto inova, na estrutura da narrativa entrecortada por reflexões que obrigam a desvio do pensamento do leitor, da época que é de memória de outros tempos, para o presente de agora. E é por essa necessidade de trazer o passado até ao agora dos nossos dias, todos os dias, que alarga a dimensão da narrativa e deixa a marca, aquela ideia, sentimento, memória, por pequena que fosse, de que falava Sagan.
Nisto reside o interesse e a actualidade desta obra, num momento em que diários e memórias, recuperação e transversalidades, se tornaram actuais, renovando o prazer de reler o que outrora foi escrito.
Logo no Índice temos a indicação de que estamos perante o esforço de recuperar, reflectido numa prosa cuidada, de um tempo que remonta ao passado, e se divide em fases: a Aurora, a Manhã, o Almoço, a Tarde, o Crepúsculo, o Jantar e a Noite. Para que se perceba que estamos no recuperar dos tempos de uma vida, nada seria melhor do que esta partição de capítulos. O tema, então, é aqui o Tempo, atravessando o ser, os diversos seres que a escrita materializa ao descrever as situações e os comportamentos de cada interveniente. A progressão da vida, os incidentes do quotidiano vivido na existência mais comum ou mais complexa. Gosto especialmente do modo como o narrador é seduzido, ao longo das páginas que correm, pela imagem-memória de uma criança que por ali se atravessa e o leva a dizer que essa criança é o mlehor que se tem. Pois através dela se recupera a infância que também já se teve, e embora longínqua se torna viva e presente.
Alguém, não me lembro onde, fez referência negativa ao uso da palavra moço numa prosa actual. Não sei porquê. Está em perfeita harmonia com o realismo dos ambientes descritos, desde a casa, ao campo, às galinhas, ao ranger das madeiras, tantos outros pormenores marcantes num neorealismo ali exercitado. Sou do tempo em que na Tavira da minha avó Rosa ouvia dizer, dos rapazes, os moços, ou os mocinhos, se eram mais pequenos, e das meninas as moças, ou as mocinhas, era um modo de dizer carinhoso e adequado aos tempos.
O que me leva ao elogio da escrita, nesta narrativa de visão e divisão: não cai em elaborações de roupagens estilísticas a despropósito, é realista, sim, mas directa e despida de arrebiques que se usam tantas vezes apenas para encher mais páginas...
Quando a narrativa, mesmo e sobretudo de evocação é genuína, nada mais lhe faz falta. Basta a fidelidade ao que se viveu e se recupera de novo. Com os detalhes necessários, que enquadram o ambiente e as personagens e emoções da altura, apenas talvez com a tal marca de que falava Sagan, o desejo de que mesmo do pouco que somos algo que seja muito permaneça.
Y. K.Centeno
Lisboa, 2023
Quem se eu gritasse
me ouviria
de entre as hierarquias
dos Anjos?
E se algum deles
de repente
me tomasse nos braços
e me apertasse contra o peito
num gesto de grande amor ?
Eu morreria de certeza
pela resposta
a um apelo gritado
uma pergunta não feita
tal o terror
que perguntar inspirava.
O silêncio é o domínio
dos Anjos
o pavor a reacção dos humanos
se quebram esse pavor
interrogando.
Deus não permite
a interrogação
apenas o aceitar submisso
que até aos Anjos impõe.
Que espero eu então
do meu grito calado
além de um silêncio
que os Anjos
não interrompem?
Morreriam
desfeitos na sua luz
na sua esfera distante
onde o silêncio
e apenas o silêncio
se poderia ouvir.
Como eu
ficariam imóveis
feitos pedra
cadáveres
aguardando sepultura
numa cova imperfeita.
Ninguém viria a tempo
de estender a mão
limpar a testa gelada
ou dar o beijo final
da compaixão.
Fiquemos todos então
guardados
resguardados
do temível abraço
do grito
que ainda se afoga
no peito
sem liberdade
nas pregas
da sua oculta ondulação
Y.K.Centeno
ANTÓNIO CAEIRO, O QUE É A FILOSOFIA?
A explicação que dá título a esta edição, da Tinta da China, 2023, responde a uma pergunta, sobre o que é a filosofia, começando pela obra de Platão e Aristóteles, que ambos dão início a uma interrogação que ora corresponde ora não, ao que mais nos inquieta: o que somos, nesta vida que é dada, e o que dela fazemos, com o que sabemos, com o que procuramos saber.
António Caeiro, de currículo vasto, nesta e noutras áreas, como na filologia a origem do sentido das definições que se atribuem à filosofia, ajuda a que se entenda melhor a definição usual: é o amor da sabedoria.
Mas definir o que é a sabedoria é uma tarefa difícil. Bom senso, experiência de vida, conhecimento num grau mais elevado do que é o ser, ou mais ainda do que é o universo criado? Do que é o seu criador? Ou ainda conhecimento de si, do que se é, o célebre nosce te ipsum? Conhece-te a ti próprio (porque assim pela via do que és, conhecerás tudo o mais?)
Ler Platão ensina o contraponto do diálogo, argumento e contra-argumento, e em alguns diálogos, como o Fédon ou o Timeu a reflexão sobre o que se é: sombras de uma realidade que nunca poderá ser conhecida, como tal e em si, e ainda, noutra vertente do seu pensamento, a descoberta de mitos, como o da Atlântida, ou o da música das esferas, que percorrerá a nossa cultura ocidental, recuperado por Shakespeare, por exemplo em algumas das suas peças. Ainda, e quem sabe se oferecendo matéria de maior profundidade, a contraposição, no livro X de A República de dois modelos de utopia social: o da cidade perfeita, em que reina a ordem de um pensamento de sábios, sendo eles que dominam e um outro, em que os criadores, os poetas, têm o seu lugar, ao passo que na cidade perfeita não o têm, devem ser expulsos, pois o imaginário criador perturba a ordem racional que se deseja que impere. Uma utopia, a ordem da cidade, um mito, o da criação perturbadora, que iremos descobrir adiante, nas tragédias, o género literário de que Aristóteles, na Poética, será um sistematizador. Mas Platão deixou um rasto na sua doutrina, o das Ideias fundadoras do Belo, do Bom e do Verdadeiro.
Aqui se torna complexo o nosso estudo do que é a filosofia: é a busca destas ideias materializadas no mundo que conhecemos, na nossa realidade? Ou sendo ideias antes fundam o que passaremos a chamar de idealismo platónico na história da filosofia? Ideias, mas não a realidade, matérias do imaginário mas não do conhecimento tal como o entendemos, de conhecimento racional da realidade palpável, por assim dizer. Séculos mais tarde, nos séculos XVII e XVIII ainda veremos que se discute a oposição razão vs. sentimento, racionalismo vs. idealismo sendo este um dos fundamentos do movimento do Romantismo, tal como o conheceremos sobretudo nos grandes criadores alemães.
