Friday, May 31, 2024

Rimbaud em MAIO

 

É ainda o calor de Maio

no mês que está a acabar.

Vejo Rimbaud no chão

 estendido no milheiral

a preguiçar

enquanto não chega o Amado

e a sua hora de amar...

Rimbaud é jovem ainda

com palavras de esplendor

ali estendido ao calor

na alegria de viver

 o seu passageiro amor

o Amado não sabia

que o Maio iria acabar

e que ele arrependido

só saberia chorar

era pecado esse amor

que ele não conseguia esquecer

mesmo fugindo para longe

enquanto Rimbaud esperava

braços abertos olhando

um azul água do céu

em que podia morrer



Sunday, May 26, 2024

A Palavra

 

24 de Maio, 2024

Há já muito tempo que hesito em continuar com a escrita dos Sintomas, que parei em 2020. Adoeci e pensei não vale a pena, ninguém publicará, só se fôr de novo pelo createspace, que desde 2018 mudou o formato.

Não sei lidar com formatos nenhuns e o meu filho, que é perito, e rápido e seguro, agora não tem tempo, nem paciência. Faz coisas melhores do que ser massacrado pela incompetência da mãe, faz vela, e navegar é tão bom. O meu marido fez os cursos todos, e se fosse vivo ainda continuaria. O mar dá essa maravilhosa sensação de liberdade, limpeza absoluta da alma que a terra quotidiana impede. 

Assim dei comigo a acordar todas as manhãs com a mesma frase, até conseguir sair da cama: vamos lá enfrentar o dia. Que acabam por não ser um dia mas muitos, todos os dias, e sempre com esse pensamento ao acordar.    

Estar doente limita-me e é essa limitação que me impede de acordar bem, de desejar viver o dia em vez de o enfrentar. O dia tornou-se longo, maçador, sei que haverá muitas pessoas como eu na minha idade, a sentir o mesmo, talvez sem conseguir exprimir-se. Murcham devagar até morrer.

Tento enfrentar. Tomo comprimidos. Escrevo, quando consigo. Mas será que o que tenho ainda a dizer não é já redundante e não ajuda ninguém? Todos na minha situação não passam pelo mesmo? Ando por aqui, no blog, a falar de uns e outros quando os seus livros me tocam por especialmente interessantes e me acrescentam pensamento. 

Trazem uma nova ideia, uma nova imagem. Sou feliz quando penso, e consigo escrever. Assim enfrento o dia.

Não se iludam, não se trata de um combate, mas da ilusão de um prolongamento que terei de desejar em cada dia.

No fundo, não perder por completo, como outros mais desistentes, a pequena chama de energia que ainda se esconde algures numa dobra do corpo. 

Enfrentar, pois. Esse é o esforço de cada dia.

Em 2022 julguei que nunca mais seria capaz de escrever. Estranhamente, ao longo de 2023, comecei a escrever poemas, dias e dias a fio, sem saber bem por onde se teriam escondido antes, e tive a sorte de encontrar um editor, também poeta, que me publicou os três livros que lhe entreguei: DIZER, EXISTIR e VENTANIAS - todos com inspiração de um pintor amigo, o Pedro Chorão, cuja pintura, desde o primeiro ciclo que vi, me levou pelos versos dentro que surgiam.

Hoje os livros estarão esgotados, foram pequenas tiragens, a editora entretanto fechou, não se pode ser pequeno em Portugal, país que continua com a mania das grandezas, em tudo o que fazem querem ser os melhores e os maiores e não se apercebe, a gente do país, como isso é parolice, não é grandiosidade.

Publiquei ainda mais dois livros, CLARICE, uma mini edição de uma conversa, uma troca de ideias com a Clarice Lispector, que li e cuja obra acompanhei desde o primeiro ao último livro. Ela já falecida nos anos 70 e eu agora, nesta idade provecta. Posso dizer são oitenta e mais...mas o prazer que me deu esse pequeno ensaio foi imenso. Éramos espíritos afins. E o pensamento não tem idade, tem afinidade. 

