O desfazer das coisas, mais uma vez.
Durmo de noite, durmito o dia todo. Tenho o seu livro à minha frente. Abro ao acaso numa daquelas páginas em que apanho logo o sobressalto de um exercício de surrealismo que joga com uma espécie de auto-cadáver exquis entre a ciência, a anatomia cruel de imagens de gráfica anatomia, descerebrada, e um puro jogo de imaginação literária, erudita, por vezes mesmo simbólica, arquetípica que nos deixa perplexos enquanto tanto imaginário que se auto desconstrói nos eleva para outro patamar.
Nuno Félix, é preciso reconhecer, é demasiado sábio para que o possamos entender. Não nos oferece conhecimento, a nós pobres leitores, mas experiência e sentimento. Exige que o sigamos por caminhos estreitos, as finíssimas ou mesmo raras sinapses entre neurónios que se vão esgotando no meio dos exercícios. O que procuro, quando o leio? De modo nenhum repetir o seu impossível exercício, mas descobrir, nos intervalos, algo que esteja escondido e me seja revelado.
Arte é revelação, e a escrita meio surrealista, ainda que entremeada de realismo, traz consigo surpresa, desafio, vontade de continuar. Viramos as páginas, seguimos outro parágrafo, procuramos, numa nova metáfora o sentido que traz. Na Ciência como na Arte o sentido dá vida.
Na desconstrução, que é busca e exercício, ambas se encontram e voltam de novo a construir. Essa é a secreta lição? O sentido da Vida?O que andava perdido do Sinal primitivo?
Leio "Isto é um risco real":
Poderemos continuar ágeis a entrar e sair dos símbolos e a papaguear detritos de uma democracia adulterada? Poderá a mente fazer os dedos agarrar as coisas e espremê-las até o nome aparecer? Como um macaco agarrar e lambê-las e esse saber ser uma nuvem com todas as cores? Quem aparecerá para pensar? Quem ouvirá o pensador desfazer-se no meio do lixo gritar por si - pelo seu nome - pelo nome das coisas querendo tudo separado por gavetas com rótulos? O tempo come os pigmentos da cabeleira das letras - Deixa os símbolos sem correspondência física ou a lei do próprio movimento destruindo a relação à coisa e recriando-se como negação - Funcionará ainda o cérebro com os símbolos rindo da sua loucura?" (p.47).
Para entender seja o que fôr, mesmo uma Democracia deteriorada, há que voltar aos gregos como num outro texto, de abertura, o autor avisou. Heidegger fez o mesmo, quando escreveu, em fim de vida e de carreira recuperada, sobre O QUE É PENSAR. E fez o que é impossível não fazer, se quisermos pensar...recorreu a um verso inicial de um dos grandes poetas, para epígrafe, Hoelderlin, no Hino à Memória, Mnemosyne: somos um sinal que perdeu o sentido...
E aqui estou eu, com Nuno Félix, e o macaco real que também pode ser um sinal, o deus Thot dos egípcios, metáfora escondida de Hermes, o da sabedoria, a cogitar sobre o que leio, também eu em busca do nome, o nome oculto, não meu para que o gritem, mas para que eu o saiba, e o guarde em silêncio?
Será pura coincidência que há dias me tenha debruçado sobre os últimos poemas de Ingeborg Bachmann para descobrir nela o peso das palavras, os nomes que Celan carregou de sentido e lhe foi transmitindo até morrer? Ao mesmo tempo que atrai e recusa os símbolos, eis Nuno procurando à rebours, ele já é de outro tempo, o de agora, o de uma nova negação que constrói e desconstrói, mas sempre para recuperar o que não queremos perdido, o Sentido que só ele dá Vida renovada ao Sinal.
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