Antes disso teremos com Descartes a afirmação do pensamento como razão mesma da existência: je pense donc je suis, penso, logo existo.
Embora na versão traduzida, entre o ser e o existir alguma coisa da essência (a essência do ser, segundo Heidegger) se perca pelo caminho. Em o Ser e o Tempo é aprofundada esta questão. A noção do Ser pertence ao reino da imaterialidade intemporal, universal, das Ideias de Platão, ao passo que é no Tempo que se materializa a existência da condição humana que é a nossa, particular, individual, limitada.
A escolha de Kant, sobretudo com a Crítica da Razão Prática, introduz a dimensão moral nesta apresentação das doutrinas filosóficas que até ele não tinham sido discutidas de modo autónomo. A Ética passa agora a ser uma área de reflexão com um estatuto autónomo próprio, que não só tem lugar como ultrapassa a questão do conhecimento só por si. Entram o bem e o mal na discussão dos valores e das opções que se colocam ao homem no momento da escolha. Sem Kant não poderíamos entender Nietzsche e a sua reflexão em Para Além do Bem e do Mal que teria, como teve, um percurso que chegou aos nossos dias, pela escrita de um Musil, em O Homem sem Qualidades, ou o fanatismo de um Hitler.
Chamo a atenção dos meus leitores para o facto de eu não estar a fazer aqui um exercício de crítica literária, não faço crítica literária, nem tento, ainda menos, fazer crítica filosófica. Converso, ao correr da pena, com este livro de António Caeiro que me seduziu pelo modo como nos apresenta o seu ponto de vista sobre o que é a filosofia, através de uma escolha de pensadores que estão na base e nos dão os fundamentos do pensar filosófico, desde Platão até Heidegger ou Wittgenstein.
Interessante como no percurso escolhido poderemos ler em Heidegger a transição para O QUE É PENSAR, suas últimas aulas de filosofia. Pois toda a filosofia é pensamento. E como se dá, em Wittgenstein, uma nova transição, muito própria do Modernismo, sobre as questões da linguagem e modos de exprimir o que se pensou e deseja dizer. A conclusão parece simples, mas não é: wovon man nicht sprechen kann darueber muss man schweigen. Devemos calar o que não conseguimos dizer. Aqui poderia entrar o célebre comentário de Kierkegaard: onde as palavras acabam, entra a música.
Há então um limite no que concerne às palavras, a expressão, o dizer do que seja impossível. Celan trabalhou o dizer impossível, nos seus versos despidos. Mas Wittgenstein, filósofo que se ocupou em simultâneo do pensamento, como Heidegger, e da linguagem, como Saussure e os estruturalistas, pretende ir mais longe, e nega o que lhe surge como impossível. Será contrariado por Valère Novarina, pintor e dramaturgo franco-suíço que o desafia: ce dont on ne peut parler, c'est cela qu'il faut dire. O que é preciso é dizer aquilo de que não se pode falar. E não se pode por um conjunto de razões, nem sempre fáceis. Por ignorância? Por não se entender os fundamentos que obrigariam ao silêncio? A moda? A pressão social ou política? A descrença num mundo de crenças, algumas radicais e temíveis? Ou pura e simplesmente porque conceitos como os da doutrina platónica das Ideias nos parecem tão distantes do real conhecido que falar ou aspirar a um mundo melhor, mais humano e perfeito não só não pode ser credível, como está imbuído de uma irracionalidade chocante para o homem do século XXI, já bastante orientado por logaritmos, e não por sentimentos piedosos, mas que se tornaram caricatos.
E contudo... a filosofia, com o seu pensar este mundo e o outro, e a reflexão sobre o que é a condição humana (a natura naturata de um Spinoza) ainda continua e ainda nos desafia. A sua importância, o seu estudo, são cada vez mais importantes para a mente humana na inquirição precisamente do que é, e do que pode vir a ser, a menos que seja varrida do mundo por alguma catástrofe inesperada e fatal.
Pensar é algo de estruturante, na mente humana. Nasce da imperiosa busca para lá dos Sinais que, como dizia Hoelderlin, tenham perdido o Sentido). E a linguagem, o que é senão essa mesma estrutura já constituída geneticamente que podemos observar, segundo alguns, desde a infância e evoluindo depois segundo o meio cultural, social, político em que cada um se desenvolve. Discute-se nesta aquisição da linguagem, se é algo de adquirido ou já inato.
O problema não se coloca a um filósofo, no seu percurso, em que é o pensar que estrutura as suas ideias e a exposição das mesmas, ora seguidas ora contrariadas, como na acentuação do Racionalismo face ao Idealismo ou ao místico neoplatonismo que virá a ter grande influência no século XV, com as primeiras traduções dos antigos clássicos feitas por Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Reuchlin (para a Kabalah judaica). Com eles tem início o chamado Humanismo no Renascimento filosófico e literário (e podemos dizer, em parte, místico, com as traduções de Platão e Plotino). Em Pico della Mirandola é especialmente interessante o seu discurso Sobre a Dignidade do Homem, que fundamenta esse novo conceito de Humanismo, que surge em ligação com o Renascimento.
Trazer a discussão à dignidade humana, sendo o homem uma criação divina, relaciona um com o outro, o homem com Deus, a dignidade suprema, e Deus com o homem, a sua suprema criação.
Por aqui podíamos regressar a Kant, e à sua Razão Prática, voltando a aprofundar o conceito de Moral e criando um espaço filosófico, o da Ética.
Nesta procura do saber, pela via do saber filosófico, percorre-se um caminho em que tudo está ligado, desde o princípio ao fim que ainda não conhecemos, mas pelo qual vamos, por tentativas, procurar entender o que pode significar. Torna-se explícita a necessidade de ser curioso, de ir fazendo perguntas, ainda que fiquem sem resposta, pois sem a curiosidade que nos move, em nada poderemos progredir, nem na ciência, nem na sabedoria da experiência de vida que é a nossa. A filosofia, pouco a pouco, é isso que nos mostra: o amor e a curiosidade de saber. Saber mais sobre o homem (a dada altura será diálogo com os eus da consciência e do inconsciente) a natureza e o mundo. Um mundo que se alarga para lá do planeta conhecido até ao cosmos infinito.
Até agora passeei por um jardim, com alamedas cuidadas, cada uma conduzindo a uma saída possível, diferente, e com um pequeno banco onde nos pudéssemos sentar, a reflectir. Está na hora de apresentar melhor o Jardineiro, fazendo-lhe a justiça que merece, pois foi ele sempre, e continua a ser, o Cuidador.