E publiquei ainda, noutro editor, mais poemas, AINDA, com uma linda capa do pintor Asger Jorn, o grande dinamarquês do grupo COBRA.

O título fala por si: sim, ainda ando por cá, enfrento os dias, escrevo, e a escrita é a maior justificação. Uma neta e um dos filhos são os primeiros leitores.

Agora estou neste Maio de 2024, e preparo mais dois livros. De novo um mini-ensaio, revelando o segredo de uma história de amor que a Guerra interrompeu, entre Asger Jorn e a minha tia Guenia, pouco tempo antes da invasão de Paris pelos Nazis, e outro de poemas, de que o Bernardo, o meu filho mais velho, quer escolher alguns para compôr.

Já escolhi o título, DEVAGAR. Porque é assim que tenho enfrentado os dias, e quando calha um momento feliz, uma hora de estrela, diria Clarice, nasce não sei de que fundo oculto, mais um poema.


26 de Maio

Hoje mais uma notícia triste, das que se tornaram recorrentes, morreu mais uma pessoa da nossa, minha geração, mulher de um amigo nosso, quase família, pela ligação ao Jazz. Farão os media a evocação que ele merece, dando-lhe as condolências de ocasião?

Penso se a mulher faz mais falta ao marido ou o marido à mulher? As filhas são meigas com os pais, espero que ele tenha esse apoio neste momento.

Estou a escrever por aqui porque o portátil é mais cómodo para mim neste momento.

Na verdade isto deveria ser um Sintomas III, mas escolhi a Palavra porque acordei de novo com essa palavra agora definitiva, enfrentar...

Deixo assim, mas mantenho as datas, porque é de um diário que continuo a escrever, na continuação dos outros.

A limitação, a dependência dos outros é o que mais custa a suportar, embora se finja que não, para não estragar o ambiente que se deseja que pareça normal. 

Que pareça, porque nada já é normal, no ambiente que rodeia um doente com dependência. Ele poderá rir, mas não é o riso de outrora, genuíno. É riso de enfrentamento, embora o alegre que faça rir quem está consigo, e que deseja o sossego de saber que está bem disposto.

No fundo, trata-se de sossegar os outros, e quando eles vão embora de regressar ao estado de abandono, que de verdade é o que sente. Abandono, não deles, filhos, netos ou amigos, mas da vida. É a vida que nos abandona, por muito que enfrentemos os dias, um de cada vez.



 



  




 

Friday, May 24, 2024

AQUELE

 

AQUELE

 Por onde anda

que não vejo

aquele que não interroga

mas que o silêncio

em suspenso

nos obriga a procurar...

por onde anda

 espaços onde se esconde

faz-nos falta

mas não podemos falar

as palavras não ajudam

cada momento é especial

não o devemos quebrar

 

24 de Maio, 2024

Tuesday, May 21, 2024

Leituras

 Leituras

Que leitura no dia de hoje

me ajudaria

mais do que não fazer nada?

Estou farta de leituras

e também já estou farta

de nunca fazer nada.

Oiço Pollini ao piano

uma Fantasia de Beethoven

que ainda não conhecia.

Melhor que um livro

sem dúvida, 

a música entranha-se

sem esforço.

Mas o que deixa no fim

a quem perde a memória

de cada nota tocada?

Valia mais a leitura

ou ficar sem fazer nada?

21 de Maio, 2024


Wednesday, May 15, 2024

Luís Bento, DEBAIXO DE TODO O PESO, o Tempo é um processo com brechas

 

É sempre uma grande responsabilidade aceder a um pedido que parece simples, mas não é. Dar opinião sobre um texto, poesia ou prosa que um autor hesita em publicar, tentando uma editora que o aceite, ou, no caso de recusa, uma edição de autor.

