Há fantásticas coincidências: no dia em que vou ao Teatro São Luiz ouvir as Valsas Brasileiras de Francisco Mignone, recebo o livro de poemas de Henrique Chaudon, meu amigo transatlântico.
Nas valsas encontro o som dos chorinhos, atravessado por Chopin, entre outros mais modernos europeus. Mas o que fica na alma é essa mistura da tradição e do lamento brasileiro com o exercício ora romântico ora modernista das composições de Mignone.
Da pianista Alexandra Mascolo-David escreveu o crítico do Washington Post:
" a splendid pianist, refined, searching and expressive, and her playing is loaded with insight and interpretative detail".
Não poderei dizer melhor.
Quanto ao Henrique, seus poemas são para reler devagar, depois de os ter lido.Também nele encontro o fundo cruzar de linguagens: da paisagem e dos dias brasileiros de sua morada, suas pessoas, seus lugares preferidos, com o trabalho de sublimação que opera na palavra poética. Seu dizer é directo, despido, ainda que emocionado.
Poema do mais Profundo
" Meu coração é campo extenso
onde dormem flores, trigo, ervas.
Meu coração é lago tranquilo
onde passam nuvens, o sol, a lua.
Meu coração é fonte
regato
rio.
Meu coração é poço.
Lá
do profundo silêncio
posso mirar as estrelas ".
A terra, a água, o ar (céu ) - os elementos da vida natural caminham para uma simbiose na meditação que propõe o último verso: o poço do profundo silêncio onde pode mirar as estrelas.
Walt Whitman está na epígrafe, apontando essa sensualidade terreal, mas os poetas são transformadores, alteram tudo o que tocam, e poderemos encontrar também aqui a marca de uma sabedoria oriental, que a imagem do poço condensa, como no Yi King:
n. 48 Tsing, o Poço:
O poço significa união.
O poço não aumenta nem diminui, pode mudar-se a cidade, mas não pode mudar-se o poço... a acção de beber a água fresca do poço repousa na sua posição central e correcta.
Aqui a noção de centro imóvel é o mais importante, e é esse sentimento que os versos finais do poema de Henrique nos transmitem.
Noutro poema escreve:
"...
É hora de ficar parado
sentado imovelmente na cadeira.
Vejo a noite em me redor:
desgasta a pedra, os campos,
meus cabelos, tudo quanto toco.
Não me esforçarei agora.
Sentado aqui nesta cadeira
ouvirei seu falar mudo e convincente:
ensina mais que os longes todos, mais que os alfarrábios.
Mais,
muito mais".
Do panteísmo latente à observação realista de um Erich Fried ou ainda, no fecho que é súmula, o mais e o menos de um Celan quando escreve :
"tudo é menos do que/ é/ tudo é mais" ( in Cello-Einsatz)
Celan do fundo da sua noite da alma, Chaudon do fundo da sua melancolia e abandono ao real ( o real é o destino). Um pouco como nas valsas brasileiras.