Cito-o, como é devido, nas suas conclusões:
" No tédio profundo renasce o espírito da filosofia. A filosofia exige a transparência relativamente ao modo como temos vivido, como temos sido com os outros, como temos sido com a nossa própria possibilidade, o nosso potencial. Essa transfiguração e metamorfose podem durar um breve lapso de tempo, numa manhã, no local mais insuspeito, como o corredor da nossa casa a caminho de uma divisão. Nesses momentos faz-se a experiência da vida no estrangulamento do seu sentido. É também aí que nasce a possibilidade de ser quem se é. Portanto, a filosofia não acontece num horário determinado. A possibilidade da filosofia dá-se no interior da existência, 24 horas por dia, sete dias por semana. Porque é óbvio que não nos encontramos nessa situação extrema e radical. O que aconteceu no tédio profundo foi uma vivência que temos de rever e tentar compreender vezes sem conta. A possibilidade de vivermos uma pergunta é também a sua resposta. Depois de nos ter acordado para a existência, a filosofia tem de ser mantida acordada, não a podemos deixar adormecer, porque a ditadura do quotidiano pretende vingar e fazer esquecer-nos do que verdadeiramente nos aconteceu." (p.367).
Descubro aqui uma coincidência (sincronicidade?) com o que Clarice Lispector chamaria a sua Hora da Estrela. Não estão longe um do outro esta autora que comecei a ler aos 18 anos e que agora me chega do passado e este filósofo, moderno criador que nos explica e inspira para um despertar também ele de estrela.
Y. K. Centeno
Lisboa, 7 de Novembro, 2023.
Ah se eu pudesse chorava
lágrimas como rios
não apenas por mim
que já chorei
o que podia chorar
mas por todos os outros
os feridos
os mortos
os que abandonados
sobram
mas não têm destino
ah se eu pudesse chorava
lágrimas como rios
que se abatem com força
pelos ínvios caminhos
onde tropeçam homens
e mulheres
e mais à frente
ainda brincam meninos...
MÃES
Já estavam mortas
quando os soldados voltaram
para as matar.
Tinham levado os filhos
não diziam para onde
se mais perto ou mais longe
e as mães sem saber como
nunca os iriam encontrar.
16 de Outubro, 2023
CLARICE NA HORA DA ESTRELA
Aqui vai o começo de uma nova mini-novela, a contraposição de dois pensamentos que se entendem, duas mulheres que pensando o mesmo não têm o mesmo destino, uma Clarice Lispector que morre cedo, em 1975, ano em que sai esta sua última experiência criativa, e outra, que sou eu, a caminho dos 84 anos e não procuro aqui rever a sua vida, nem a minha, mas antes pensar com ela e sobre ela, na busca dessa hora da estrela que nem uma nem outra soubemos definir, mas procurámos, cada uma no seu caminho, feito de uma vida vivida entre poeira de estrelas e o simples pó da terra a que se regressa um dia.
Descobri a obra de Clarice Lispector e senti logo uma afinidade de pensamento, rigor de escrita, depurada, como eu gostava de ler e me entusiasmava, página a página que ia abrindo. Fui sempre lendo. Mas confesso que não gostei do seu último, a Paixão segundo G.H. por nada mais do que ter entrado uma barata no seu livro. Odeio baratas, é mais forte do que eu...
Estamos em fim de Julho, inscrevi-me num curso sobre a cultura aramaica, na tradução mais antiga de Bíblia. É on line, hoje é tudo on line, e será a maneira de me manter ocupada quando toda a família estará fora, em férias. Ficarei menos sozinha, relendo o Génesis, descobrindo o simbolismo que tantas vezes procurei.
Hoje acordei com um novo pensamento: por que razão me afastei da prosa, da novela, ou do romance, sentindo-me incapaz de desenvolver uma circunstância, um personagem e a partir daí uma narrativa que me vá conduzindo?
Farei esse esforço, não sei bem como. Nem será com ideia de publicar, será para afinar uma qualidade que perdi, com o tempo.
A minha vida é agora muito diferente, porque desde que tive as crises de coração e a operação, me desequilibro. Preciso sempre de alguém, para me acompanhar. É uma enorme limitação, é essa dependência, a que não estava habituada, que me deprime.
Mas vou fazer esse esforço.
Havia naquela escrita uma compulsão, uma intensidade, e era isso que me atraía tanto.
Hoje não tenho, e daí a dificuldade de começar.
Começar, simplesmente. Como é difícil o princípio, seja da paisagem como dizia o Pedro Chorão nos seus quadros, seja como eu agora na prosa de ficção.
Parto sempre de algo bem real, ou melhor, partia, e esse real é o que me falta agora. Porque o real é o que vejo nas televisões, as guerras brutais, as políticas egoístas, as vaidades do mundo, uma sociedade esvaziada de valores, um tremendo abandono da arte e do conhecimento. Nem sempre, mas o pouco que vejo tira-me a vontade de fazer seja o que fôr. Um mundo sem salvação, a humanidade decadente não merece.
Penso então em Clarice: a mulher que tinha dentro de si um grito, e tinha de o gritar.
Eu o que tenho?
Um enorme princípio de aborrecimento, que filhos e netos às vezes interrompem, e nesses momentos sinto-me mais viva.
Mas a seguir, mais nada.
( a seguir, o livro, nas ed.Glaciar em breve).
Nuno Félix da Costa, depois da prosa agora de novo a poesia.
O que há de tão especial na sua escrita, que se desdobra em géneros tão diferentes (mas na verdade nunca se opondo, antes se completando) como o ensaio, científico ou filosofante e literário, a prosa de ficção entre o real e o imaginário, a poesia que inquieta no decurso em que a palavra se busca e, mais difícil, nos busca, a nós que lemos, e não sabemos, caminhando pela mão dos seus versos, livres ou libertários (deslizando ao estilo do abjectionismo, que também na pintura se poderia encontrar) e que por vezes abandonam a primeira das linhas indicadas, seguindo outras, mais leves ou mais pesadas, de um modo que é, em simultâneo, convidativo (à reflexão) e displicente (como quem diz, é só para quem percebe e deste modo se liberta e encontra).
Há um ponto de encontro, o da atracção que exercem, contra tudo e contra todos, se assim fôr necessário. É a condição que ser humano impõe, descobrimos, enquanto lendo vamos chegando ao fim. Do livro e em parte de nós mesmos.
Será que atrai precisamente porque não se percebe? Porque, herdeiro pósmoderno do surrealismo, deixa a mão correr pelas associações livres do seu imaginário, sem receio de exibir a cultura que tem, e que no fundo, desprezando, preza acima de tudo? É sem dúvida um poeta que transporta uma cultura assimilada, de que se nutre como alimento base para um pensamento diferente. Cultiva a diferença como planta rara que é e surpreende. Por isso prende? Entre os versos a flôr azul de um nostálgico Novalis? A flôr que nunca se colhe, preferindo ficar na contemplação de uma raiz oculta e que vibrando algures, de tão grande e tão funda, mantém em suspenso o mistério das vidas no universo.
