É sempre uma grande responsabilidade aceder a um pedido que parece simples, mas não é. Dar opinião sobre um texto, poesia ou prosa que um autor hesita em publicar, tentando uma editora que o aceite, ou, no caso de recusa, uma edição de autor.
Na minha idade, que tive de tudo um pouco, aceitações, críticas boas, silêncios e críticas menos boas e sem me importar muito segui em frente, escrever era-me necessário, dissessem sim ou não, só tenho um conselho como o que Rilke deu a um jovem poeta: se sentes que é vital para ti, escrever, escreve, escreve sempre, é a tua vida que está em jogo. Mas se por acaso não é isso que sentes, então não escrevas, faz outra coisa, há muita outra coisa mais útil para fazer no mundo...
Eu sou se calhar menos severa, mas também os tempos são outros e eu própria já nem sou muito deste tempo...
Falemos então deste livro de Luís Bento: o título ajuda, por uma vez reflecte sobre o tempo, mais do que sobre o corpo e suas exigências de ser corpo e ser humano (conceitos e experiências que atravessaram um pouco o ano de 2023, em alguns autores). No caso das vivências do corpo, teve antecedentes vindos de um passado já longe, agora que se vive tudo de forma tão rápida e efémera: Luís Pacheco, que não hesita no palavrão (mas sou eu, aos 84 anos, com uma escolaridade que proibia os neo-realistas...) e Herberto Helder que não hesita com coisa nenhuma, traz uma orgia de imagens, uma originalidade de associação meio surrealista, meio irónica, meio tão lírica que faz tremer o sangue que há nas rosas...e Luís Bento, na sua poesia, traz ao nosso convívio de leitores para que algo mais se acrescente às rotinas de um quotidiano que hoje em dia, tempos difíceis, todos partilham.
Estamos perante uma poesia de estilo narrativo, muitas vezes alargando-se mesmo em curtas descrições que não sendo prosaicas são mais do domínio da prosa do que da poesia, pois a prosa permite alargamentos que o poema prefere exprimir de forma condensada, e buscando, no descritivo e no detalhe do pormenor a realidade ou o seu palpitar secreto, que ali revela e esconde o que vive o poeta.
E vive mal.
As brechas do seu tempo são feridas mal curadas num mundo em decadência, duro, difícil de aceitar para quem de vez em quando sonhou. Não tanto com um amor duradouro, eterno, feliz, mas com uma simples relação de fugitivo prazer. O olhar do poeta sobre o real à sua volta endureceu, e o seu tempo, quando sente que é seu e não lhe foi roubado, deixou arrefecer ainda assim o que podia vir a ser algum sentimento de maior leveza, sob o peso que refere no título.
Gosto de dar atenção aos títulos, porque ali se escondem, tantas vezes, os verdadeiros fios da leitura. O que lhe pesa, na vida que vive, tem apesar de tudo uns momentos: as brechas que o libertam e lhe permitam a revelação da escrita, ou do poema.
A influência dos Haikai tanbém neste futuro livro está presente. Os versos curtos, contidos, a lição ou a reflexão que pode ser moral, ou mesmo irreverente.
Voltemos ao título: o que diria Heidegger, no SER E O TEMPO?
Para Luís parece evidente que é a brecha no tempo que permite a existência do ser. A brecha no eterno imaterial permite a materialização que é a do ser humano. A criatura que surpreende, na sua evolução que poderemos ler em Hariri, cuja curiosidade manchou no Éden um tempo que não teria peso, seria de eterna leveza, descontraída e feliz numa inocência que nada devia ter interrompido.
Mas este tempo de Luís não é virgem, a inocência perdeu-se logo nos primeiros momentos da criação, e agora as criaturas que habitam o planeta manchado sentem não a leveza prometida mas o peso de um eterno mal, o do tempo que tem brechas, mas que foi desviado.
Um post não permite o alargamento de uma página de jornal, por isso não farei como faria normalmente algumas citações dos diferentes poemas em que se mostram diferentes realidades. Escolho um de inspiração oriental, que podia ser de um monge taoísta, ou de alguns poetas japoneses do século XVII mais conhecidos porque já traduzidos na nossa língua, um Bashô ou um que me foi trazido agora, Ryokan, que o Luís gostará de ler, a edição é muito linda e cuidada.
Fiquemos com o Luís:
NOITE
Esta noite traz vinho
e poesia,
Antes que a angústia nos silencie a voz
e eu não saiba o que fazer comigo.
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