Monday, November 13, 2023

Jorge Reis-Sá, Todos os dias, ed. casa dos ceifeiros, 2023

 Hoje em dia, não todos os dias, mas de vez em quando, como ultimamente, o que me surge para ler parece ter sido escrito de propósito para mim, para mais uma leitura que não me deixe esquecer como ler é importante. Mantemo-nos vivos, por via dos outros que se ocupavam da vida, no seu tempo.

Estamos perante a reedição do que foi o primeiro romance de Jorge Reis-Sá. É raro um autor que deseje  recuperar o que foi a sua primeira tentativa, poética ou romanesca, ou porque a considera ingénua, ou imperfeita,face aos progressos que fez, e conheço alguns, que não citarei, que até omitem, na sua bibliografia, esse primeiro título.

Mas aqui não foi o caso.

 Jorge não renegou a sua primeira narrativa, feita de episódios que têm a contenção dos contos, sendo que sempre achei a arte do conto a mais difícil de todas, precisamente pela capacidade de dizer com menos um todo que ali está contido, do sentido do momento que ali se viveu, e onde é contado.

Eu, falando por mim, confesso que não releio nunca o que escrevi. O que em cada moemnto tinha de ser dito, foi dito, e assim ficará, porque o meu impulso é de seguir em frente, procurar o que há para além do dito, tentando dizer algo mais, ou outra coisa, que reflicta o momento em que vivo. Vivemos em cada momento uma espécie de totalidade que nos aguarda, ao escrever, que não tenha repetição, que seja única, ali mesmo, ainda que difícil de explicar, como a misteriosa afirmação de Deus a quem o interpela sobre quem é ele: eu sou aquele que é. Prefiro esta designação, em vez da usual eu sou aquele que sou. Nesta podemos inferir que ele simplifica a existência do Ser, sou assim como sou e não tenho mais nada a dizer. Uma espécie (perdoem-me o atrevimento...) de aguentem, ouvido na política da indiferença. Já eu sou aquele QUE É alarga o conceito de SER a uma misteriosa universalidade, eterna, de que Heidegger se ocupará longamente no SER E O TEMPO. Aquele que é, é eterno no eterno rio do Tempo, na vibração do cosmos, e está dada uma resposta que não aquieta, mas antes inquieta para sempre aquele que faz a pergunta.

O autor escolheu para epígrafe uma citação de Carl Sagan, o sábio que ilustrou e antecipou gerações que se debruçaram sobre os mistérios de um cosmos eterno face a face com a vida, a existência que é nossa, em que dia a dia todos os dias se materializam, parecendo comungar de uma esperança de eternidade que Sagan refere como desejada, mas reconhece como provavelmente impossível. Tudo no decurso dos dias, todos eles, nos dão a ver o fio da efemeridade, do nascimento à morte. 

É ilusão julgar que alguma coisa de nós, ideia, sentimento, memória que deixemos irá alguma vez perdurar. Um pouco, sim, mas não para sempre. 

Volto a esta obra de Jorge Reis-Sá, que chegou até mim, agora, depois de tantos anos. Alguma coisa nela deixou marca e temos de ler e descobrir o que foi. A forma, como se diz ? O conteúdo? como se diz ao querer determinados conceitos fixados que o Modernismo aboliu por completo, nos anos vinte da Europa? Eu diria que a fusão de ambos, conteúdo com um sentido herdado do neo-realismo detalhado, cuidando do ambiente, da descrição cuidada de personagens e acontecimentos relativos a cada momento descrito, e forma que de facto inova, na estrutura da narrativa entrecortada por reflexões que obrigam a desvio do pensamento do leitor, da época que é de memória de outros tempos, para o presente de agora. E é por essa necessidade de trazer o passado até  ao agora dos nossos dias, todos os dias, que alarga a dimensão da narrativa e deixa a marca, aquela ideia, sentimento, memória, por pequena que fosse, de que falava Sagan. 

Nisto reside o interesse e a actualidade desta obra, num momento em que diários e memórias, recuperação e transversalidades, se tornaram actuais, renovando o prazer de reler o que outrora foi escrito.

Logo no Índice temos a indicação de que estamos perante o esforço de recuperar, reflectido numa prosa cuidada, de um tempo que remonta ao passado, e se divide em fases: a Aurora, a Manhã, o Almoço, a Tarde, o Crepúsculo, o Jantar e a Noite. Para que se perceba que estamos no recuperar dos tempos de uma vida, nada seria melhor do que esta partição de capítulos. O tema, então, é aqui o Tempo, atravessando o ser, os diversos seres que a escrita materializa ao descrever as situações  e os comportamentos de cada interveniente. A progressão da vida, os incidentes do quotidiano vivido na existência mais comum ou mais complexa. Gosto especialmente do modo como o narrador é seduzido, ao longo das páginas que correm, pela imagem-memória de uma criança que por ali se atravessa e o leva a dizer que essa criança é o mlehor que se tem. Pois através dela se recupera a infância que também já se teve, e embora longínqua se torna viva e presente.

Alguém, não me lembro onde, fez referência negativa ao uso da palavra moço numa prosa actual. Não sei porquê. Está em perfeita harmonia com o realismo dos ambientes descritos, desde a casa, ao campo, às galinhas, ao ranger das madeiras, tantos outros pormenores marcantes num neorealismo ali exercitado. Sou do tempo em que na Tavira da minha avó Rosa ouvia dizer, dos rapazes, os moços, ou os mocinhos, se eram mais pequenos, e das meninas as moças, ou as mocinhas, era um modo de dizer carinhoso e adequado aos tempos. 

O que me leva ao elogio da escrita, nesta narrativa de visão e divisão: não cai em elaborações de roupagens estilísticas a despropósito, é realista, sim, mas directa e despida de arrebiques que se usam tantas vezes apenas para encher mais páginas...

Quando a narrativa, mesmo e sobretudo de evocação é genuína, nada mais lhe faz falta. Basta a fidelidade ao que se viveu e se recupera de novo. Com os detalhes necessários, que enquadram o ambiente e as personagens e emoções da altura, apenas talvez com a tal marca de que falava Sagan, o desejo de que mesmo do pouco que somos algo que seja muito permaneça. 

Y. K.Centeno

Lisboa, 2023     






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