Porque Nuno Félix aborda várias vidas em cada um dos poemas que se dispõe (ou é forçado?) a escrever. A sua escrita é a vida, e na escrita é a poesia que nos fala mais alto. Não transporta imposições, mas emoções que levem ao pensamento do que se é, mudando em cada momento. Nada é igual, nem o que nasce do silêncio contido, nem o que nasce do discurso escolhido. Cada verso uma escolha, cada poema um destino escondido.
Uma hora de estrela, no que diria Clarice Lispector, cuja voz nasceu sem o toque da infância, mas logo amadurecida. Um olhar renovado e que renova a vida.
Leio estes poemas para ser Humano e embora não saiba qual a definição de humano que seria adequada, logo sinto que é a mim que se dirigem, são a expressão da condição humana na sua mais nua realidade, do quotidiano banal ao sonho mais sonhado.
É importante o dizer, o bater do seu ritmo quando lemos os versos em voz alta. Por ali corre sangue.
O poema que Nuno escolheu para a contracapa veio ao meu encontro como se fosse escrito por mim, ou para mim. Agora demoro em especial em dois momentos: demorar a levantar, prolongar a abertura da janela (...) os olhos que pareciam colados ao escuro, por instantes são sonhos, espelhos densos que sabemos se fragmentarão e ao sairem da boca criam as órbitas dos astros, o brilho das estrelas e - finalmente, o resto do cosmos.
Demorar, prolongar, criar. Um exercício de paciência, um saber que a espera contida recompensa, embora não resolva o essencial mistério que só o cosmos sabe e guarda.
Dirão, e não se alude aqui às outras qualidades deste médico que é Professor, Poeta, Fotógrafo, Pintor, e filosofa como no tempo dos gregos sobre a existência, o ser, o ser humano na sua condição? Ou simplesmente a descoberta da consciência do que se é, na nua simplicidade da vida e da morte, ambas com destino marcado que ele, na sua sabedoria, melhor do que ninguém poderia antecipar? Não lhe faz falta, nem a nós, o excesso da consciência que se torna pesada e impede a libertação da voz.
Na qualidade de médico conhece bem os limtes do corpo, a matéria mesma de que se ocupa noutras horas, sendo que o corpo é albergue da alma e desta também é preciso cuidar. Na qualidade de poeta conhece bem a liberdade imprescindível da voz, a que brilha com um brilho de estrela, mas que ainda que seja luz é no corpo que se materializa. Corpo e alma eis o que podemos inferir da condição humana. É pouco? É a realidade possível, frágil e com grande necessidade de compaixão e amor, pois no Éden a esse corpo e alma a eternidade nunca foi concedida. Uma parcela apenas, uma pequena por vezes tão inacessível, parcela de conhecimento. É o que o autor aqui nos oferece, em páginas múltiplas, variadas, de entrega generosa.
Poemas de um grande poeta que olha em seu redor, enquanto também se rodeia de silêncio, que não lhe pesa, antes o deseja, quando escreve.
A sua mão corre no papel, o primeiro verso quase que arrasta os outros, que constrói ou desconstrói, com o bater de um mesmo ritmo, podia ser de Camões ou de Pessoa, ou de Mário de Andrade, o Modernista.
A narrativa poética é aqui tão natural que fulgura, apesar de algum hermetismo no poema que, apesar de tudo, por ser poema, permanece fechado em si mesmo, exigindo releitura. E voltamos a ler, decifrando o que se esconde no intervalo das palavras, aí reside o sentido do verso, a sua necessidade.
Em Tercetos Queimados, que também li, e foram a minha primeira revelação da sua obra (terei de ler o blog mais uma vez) não referi o que agora ma parece tão óbvio, pelo contraponto com o GELO. No primeiro a presença subtil do elemento Fogo, e neste agora a presença da Água. Pois este gelo é água, um dos quatro elementos da alquimia transformadora.
No poema da p.19, Gelo -1, que indica que deve ser lido junto com outro de Mário de Andrade, eis o que escreve:
Por isso descremos dos gestos profiláticos,
por isso sempre que possível o compasso
de ombros e pernas fora da máquina-mundo,
e a sede do nada se nos alcança o êxtase
da carne ou do verbo. Um corpo é sempre
um corpo estranho; um ano, vinte e tantos
anos. Dentro de mim um cubo muito se perde mas
daqui indago a emaranhada forma humana
corrupta da vida que muge e se aplaude.
Ossos rijos, por enquanto, sangue em temperaturas
voláteis. Algo o detém como se esperassem.
Exegetas pouco pouco alcançam a miserabilíssima arte
nossa ao mesmo tempo em que se rompem
e se dobram fronteiras e colunas (vertebrais).
Adiante, em Gelo II, p.33, o contraponto surge mais claro, nestes versos:
...
Num pico
de neve escarpas de medo
e coragem ardendo.
As mãos frias dos mortos
têm esse fogo por dentro.
E segue num Gelo III, p.37 a experiência que um " grito primevo" num sonho lhe permite ouvir, enquanto"tanta coisa se move, e a vida desaba". Por isso o poema, este, dialoga com outros, como no poema que deve ser lido com e, como ele diz, "não deságua, nem se move nem se abre". Tem de ser o leitor a abrir.
Sérgio dialoga, nos seus poemas, com outros que são poetas, como ele. Num dos seguintes, No Teu Rosto, a experiência provém de Gastão Cruz, O Verão Novo, na p.63:
E termina: "o gesto busca um novo sopro / uma sílaba ao menos - agora / que já somos outros". A experiência que define como " de tempo e espaço, tempo e modo" é a experiência da cidade e de um corpo que mudam. Mudaram e são outros, e talvez essa mudança lhes permita o verso.
E de novo o Fogo marca a sua presença, p.73, em O Cacto:
O poema é o próprio fogo, imaterial
em sua imanência mas fogo
...fecho os olhos, apenas fecho
os olhos para que o poema nasça.
No poema AINDA, (saberia ele que é o título de um meu próximo livro?, ou é uma destas sincronias, como dizia Jung? ) que releio porque ali surge a pergunta de "quem sou", igual em todos os que escrevem, para saber quem são, e ainda que não haja resposta, pois só Deus disse eu sou o que sou (ou aquele que sou) - não disse sou quem sou, nem sou aquele que é, a questão do ser ficou em suspenso, desde os primeiros tempos, e até hoje.
