De João Paulo Esteves da Silva, tudo o que nos chega não é do outro mundo, é mesmo deste e é sempre surpresa. Pois só deste mundo nos podem chegar surpresas, melhores ou piores, mas ainda não conhecidas....
Como os seus temas, quando se senta ao piano, que acordes nos chegarão aos ouvidos, mais intensos, mais líricos, ou tão subtis que não chegamos a ouvi-los, ficaram escondidos na sua cabeça, como as caras que Michaux procura em aguarelas desfeitas e nem sempre as revela ou as encontra e prefere destruir.
Não sei se é porque tanto gosto desta sua poesia secreta, ou porque estou ainda influenciada pelas Emergências de Michaux que traduzi há uns dias, que agora me ocorre trazer os dois poetas a esta página.
É na página branca que surge a palavra, ou o desenho, e logo na capa do livro o que temos é precisamente a mão, que alguém desenhou para que de longe, o tal outro mundo do título se manifeste, ao alto. Com garras, como se quisesse ir buscar o que não estava a ser dado, e certamente com João Paulo, o secreto e o severo nunca iriam a sê-lo. Desafiante, longe dos imediatos sucessos, seria preciso abrir mais aquela mão que aponta mas não agarra. João Paulo não pertence à geração da moda do querer ter, e ter logo, sem grande esforço. A sua obra é feita de uma procura difícil, muito lenta e paciente, de um alfabeto antigo, primordial, em que o sinal desenhado contivesse um som e um sentido.
Vejamos o primeiro poema desta recolha feita de 2019 até 2022:
Milagre Matinal
O jovem melro ainda não sabe voar.
O tempo vem mas passa lento e ele perde a paciência,
lança-se do ninho e cai redondo no chão.
O cantor pega nele com duas mãos extremamente cuidadosas,
aproxima-o da boca, sussurra-lhe algo ao ouvido e abre as mãos:
o melro sai a voar como um príncipe.
Parece este poema o comentário ao que eu estava a dizer, imperfeitamente.
Há um princípio e um tempo certo, é preciso com paciência saber esperar.
O vôo que o cantor lhe ensina, quando o apanha do chão, é dessa lição que fala, do tempo e da paciência. São o segredo da alma, a energia secreta, tão ligeira que apenas se pode sussurrar, e assim lhe liberta o vôo desejado.
Em Quelques Regrets a narrativa é citadina - sim, um poema pode ter e ser narrativa - não é afinal tudo o que dizemos, tudo o que sentimos, narrativa? Explícita ou implícita? O que se diz, ou não se chega a dizer, sem um tal esforço não existe. O esforço é o do tempo em que temos de pacientar. Neste poema, o acento deve recair sobre o que se procura, a música, e não o materializável imediato:
...enfim, eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,
queria encontrar a música nas coisas palpáveis,
queria ir ter com ela, na vida, e depressa.
Demasiado depressa.
Alguém que ia com ele não o acompanhava e dá-se uma separação dolorosa.
Mas da separação pouco se fala, este não é um poema de amor infeliz e carregado de lágrimas, "baba e ranho", ao modo realista de que o poeta se afasta, embora possa ter alguma pena do sofrimento causado.
Não, mais uma vez é da música e do seu tempo - o tempo certo - como para Michaux foi da pintura, para lá da palavra, que sempre se tratou, juntamente com o tempo. O tempo certo.
Noutro poema adiante, numa viagem, incómoda mas apesar de tudo prazenteira, entre aldeias, ouvia uma evocação de Mozart, o Ave Verum Corpus, entre a brutalidade de um berbequim que furava o universo e o partia.
Assim, em plena vida moderna, vive o poeta a sua vida, musical e solitária, que por vezes corre entre montanhas altas onde chove música e como nascem sóis. E prefere ainda assim o dom da Lisboa que lhe é dada e o leva a querer mais. (RELEVO).
Continuando a leitura, iremos descobrir o quotidiano, a evocação da família, dos namoros da adolescência, estes com humor que bem podiam dar um conto, mas João Paulo é como se deve ser, uma vez dito o que havia a dizer está dito e basta um ponto final, como a última nota de um acordo perfeito. O menos, e retomo o eterno Celan, é mais.
Este livro abre as mãos sobre uma Lisboa (e uma vida) muito citadina e contudo interrompida por um olhar que comenta e apesar de amar, a critica. Nem o célebre pénis de Cutileiro que a tantos ofende, a ele lhe move um centímetro de reacçaõ indignada, apenas se limita a comentar que não é arte.
Esta espécie de olhar que observa e descreve é para poder retomar a seguir o que lhe move a alma: a música. O resto são narrativas, estão ali, podiam estar noutro livro, noutro espaço, o da velha casa de onde saíram e onde por vezes ia passar um fim de dia, até ouvir a mãe falar com ele.
Havia memórias naqueles espaços, coisas aconteciam, que ele recolhia nas suas mãos estendidas.
Contudo estamos perante uma poética de distanciamento, como a brechtiana, que sem nomear ele pratica. É a sua marca de estilo, é o que o distingue de tantos outros autores que por aí proliferam em busca de empatias e de sucessos rápidos, mas a quem falta o secreto sussurro do Cantor no ouvido.
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