Em edição cuidada, como todas aquelas de que Piedade Ferreira e Rogério Petinga se ocupam, saiu na colecção Oceanos mais um livro de Ana Marques Gastão,
LÁPIS MÍNIMO.
Já a côr escolhida para a capa indica a suave melancolia que encontraremos nos seus versos, muito próximos de uma sensibilidade oriental, mística por vezes e igualmente discreta, ainda que directa.
Há uma grande contenção e elegância de alma na escrita de Ana, que me faz lembrar a Princesa Shikishi , filha do Imperador Goshirakawa, que serviu como vestal do templo e deixou um legado de escritos melancólicos de grande luminosidade e beleza. Foi no seu tempo considerada uma das glórias da criação poética, e ainda hoje quem a lê não pode deixar de se encantar :é a alma que fala, na sua simplicidade e nudez.
Deste século XII japonês passamos, com o mesmo encantamento fluido, para os aforismos de Ana Marques Gastão.
São feitos de prosa poética, e um Michaux, por exemplo, se fosse vivo nunca lhes negaria o título de poemas.
Poemas escritos, como ela diz, com lápis mínimo: sentimentos-sugestões-imagens-reflexões em tom menor, usando agora uma linguagem musical.
Há música nos seus textos, no ritmo da sua escrita.
Não é formal, é balançada, mesmo quando alguma suspeição ou amargura a atravessa.
O olhar sapiente (consciente) distancia-se, de si e dos outros, no acto de (se) escrever.Basta evocar Pessoa, Michaux, Celan (que muito admirava Michaux, considerava-se seu discípulo) para percebermos que não há ingenuidade no acto de criação, por muito que a busca da palavra no tempo nos absorva e não cesse. Os poetas perdem, muito cedo, o olhar da infância, a relação entregue e disponível com o mundo. E é no esforço da Ponte que vai surgindo a Obra. As palavras são o seu caminhar.
Quando Ana escreve:
"Roubo-te à linguagem, só assim serás real" (P.43) diz menos e diz mais (Celan) do que aquilo que diz e ficou dito.
Nunca nada fica dito, as palavras levantam vôo, seguem o seu caminho oculto, irão perder-se ou encontrar-se mais longe, noutro espaço, do "Interior Longínquo" de que falava Michaux.
Com Lápis Mínimo desenha-se um espaço-tempo ideal, de apelo e rejeição, de meditação-aceitação do que em si mesmo, pela vida e pela Obra, o autor vai descobrindo: " Que na memória fiquem não só os lugares, mas também as horas"(p.42).
Escrever é descobrir, mais do que inventar: o segredo está lá, no interior dos mandalas.
Ana pode dizer "Sou uma caçadora de emoções"(p.84). Mas sabe que é transformadora, é esse o seu segredo. Esse o fio que nos leva, de página em página, à procura de mais: sabemos de onde partiu ? Pois queremos saber onde irá chegar: rasgada a pele, onde o Outono, o osso do Inverno, a Primavera do coração que bate.
Bem pode dizer, como nos diz no fim:
"A palavra é o meu nome. A palavra quer ser outra de mim, está além".
Bem pode dizer, como nos diz no fim:
"A palavra é o meu nome. A palavra quer ser outra de mim, está além".
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