Sérgio escreve no poema que tudo foi mudando, e até as frases já não são inteiras, pobres versos fracturados, incompletos, em busca do que seriam, se o ser afinal fosse outro e não o que é. Mas conclui, Ainda assim escrevo, e é nesta palavra que desejo ficar, pois vem ter comigo assim que a leio, eu que me julgava parada, não apenas interrompida por coisas que são mais do que eu, e de repente me descubro Ainda a escrever .
Neste Gelo de Sérgio Nazar David se regressa ao corpo, e de forma muito especial à Vida.
Mouraria, Mouraria
tanta côr tanta alegria
imagem de tanta vida
de longe e de perto vivida
por amor foste escolhida
tua gente repartida
como versos de cantiga
aberta nos corações
não há lágrimas que durem
são limpas por tua luz
pelo encanto das ondas
desse mar que nos seduz
Fica-se logo a saber, na introdução, que estes livros resultam da tradução feita por um cristão do séc.I, convertido e conhecedor do hebraico e do aramaico e que achou útil dar a conhecer esta versão, mais antiga, dos livros sagrados da Bíblia, dos espaços onde decorreriam os momentos da História de Israel. O Aramaico era a língua de Israel, da Síria e dos imensos territórios férteis da Mesopotâmia, então a Pérsia e a Babilónia e os berços da civilização e mesmo até, diz o autor, do Jardim do Éden.
Era esta a terra de Abraão, de Isaac e de Jacob, em que todos falavam em aramaico, há mais de dois mil anos. O primeiro livro do Génesis está em aramaico, de que o autor da tradução vai dando alguns exemplos.
Para mim o interessante é ver em que pontos difere, esta sua versão, da tradicional, conhecida, da Bíblia de Jerusalém. Começando com as primeiras linhas da Criação, não se notam diferenças. Os episódios, a expulsão do Éden, a morte de Abel por Cain, as gerações e a multiplicação pela terra, que Jeová ordena, mais do que uma vez, o desgosto com os pecados das suas criaturas, a excepção de Noé, nada por aqui me suscita interrogação.
Mas chegando ao capítulo 6 é interessante ler o que se diz: os filhos do homem começaram a multiplicar-se Na face da Terra e tiveram muitas filhas. "os filhos de Deus viram como eram belas as filhas do homem e ficaram com elas todas" o que lev a Jeová a dizer que o seu espírito não perdurará no homem porque ele é feito de carne, e viverá até aos 120 anos ( antes podiam viver até aos 800 anos, e a partir de agora é imposto um tempo certo, e este limite dos 120 anos, o que hoje em dia está a ser quase verdade, no nosso tempo actual...).
Segue-se a referência aos Gigantes, Homens Poderosos, filhos desta união dos filhos de Deus com as filhas do homem, e que seriam os heróis míticos e "da fama" dos tempos antigos.
Poderia o autor estar referir-se a Homero, à sua obra por onde tudo passa, de mitos e de lendas, que a memória arcaica foi fixando? Lembro Polifemo, o Gigante de Rodes, de que se encontrou um pé..haverá outros, como Golias ou como os que surgem nos contos populares.
Segue-se o desgosto de Jeová com a humanidade que criara, e a decisão de ajudar apenas Noé, indicando-lhe como fazer a sua arca de salvação e levar um par de cada criatura animal e humana, para escapar ao dilúvio.
A numerologia é algo de tão frequente e tão fundamental, nestes escritos, que de facto se torna uma verdadeira ciência, que só os peritos, os kabalistas podem entender.
Mas para mim, no episódio sobre o alfabeto e o significado de cada letra, a começar pelo Aleph, foi muito interessante que significa o NADA, e não como podemos pensar o VERBO primordial.
Primordial foi o Nada e nesse Nada tudo teve a sua origem.
Neste sumptuoso volume, de verdadeira edição de arte, se reúnem as aventuras de Dog Mendonça e Pizza boy, com um extra que os aficionados da banda desenhada irão apreciar ainda mais. Por ser inesperado, este extra, que se inspira numa lenda, que pode ser real na origem ou fictícia, o que interessa é que ocupa ainda hoje o imaginário da cultura chinesa, e remonta às aventuras de uma feroz pirata - mulher - que reinou pelos mares da China no século XV, tendo por base um conjunto de belos poemas, cujos versos, variando conforme o autor, mas todos louvando a coragem, o desaforo, a violência dos saques daquela misteriosa mulher.
A aventura começa com a vida de Lo Pan numa pequena aldeia de Cantão, junto ao rio das pérolas. É um menino cujo maior prazer é passear com a mãe na praia, brincar apanhando conchas e pedras redondas, e à tarde aprendendo velhos poemas, ou inventando outros que lhes ocorriam e nunca tinham sido ditos. Era uma vida de rotinas tranquilas, esta de Lo Pan com a sua mãe até lhe acontecer uma aventura extraordinária, que interrompe a sua infância feliz e o leva a um crescimento de verdade imprevisível.
A mãe, de nome Lu Shi, tinha um sonho nunca revelado, pois às mulheres ir o teatro ou de algum modo conviver com a música ou a dança ou o teatro eram actividades interditas. Mas ela guardava esse sonho, de um dia poder vir a ser actriz...sonho impossível de facto. Filha de mãe pobre, a mãe tinha-a vendido a um homem mais velho que tomaria conta dela, e do filho que tivessem.
Assim, Lu Shi o que fazia com o seu filho era brincar também, sonhar com os personagens das óperas conhecidas, repetindo os versos que uma vez ouvira, quando se disfarçou de rapaz e foi ver a Ópera de Pequim.
Nos mares do império Quing, o desta época em questão, navegavam os mais terríveis piratas, cujas aventuras corriam de boca em boca, com os assaltos os roubos, e a fama que adquiriam. O mais célebre era Zhen Pan, o marido de Lu Shi e pai do pequeno Lo Pan, dono de centenas de barcos.
Aos dez anos o pai leva-o na sua primeira viagem de barco, para que aprenda as artes do mar e da guerra. E certa outra viagem o pequeno assiste a algo de terrível, viu o pai decapitar um outro pirata, seu rival, pois queria ser o dono de todos os mares.
De regresso a casa o pequeno Lo Pan corre para os braços da mãe, e do seu carinho cheio de amor e conforto. Tinha sido para ele uma experiência terrível.
Também ele, como a mãe, tinha um segredo. De noite vestia as roupas de mulher que ela usava, pintava-se com a elegância que lhe conhecia, e depois cantava e dançava, enquanto o resto da casa dormia.
Mas um dia a mãe apanhou-o nessas brincadeiras, diante do espelho onde ele se imaginava como se fosse o palco de um grande teatro, e zangou-se com ele. O seu destino estava traçado, ele teria de ser um pirata, como o pai.
Contudo, o pequeno Lo Pan acabara de fazer uma descoberta : a beleza da Arte, e do Feminino (que Jung chamaria Anima, o feminino no Ser). Não conseguia entender por que razão algo que o fazia tão feliz podia ter algum mal.
