Sunday, May 26, 2024

A Palavra

 

24 de Maio, 2024

Há já muito tempo que hesito em continuar com a escrita dos Sintomas, que parei em 2020. Adoeci e pensei não vale a pena, ninguém publicará, só se fôr de novo pelo createspace, que desde 2018 mudou o formato.

Não sei lidar com formatos nenhuns e o meu filho, que é perito, e rápido e seguro, agora não tem tempo, nem paciência. Faz coisas melhores do que ser massacrado pela incompetência da mãe, faz vela, e navegar é tão bom. O meu marido fez os cursos todos, e se fosse vivo ainda continuaria. O mar dá essa maravilhosa sensação de liberdade, limpeza absoluta da alma que a terra quotidiana impede. 

Assim dei comigo a acordar todas as manhãs com a mesma frase, até conseguir sair da cama: vamos lá enfrentar o dia. Que acabam por não ser um dia mas muitos, todos os dias, e sempre com esse pensamento ao acordar.    

Estar doente limita-me e é essa limitação que me impede de acordar bem, de desejar viver o dia em vez de o enfrentar. O dia tornou-se longo, maçador, sei que haverá muitas pessoas como eu na minha idade, a sentir o mesmo, talvez sem conseguir exprimir-se. Murcham devagar até morrer.

Tento enfrentar. Tomo comprimidos. Escrevo, quando consigo. Mas será que o que tenho ainda a dizer não é já redundante e não ajuda ninguém? Todos na minha situação não passam pelo mesmo? Ando por aqui, no blog, a falar de uns e outros quando os seus livros me tocam por especialmente interessantes e me acrescentam pensamento. 

Trazem uma nova ideia, uma nova imagem. Sou feliz quando penso, e consigo escrever. Assim enfrento o dia.

Não se iludam, não se trata de um combate, mas da ilusão de um prolongamento que terei de desejar em cada dia.

No fundo, não perder por completo, como outros mais desistentes, a pequena chama de energia que ainda se esconde algures numa dobra do corpo. 

Enfrentar, pois. Esse é o esforço de cada dia.

Em 2022 julguei que nunca mais seria capaz de escrever. Estranhamente, ao longo de 2023, comecei a escrever poemas, dias e dias a fio, sem saber bem por onde se teriam escondido antes, e tive a sorte de encontrar um editor, também poeta, que me publicou os três livros que lhe entreguei: DIZER, EXISTIR e VENTANIAS - todos com inspiração de um pintor amigo, o Pedro Chorão, cuja pintura, desde o primeiro ciclo que vi, me levou pelos versos dentro que surgiam.

Hoje os livros estarão esgotados, foram pequenas tiragens, a editora entretanto fechou, não se pode ser pequeno em Portugal, país que continua com a mania das grandezas, em tudo o que fazem querem ser os melhores e os maiores e não se apercebe, a gente do país, como isso é parolice, não é grandiosidade.

Publiquei ainda mais dois livros, CLARICE, uma mini edição de uma conversa, uma troca de ideias com a Clarice Lispector, que li e cuja obra acompanhei desde o primeiro ao último livro. Ela já falecida nos anos 70 e eu agora, nesta idade provecta. Posso dizer são oitenta e mais...mas o prazer que me deu esse pequeno ensaio foi imenso. Éramos espíritos afins. E o pensamento não tem idade, tem afinidade. 

E publiquei ainda, noutro editor, mais poemas, AINDA, com uma linda capa do pintor Asger Jorn, o grande dinamarquês do grupo COBRA.

O título fala por si: sim, ainda ando por cá, enfrento os dias, escrevo, e a escrita é a maior justificação. Uma neta e um dos filhos são os primeiros leitores.

Agora estou neste Maio de 2024, e preparo mais dois livros. De novo um mini-ensaio, revelando o segredo de uma história de amor que a Guerra interrompeu, entre Asger Jorn e a minha tia Guenia, pouco tempo antes da invasão de Paris pelos Nazis, e outro de poemas, de que o Bernardo, o meu filho mais velho, quer escolher alguns para compôr.

Já escolhi o título, DEVAGAR. Porque é assim que tenho enfrentado os dias, e quando calha um momento feliz, uma hora de estrela, diria Clarice, nasce não sei de que fundo oculto, mais um poema.


26 de Maio

Hoje mais uma notícia triste, das que se tornaram recorrentes, morreu mais uma pessoa da nossa, minha geração, mulher de um amigo nosso, quase família, pela ligação ao Jazz. Farão os media a evocação que ele merece, dando-lhe as condolências de ocasião?

Penso se a mulher faz mais falta ao marido ou o marido à mulher? As filhas são meigas com os pais, espero que ele tenha esse apoio neste momento.

Estou a escrever por aqui porque o portátil é mais cómodo para mim neste momento.

Na verdade isto deveria ser um Sintomas III, mas escolhi a Palavra porque acordei de novo com essa palavra agora definitiva, enfrentar...

Deixo assim, mas mantenho as datas, porque é de um diário que continuo a escrever, na continuação dos outros.

A limitação, a dependência dos outros é o que mais custa a suportar, embora se finja que não, para não estragar o ambiente que se deseja que pareça normal. 

Que pareça, porque nada já é normal, no ambiente que rodeia um doente com dependência. Ele poderá rir, mas não é o riso de outrora, genuíno. É riso de enfrentamento, embora o alegre que faça rir quem está consigo, e que deseja o sossego de saber que está bem disposto.

No fundo, trata-se de sossegar os outros, e quando eles vão embora de regressar ao estado de abandono, que de verdade é o que sente. Abandono, não deles, filhos, netos ou amigos, mas da vida. É a vida que nos abandona, por muito que enfrentemos os dias, um de cada vez.



 



  




 

1 comment:

APS said...

Eu creio que o mais difícil acaba por ser o início e o fim, e pelo meio razoável a relatividade da vida. Por vezes, a companhia é discreta e silenciosa, mal damos por ela.
No entanto, eu comecei por ler o "Quem se eu eu gritar" ainda nos anos 60, tenho vindo por aqui de vez em quando. E acompanhei sempre os seus textos sobre o Pedro Chorão, de quem sou amigo.
Saudações cordiais.