NAMELESS, ou a Velhice...
A ideia já lhe andava na cabeça há algum tempo. A falta de uma ideia que agora sentia e nunca tinha sentido antes. Tinha de arranjar maneira de corrigir essa falha. Falha grave no pensamento e que iria a breve prazo fazer dela o que ela nunca tinha sido, uma forma vazia de conteúdo.
Supondo que uma ideia então lhe ocorria, uma ideia qualquer sem importância. O que fazer? Tentar um desenvolvimento que a ampliasse e lhe desse mais corpo?
O pior é que nenhuma ideia surgia que a entusiasmasse bastante para o sacrifício - pois era um sacrifício - esse esforço da escrita.Lembrava pequenas coisas. Mas não conseguia lembrar-se de como tinham começado. Por exemplo, como tinha ido parar a casa daquele jovem estudante alemão que conhecera no lar onde passava férias junto com outros colegas da Faculdade. Ele fugira da RDA, o tempo era ainda o da Alemanha dividida e o seu sonho era partir para os Estados Unidos e ficar lá a tirar um curso de astrofísica. Começou a namorar, por carta, com uma jovem americana que estivera também a passar férias naquele mesmo lar onde ela agora estava. Esperava casar com ela e obter a nacionalidade americana para seguir com os estudos e com a vida. Enquanto esperava recebia estudantes na casa que lhe sido atribuída por ser um refugiado. Uma casa simples, mas com o conforto suficiente para se poder viver nela. Um quarto, aquecimento central, uma cozinha com o essencial e uma casa de banho. Ficava perto do lar onde se recebiam estudantes no Verão, e era aí que ele acabava por conhecer um ou outro que depois ficava mais tempo, saindo do lar e alugando-lhe um quarto mais barato.
Sim, mas ela que tinha de regressar a casa, no seu país, como acordara ali ao lado dele, na cama, depois de um sono tranquilo que ele não interrompera, com grande delicadeza. Pois bem podia ter-se aproveitado daquele sono. Ela lembrava-se de que a dada altura se tinham abraçado, procurando o calor um do outro, dois corpos numa cama estreita, só com um cobertor e que por isso pedia aquele abraço, terno mas cauteloso e sem mais consequências. As cabeças na almofada única, também próximas uma da outra. A lembrança ficava por aí.
Não houve outros dias ali, nem noites.
Ele ajudou-a a encontrar um quarto na casa de uma senhora de idade, muito simpática, que também recebia estudantes em casa. Havia regras, não podia receber rapazes. E banho, só um por semana, se queria mais tinha de pagar, estava-se ainda na fase difícil da recuperação, depois da guerra.. A casa era no centro da cidade, onde ficava a biblioteca, e ela queria aproveitar para ler um autor sobre o qual estava a preparar uma tese.
Continuaram a ver-se, durante o dia.
Ele ia buscá-la, tomavam juntos o pequeno-almoço, ficavam na biblioteca até à hora do lanche e à noite viam o que havia no único cinema da cidade.
Foi aí que ela se lembra de lhe ter pegado na mão pela primeira vez.
À saída ele pôs-lhe a mão nos ombros, carinhosamente. Está frio, terás de comprar um casaco. Depois digo onde se pode, não são muito caros.
Ela sorriu e aconchegou-se melhor contra o seu peito.
Passaram a andar de mão dada, como dois namorados? Não se lembrava. Também não se beijaram. O que lhe acorria à memória era a procura daquele calor dos corpos que se sentiam bem, um contra o outro, sem pedir mais.
O que teria esse domingo tristonho, em que se viu em casa sozinha, sem filhos e sem netos, e a acabar uma tradução que poderia continuar mais tarde, com outra energia, para a fazer lembrar-se de repente daquele encontro de outrora, aos vinte anos - agora tinha oitenta e vários como gostava de dizer a brincar - um encontro que não teria continuação mas lhe trazia à memória pequenos momentos felizes, de aconchegamento e ajuda, sem mais nenhumas consequências que no seu país diriam que podiam ser perigosas?
Não tinha resposta.
Mas sentia de novo o calor desses momentos tão antigos, já passados, e que pareciam agora fazer falta de novo.
A solidão? A velhice instalada? Um dia mais vazio do que os outros?
ou a constatação de que ali, naquele tempo, tinha sido amada por ele e que ele trocaria a sua América por ela, se ficassem juntos, os dois, a partilhar as interrogações que a vida sempre lhes traria. Seria amada e amaria de volta.
Era a velhice que agora a deixava com esta perplexidade: foi mesmo amada, ao longo da sua vida? E ele, foi bem sucedido no que desejou fazer? Alguma vez se lembrou dela? Teria como ela, oitenta e vários anos, filhos, netos?
Os abraços tão ternos, e ao mesmo tempo tão cuidadosos e tímidos, teriam ficado na sua memória, como acontecia com ela, neste preciso momento?
Estaria vivo, mas já entregue num lar?
E por que razão estaria ela neste momento a recordar tudo isto?
Que presença, que abraço, que gesto carinhoso lhe faltava ?
5 de Dezembro, 2024, fragmento de uma novela.
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