A história sofre então uma reviravolta: o pai chega um dia antes do previsto, e apanha o miúdo vestido com as roupas da mãe, a cantar e a dançar em rodopio feliz. O pai perde a cabeça, e furioso zanga-se ao ponto de o expulsar de casa, renegando-o para sempre. Exclama que aquele não era o seu filho, e melhor ficaria na casa de uma célebre prostituta.
Ameaçado até pelos criados que o tinham visto crescer, sem que a mãe o possa ajudar, Lo Pan sai e estremece ao ouvir o bater com estrondo do portão da casa.
Foge pela noite fora, apavorado com medo dos bichos que a sua imaginação criava, até que chega a uma cidade, onde o veremos transformado de jovem rico em pedinte, a estender a mão para uma moeda ou algumas migalhas de comida.
Surge a dada altura diante de si uma mulher, que se debruça com voz suave para o ajudar: acorda, diz, chamo-me Mei Li e o seu olhar era cheio de compaixão. Lo Pan levantou-se e seguiu essa mulher, sem saber muito bem para onde. Ia começar uma nova etapa na sua vida, num barco enorme, de prostitutas que serviam com grande sucesso, clientes que ali vinham regularmente e de quem ele, nas suas vestes femininas, também serviria conforme pudesse.
Por muito estranho que de início lhe parecesse, acabou por se habituar e sentir feliz, entre elas todas. Já tinha perdido a esperança de alguma vez encontrar o caminho de volta a casa, e aceitou esta nova forma que o seu destino tomara.
O seu gosto pelo canto e pela música nunca diminuíra. e certa noite ouviu Mei Li a tocar e lembrou-se de cantar os versos da célebre canção que ele conhecia desde a sua infância, a da flor de Jasmim tão bela, tão bela e tão perfumada...Mei Li ficou espantada com tão grande dom assim revelado, e de novo a vida de Lo Pan iria levar uma volta. A beleza do seu canto tornara-se conhecida e vinham pessoas ouvi-lo cantar, juntando-se por ali à roda do barco.
Ele escolheu então o seu nome artístico :
MADAME CHEN - A MULHER DRAGÃO
Podia demorar-me aqui um pouco, para reflectir nesta escolha e no seu simbolismo: mulher-dragão, reunindo o feminino Yin e o masculino, Yang, a sombra e a luz, nesta história de alguém que busca sua identidade real, complementando contrários.
A aventura vai crescendo em acção e mistério, levando consigo o leitor.
A fama de Madame Chen chega aos ouvidos do Imperador, que chama Lo Pan ao seu palácio de Pequim. E ele/a ali fica com ele adoçando uma velhice que levava já o velho imperador para o fim dos seus dias.
O sucessor não ligava nada às artes e Lo Pan perdeu o seu lugar, saiu de Pequim, regressou à protecção de Mei Li. Não cabe num post um guião como o que Filipe Melo concebeu, base real para um filme que pode vir a ser extraordinário de acção e emoção. Basta agora dizer que numa das suas sessões, no meio de grande multidão reconhece um dos criados das su casa de infância, e força-o a levá - lo de volta até lá onde fica a saber que a mãe se suicidara com o desgosto da sua expulsão e o pai, por sua vez destroçado com a morte da mulher se retira para o mar, para os seus barcos, nunca mais sendo visto em terra.
A escrita de Filipe Melo, minuciosa, delicada e subtil, adensa a curiosidade e a emoção de quem lê, e seguimos, como quem segue uma aventura estranha que, sem que se diga, é na verdade uma história de iniciação, como num Bildungsroman - romance de formação ao modo de um Goethe, em Wilhelm Meister's Lehrjahre ou de um Fielding, por ex. em Tom Jones. E passo o célebre Dom Quixote...Há muito suporte cultural, também oriental, claro, de um imaginário antigo, aventuroso, mas contendo uma lição, ao modo do Taoísmo, ou da moral de Confúcio.
Apresso-me a não revelar tudo, o leitor deverá fazer também ele o seu percurso de iniciação pela leitura. Lo Pan usará a sua fortuna para comprar um barco, arranjar uma tripulação de assassinos de coração duro como o dele agora se tornara, feito pedra, e decide correr os mares e tornar-se tão conhecido pela ferocidade e riqueza dos saques como fora o seu pai. No seu barco serviam homens e mulheres desde que dispostos a todas as atrocidades.
E a aventura continua até ao encontro com o seu pai, que não aceita a rivalidade e tendo conseguido prendê-lo o decapita, de um só golpe, e lança corpo e cabeça ao mar.
A lenda reza que o dragão rei daqueles mares se toma de compaixão pelo jovem, opera o mágico milagre de reunir a cabeça ao corpo e lhe devolver a vida com uma condição....
E fico por aqui , o leitor terá de descobrir o que depois sucedeu.
Sem esquecer o que as ilustrações de Juan Cavia, no seu desenho ora mais carregado ora mais leve, acrescentam ao sabor das páginas com o prazer e o entendimento do que vamos lendo. A ilustração é uma arte especial, o criador tem de se fundir com o que ali está criado pela escrita, ampliando o sentido.
Já tenho escrito sobre João de Mancelos, com prazer especial, julgo que nos é comum, pela arte do Haikai. Embora um ou outro autor me tenha dito que tanto faz dizer Haikais, para plural, eu aprendi com Alberto Pimenta, cuja erudição é indiscutível, que o singular é Haiku, e o plural Haikai (sem se usar o "s"). Como não falo japonês e só leio traduções, não entrarei nesta discussão, mas tenho uma linda prenda do Alberto à minha frente, uma linha vertical de um Haiku condensando nessa imagem uma única ideia. Esse é o segredo e o encanto desta prática artística japonesa: uma ideia única numa única imagem que a condensa e contém. A ideia dirige-se ao nosso espírito, a imagem ao nosso sentimento e sensibilidade, como faria um desenho ou um quadro. Uma imagem.
Logo no título do seu livro, que prefiro chamar de poemas e não de Haikai, excepto num caso ou noutro que o permitem, o autor nos deixa com a imagem de um coração"de aluguer". É de aluguer por estar livre e feliz ou por ter sido libertado por outro, com desgosto seu?
Ficamos com curiosidade de saber e vamos ler o que nos diz, nas suas páginas. Está dividido em 4 secções: Deslumbramento, Labaredas, Abandono e Memória.
Momentos que revelam Atracção, Paixão, Afastamento e Memória
(Saudade do fim dessa paixão, poetizada ao longo dos vários versos?).
Há que ler, devagar, a leveza dos versos escritos como feridas de alma que não se ultrapassaram. Ou não haveria memória, mas esquecimento, ou apenas simples evocação. A memória traz um actualizado sofrimento, a evocação pode ser tranquila em paisagem de horizonte longínquo.
