Friday, August 04, 2023

João Cunha Borges, Chão de Estrada Nenhuma, 2023

Um chão de Estrada Nenhuma, título que se torna apelativo pelo facto de uma estrada ser assim, que pode ser sonhada, ou sentida como enigma, pois onde leva, se não existe, ou pelo contrário existe sem limites, esse nada é um tudo, acelera o caminhar em tantas e tão múltiplas possibilidades que difícil será escolher. Mas estão lá, em nenhum e em todo o lado, e é para o caminhar que se aponta no simbolismo do título. O poeta é um caminhante, um viandante, um Wanderer, sobre um chão que se materializou, enquanto a estrada se transformou em onda, roubando agora os conceitos da física de partículas, o poeta vivendo ora no chão-partícula ora na onda que o seu olhar transforma. 
Pois todo o olhar transforma aquilo que vê, e o do poeta ainda mais, pois tem um olhar que sente, um olhar que vibra e que transforma o mundo à sua volta.
Em livros anteriores, pequenas edições altamente cuidadas, com belos desenhos e ilustrações de hors-texte de conhecidos artistas, temos livros de desejo em suspenso e de paixão, seguidos de um desalento citadino, como era tão próprio de Pessoa, o mais citadino dos nossos grandes poetas.
Neste livro encontramos, dedicado a duas amigas, ambas artistas, um Quarto com vista para o silêncio (pag. 59).
Falarei adiante do silêncio, mas de momento devo salientar a cultura vasta deste poeta, que se manifesta logo de início pelas epígrafes que escolhe para enquadrar num pensamento orientador, dos muitos que leu, a sua própria criação. É um poeta lido, culto, e que nos dá em antecipação a memória de algo que o inspirou. 
Era Eduardo Prado Coelho que valorizava muito, nas suas apreciações, as epígrafes que cada um, incluindo ele próprio, escolhia. E na verdade representam uma afinidade do criador com outro criador que também ao leitor podem abrir caminhos de pensamento.
Foi um acaso, ou uma coincidência feliz, que estando eu a ver na televisão o discurso formal do Papa no primeiro dia, o tenha ouvido falar de caminhos, a variedade, e  que na inquietação da procura, ou da escolha, tantas possibilidades fossem oferecidas.
João Borges tem o seu chão. Mas caminha, na inquietação de que não vê estrada nenhuma. Mas caminhando alguma estrada lhe surgirá pela frente, e no caso dele a pulsão do poema, em movimento irrecusável, será a estrada que parecia não existir.
Penso em Clarice Lispector, que dizia que eram tantos os gritos que a abafavam que às tantas se tornava imperioso gritar, por via da sua escrita, apaixonada e intensa, de  coração selvagem. 
Assim nasce o poema. Da necessidade absoluta de ser dito. Esse dizer será construído no silêncio em que as palavras se procuram. São estradas, essas palavras, são caminhos esses versos, tantas vezes imprevisíveis, mas que na inquietação precisamente se afirmam.
Gostei de ver, ao ir lendo o livro, a presença de uma certa marca oriental, sob a forma de um ciclo de dois versos, como se fossem um percurso de Kaikai e que destaco os finais: " dúvidas sobre a verdade / e contas a ajustar no coração / sou eu".
Que belo final, não apenas para um poeta mas para todos nos que o lemos. Pois é a dúvida que conduz à vida, não a certeza, a inquietação conduz, a certeza mata. 
O poeta é o puer eternus de que fala Jung, a criança eterna em nós, a irrequietude da curiosidade, que só ela, como também disse Hawking aos seus alunos de astrofísica conduz ao progresso. O chão a que o poeta se refere, não é o chão que nos prende e paraliza, como na frase popular de ficar pregado ao chão. É o espaço em que o tempo se suspende e nos protege, até que novo impulso nos leve a arriscar, novos desejos, nova paixões ainda que breves se esgotem e possam deixar desalento e amargura. Faz parte da vida, viver o que a vida nos dá de melhor e pior. Viver é uma abertura permanente ao que aí está, e acabaremos por ver, ao caminhar. Nenhuma estrada é o silêncio que a seguir abre a convulsão da palavra. e lembro para lá de Clarice, o filósofo Kierkegaard : quando se esgotam as palavras vem a música. 

Mas gosto da escolha de Gastão Cruz, neste ciclo de dois versos que acima referi. É  dele que João retira o título do seu livro, O chão de estrada nenhuma (pag.17). Criador, com os do Grupo da Poesia 61, ele quer renovar o discurso poético do tempo, junto com Fiama, Luisa Neto Jorge, e outros. Era o discurso do neo-realismo, mas mantendo na mesma um olhar realista sobre a necessidade de mudança social e política, em tempos de ditadura.
 Gastão afirma: " um verso é uma zona proibida" . E era, na altura.
Agora não  há zonas proibidas.
João Borges é já um produto dessa novo imaginário na poesia, nas experiências que abalam corpo e alma, e nada impede que se exprimam, na dôr ou na alegria mais íntima. Os surrealistas serão os grandes arautos da nova escrita, da imaginação em liberdade, da experimentação automática, de cariz freudiano assumido e obrigando a novo pensamento sobre as mensagens do inconsciente, individual e colectivo. 
Quantas estradas, afinal...
Não cabe no curto espaço de um comentário tudo o que a leitura no oferece. terá de ser o leitor a completar os sinais e os sentidos do escrito, do dito e do não dito.

 




 

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