Muitas vezes me ocorrem os poemas de Rilke, a propósito das cartas a um jovem poeta, a quem recomenda que não fale logo dos seus primeiros impulsos de amor, pois o amor perturba a clareza do verso. E que só escreva se para si fôr a escrita questão de vida ou morte. Para Rilke era, e assim ele criou uma obra que se tornou universal, para não dizer eterna.
O amor, deste coração de Mancelos, não sei se será de vida ou morte, na narrativa que é oferecida. Mas a algum impulso mais fundo obedeceu, ou não o estaríamos agora a ler, acompanhando o que sentiu nos diversos momentos que também eles são universais: pois quem nunca amou, viveu e sofreu amando, até que tudo findou? O tema do amor é o mais universal, como há pouco tempo, falando de paixão e morte nos dizia José Pedro Serra em Mythos, o seu programa da televisão.
Na minha idade sei bem que paixão e amor não são a mesma coisa, e conforme as épocas e as culturas a sua vivência é diversa.
Vivemos uma época de veloz vivências, ou seja de paixões, intensas mas condenadas à brevidade dos tempos. Já o amor seria vivido de outro modo, e nem sequer está na moda. Daí que neste livro as labaredas tenham mais peso e rápido se desfaçam em abandono.
Mas volto à capa do livro, que além de ser muito bela, (parabéns à Raquel Ferreira, que não conhecia como ilustradora) nela sim, com o seu título inscrito, coração de aluguer, descubro o impulso misterioso de um Haikai: Fino rosto no meio da sombra e mão que vivamente afasta, recusa (quem sabe se depois ter aceite, alugado, alguma relação de momento, passageira?)
Um Haiku pode ser assertivo, mas pode igualmente ser de interrogação deixando ao leitor a hesitação da resposta. João de Mancelos, e este seu gosto pela cultura oriental, japonesa, terá lido Kawabata e as suas Belles Endormies, notável romance testemunho de uma prática usual ainda no seu tempo e que eu li ainda jovem, em Paris e tanto me deslumbrou pela beleza e pela crueldade que indirectamente revelava. Jovens que eram adormecidas para que os seus corpos indefesos pudessem ser alugados por quem pagasse uma noite junto delas, e vivesse a ilusão de amar e ser amado em entrega total. Muitas morriam, devido à anestesia que lhes era dada. No caso deste romance o homem já de idade que procura e aluga sempre a mesma jovem, por quem se apaixonara de verdade, e a visita uma e outra vez, o amor é vivido de forma intensa e trágica, pois ela acaba por morrer.
O amor de aluguer descrito nos Haikai de Mancelos é forçosamente diferente, pois ele é jovem, e num jovem a relação é vivida de forma intensa, e não busca um corpo tranquilo, quem em nada se recuse, mas que esteja bem vivo e que lhe corresponda, enquanto a relação dure. É o momento das LABAREDAS.
Meditando sobre a capa, uma ilustração também pode evocar uma forma de Haikai. Atrevendo-me a pensá-la ( a idade que tenho já me permite tudo, ou quase, e a intenção é desvendar amor e não criticar) eu escreveria:
Olhar que se desvia
Mão que afasta
Paixão que se acabou
ou
perdendo-me em variantes:
olhar desviado
mão que afasta
paixão que se extinguiu.
Fica-nos a questão do adjectivo, " de aluguer" .
Coração de aluguer não pode ser um coração qualquer, e só o poeta poderia explicar melhor: nessa relação que a narrativa poética descreve quem foi que por momentos a viveu, a Amada ou o Amado, quem abandonou primeiro e para sempre, disponível apenas para aquela espécie de aluguer e nada mais? Amor de acaso e de ocasião?
Mas que foi enquanto durou intenso e deixou marcas?
Vamos ler.
A PRECE é um apelo, depois de um deslumbramento, da descoberta de alguém que se deseja. Os versos adiante confirmam essa sede de amor: " o meu amor vinha / de um deserto longínquo / e tinha sede de mar.
A solidão é a imagem escondida o amor a revelada. Lembro a epígrafe de Italo Calvino, no início, o mar dentro de um copo", metáfora para a poesia. Ou aqui um deserto que procura a água do mar.
O imaginário da água atravessa estes poemas, e sabemos como da água nasceu Vénus, a deusa do amor esplendoroso a que os poetas se podem entregar. Água, amor, beijos de princípio do mundo, pássaros em busca desses vôos de pura elevação espiritual. Na verdade, tudo é inocente, o corpo do desejo, só de sonho, ainda não está presente.
Mas haverá em breve a imagem do fogo, acelerando o bater do coração sequioso.
Já em RISCANDO A NOITE, depois do elemento água temos no fósforo o elemento fogo. Água e Fogo, como Terra e Céu, os elementos base do imaginário poético desta narrativa.
No poema seguinte ANDORINHAS EM OUTUBRO, outono da melancolia, da velhice sei bem, surge o que diria uma evocação das Belas de Kawabata: "clandestinamente / a jovem e o velho amam-se". E finalmente o corpo desejado, em SOLETRO TEU CORPO DESPIDO:
"soletro o teu corpo despido / entre dosi versos. vem /
interrompe a minha morte".
Entramos assim na segunda parte, de título LABAREDAS, pois já o fogo arde na paixão finalmente vivida.
Água e fogo, fusão alquímica, de que há uma bela gravura indiana do século XVIII que Jung reproduz no seu tratado sobre Psicologia e Alquimia.
Em RAPARIGA ENTREABERTA a fusão torna-se explícita:
"ela entreabre-se ao amor: / afastam-se as águas / entra-lhe o fogo". Ou ainda em RITUAL:
"noite a noite, eu colhia / estrelas ou versos na escuridão / incendiada do teu corpo". Toda a relação se passa na escuridão da noite, como se apenas de noite (ou a dormir, como em Kawabata) a paixão pudesse plenamente ser vivida.
TODA A ESCURIDÃO DA NOITE
tinha uma só boca,
mas toda a escuridão da noite
para te beijar.
NÃO SEI O QUE CEGA MAIS
não sei o que cega mais:
o lume, o amor, o silêncio
a tua pele de cal na escuridão.
PARA SER DEUS
deus precisa da eternidade
para ser deus. a mim,
basta-me uma noite contigo.
Adiante falará do que é o seu amor como "ofício de labaredas". Até que tudo se consome e se transforma, nas cinzas do ABANDONO. Terminou a hora da entrega, acabou o que parecia eterno e era só aluguer? Paixão, mas feita de empréstimo e não de completa entrega? Só ele saberá dizer, o que encontrou no amor e na paixão a intensidade do verso.
A paixão definida como "outrora seda" é agora " a pele que a serpente despiu". Resto seco que se deixa para trás como a da serpente , que introduz aqui uma nova metáfora, pois fica no ar a perversidade que atribuímos à serpente, desde logo no Éden, jardim perverso que até agora não tinha surgido.
Recuperando o imaginário que temos acompanhado, vimos a água, o fogo, vemos agora o céu que fora indicado pelos pássaros e agora é de novo pelo vento.
O vento é o pensamento, é o que transporta e transforma, neste caso um coração que o poeta interroga:
"diz-me: quem flutua, agora,
no teu coração
assombrado pelo vento?"
Deixo ao leitor a continuação da leitura pelos versos da Memória, destacando apenas o final, porque de novo, como no início há um apelo pungente, a última chamada que se guardou algures na memória: " esta noite e para sempre /que o meu coração anoitecido / amanheça no teu peito".
Um belo livro.
O MELRO
Não estás aqui ao meu lado.
Bem posso olhar
quando a luz diminui
e na varanda
vem um melro falar.
Se me levanto ele foge
tem a sua relva algures
num jardim não muito longe
onde irá pernoitar.
É feliz esse melro
tem um poiso que conhece
e não tem de procurar.
Eu ainda te procuro
mas já não estás ao meu lado
e não sei adivinhar.
30 de Abril, 2023
O desfazer das coisas, mais uma vez.
Durmo de noite, durmito o dia todo. Tenho o seu livro à minha frente. Abro ao acaso numa daquelas páginas em que apanho logo o sobressalto de um exercício de surrealismo que joga com uma espécie de auto-cadáver exquis entre a ciência, a anatomia cruel de imagens de gráfica anatomia, descerebrada, e um puro jogo de imaginação literária, erudita, por vezes mesmo simbólica, arquetípica que nos deixa perplexos enquanto tanto imaginário que se auto desconstrói nos eleva para outro patamar.
Nuno Félix, é preciso reconhecer, é demasiado sábio para que o possamos entender. Não nos oferece conhecimento, a nós pobres leitores, mas experiência e sentimento. Exige que o sigamos por caminhos estreitos, as finíssimas ou mesmo raras sinapses entre neurónios que se vão esgotando no meio dos exercícios. O que procuro, quando o leio? De modo nenhum repetir o seu impossível exercício, mas descobrir, nos intervalos, algo que esteja escondido e me seja revelado.
Arte é revelação, e a escrita meio surrealista, ainda que entremeada de realismo, traz consigo surpresa, desafio, vontade de continuar. Viramos as páginas, seguimos outro parágrafo, procuramos, numa nova metáfora o sentido que traz. Na Ciência como na Arte o sentido dá vida.
Na desconstrução, que é busca e exercício, ambas se encontram e voltam de novo a construir. Essa é a secreta lição? O sentido da Vida?O que andava perdido do Sinal primitivo?
Leio "Isto é um risco real":
Poderemos continuar ágeis a entrar e sair dos símbolos e a papaguear detritos de uma democracia adulterada? Poderá a mente fazer os dedos agarrar as coisas e espremê-las até o nome aparecer? Como um macaco agarrar e lambê-las e esse saber ser uma nuvem com todas as cores? Quem aparecerá para pensar? Quem ouvirá o pensador desfazer-se no meio do lixo gritar por si - pelo seu nome - pelo nome das coisas querendo tudo separado por gavetas com rótulos? O tempo come os pigmentos da cabeleira das letras - Deixa os símbolos sem correspondência física ou a lei do próprio movimento destruindo a relação à coisa e recriando-se como negação - Funcionará ainda o cérebro com os símbolos rindo da sua loucura?" (p.47).
Para entender seja o que fôr, mesmo uma Democracia deteriorada, há que voltar aos gregos como num outro texto, de abertura, o autor avisou. Heidegger fez o mesmo, quando escreveu, em fim de vida e de carreira recuperada, sobre O QUE É PENSAR. E fez o que é impossível não fazer, se quisermos pensar...recorreu a um verso inicial de um dos grandes poetas, para epígrafe, Hoelderlin, no Hino à Memória, Mnemosyne: somos um sinal que perdeu o sentido...
E aqui estou eu, com Nuno Félix, e o macaco real que também pode ser um sinal, o deus Thot dos egípcios, metáfora escondida de Hermes, o da sabedoria, a cogitar sobre o que leio, também eu em busca do nome, o nome oculto, não meu para que o gritem, mas para que eu o saiba, e o guarde em silêncio?
Será pura coincidência que há dias me tenha debruçado sobre os últimos poemas de Ingeborg Bachmann para descobrir nela o peso das palavras, os nomes que Celan carregou de sentido e lhe foi transmitindo até morrer? Ao mesmo tempo que atrai e recusa os símbolos, eis Nuno procurando à rebours, ele já é de outro tempo, o de agora, o de uma nova negação que constrói e desconstrói, mas sempre para recuperar o que não queremos perdido, o Sentido que só ele dá Vida renovada ao Sinal.
Lilith
Chegara por fim
a sua hora.
À volta dele
todos queriam ajudar
queriam que se salvasse
daquela Mãe negra
que ali pairava com
sofreguidão de raiva.
Ia directa ao coração,
que não comia
como tinha feito com outros
em tempos imemoriais.
Não, desejava agora
arrancá-lo, parando
esforços de salvação,
queria arrancá-lo
do peito tão amado
e enterrá-lo bem longe
na cama de lençóis brancos
que tinha preparado
no seu reino de trevas
onde ficara exilada
por um deus sem nome
que a tinha castigado.
5 de Abril 2023
Ele quer mimo,
tem um gato.
O gato
também quer mimo
e busca na cama fofa
o seu lugar mais quentinho.
Primeiro na almofada
mas é só para enganar
ele quer mimo no pescoço
do seu dono a dormitar
e logo a seguir
no seu rosto
escondido sob o lençol
que ele ajuda a destapar.
Calor a mais não é bom
estraga o mimo procurado,
e o gato deseja agora
o seu peixinho sonhado.
Tanto amor liga estes dois
nunca dormem separados
onde está um
está o outro
este mimo é de durar.
Descubro que afinal
não vivo o Tempo, que
o grande Heidegger definia
como essência que dava ao Ser
a sua parca existência.
E digo parca
porque o Tempo será talvez eterno
se confiarmos nessa filosofia
ou no cosmos que é
também ele um infinito
segundo agora se afirma.
Mas esse Tempo não é nosso,
ensina a experiência de vida,
o nosso é o tempo pequeno
o tempo feito dos dias
que hora a hora se vivem
na busca inútil do Ser
que Heidegger definia.
Também o Ser é pequeno
conforme o tempo vivido
conforme os dias que passam
afinal vão permitindo.