Na minha idade, que tive de tudo um pouco, aceitações, críticas boas, silêncios e críticas menos boas e sem me importar muito segui em frente, escrever era-me necessário, dissessem sim ou não, só tenho um conselho como o que Rilke deu a um jovem poeta: se sentes que é vital para ti, escrever, escreve, escreve sempre, é a tua vida que está em jogo. Mas se por acaso não é isso que sentes, então não escrevas, faz outra coisa, há muita outra coisa mais útil para fazer no mundo...

Eu sou se calhar menos severa, mas também os tempos são outros e eu própria já nem sou muito deste tempo... 

Falemos então deste livro de Luís Bento: o título ajuda, por uma vez reflecte sobre o tempo, mais do que sobre o corpo e suas exigências de ser corpo e ser humano (conceitos e experiências que atravessaram um pouco o ano de 2023, em alguns autores). No caso das vivências do corpo, teve antecedentes vindos de um passado já longe, agora que se vive tudo de forma tão rápida e efémera: Luís Pacheco, que não hesita no palavrão (mas sou eu, aos 84 anos, com uma escolaridade que proibia os neo-realistas...) e Herberto Helder que não hesita com coisa nenhuma, traz uma orgia de imagens, uma originalidade  de associação meio surrealista, meio irónica, meio tão lírica que faz tremer o sangue que há nas rosas...e Luís Bento, na sua poesia, traz ao nosso convívio de leitores para que algo mais se acrescente às rotinas de um quotidiano que hoje em dia, tempos difíceis, todos partilham.

Estamos perante uma poesia de estilo narrativo, muitas vezes alargando-se mesmo em curtas descrições que não sendo prosaicas são mais do domínio da prosa do que da poesia, pois a prosa permite alargamentos que o poema prefere exprimir de forma condensada, e buscando, no descritivo e no detalhe do pormenor a realidade ou o seu palpitar secreto, que ali revela e esconde o que vive o poeta.

E vive mal. 

As brechas do seu tempo são feridas mal curadas num mundo em decadência, duro, difícil de aceitar para quem de vez em quando sonhou. Não tanto com um amor duradouro, eterno, feliz, mas com uma simples relação de fugitivo prazer. O olhar do poeta sobre o real à sua volta endureceu, e o seu tempo, quando sente que é seu e não lhe foi roubado, deixou arrefecer ainda assim o que podia vir a ser algum sentimento de maior leveza, sob o peso que refere no título.

Gosto de dar atenção aos títulos, porque ali se escondem, tantas vezes, os verdadeiros fios da leitura.  O que lhe pesa, na vida que vive, tem apesar de tudo uns momentos: as brechas que o libertam e lhe permitam a revelação da escrita, ou do poema.

A influência dos Haikai tanbém neste futuro livro está presente. Os versos curtos, contidos, a lição ou a reflexão que pode ser moral, ou mesmo irreverente.

Voltemos ao título: o que diria Heidegger, no SER E O TEMPO?

Para Luís parece evidente que é a brecha no tempo que permite a existência do ser. A brecha no eterno imaterial permite a materialização que é a do ser humano. A criatura que surpreende, na sua evolução que poderemos ler em Hariri, cuja curiosidade manchou no Éden um tempo que não teria peso, seria de eterna leveza, descontraída e feliz numa inocência que nada devia ter interrompido.

Mas este tempo de Luís não é virgem, a inocência perdeu-se logo nos primeiros momentos da criação, e agora as criaturas que habitam o planeta manchado sentem não a leveza prometida mas o peso de um eterno mal, o do tempo que tem brechas, mas que foi desviado. 

Um post não permite o alargamento de uma página de jornal, por isso não farei como faria normalmente algumas citações dos diferentes poemas em que se mostram diferentes realidades. Escolho um de inspiração oriental, que podia ser de um monge taoísta, ou de alguns poetas japoneses do século XVII mais conhecidos porque já traduzidos na nossa língua, um Bashô ou um que me foi trazido agora, Ryokan, que o Luís gostará de ler, a edição é muito linda e cuidada.

Fiquemos com o Luís: 

NOITE

Esta noite traz vinho

e poesia,

Antes que a angústia nos silencie a voz

e eu não saiba o que fazer comigo.























































 

  

 

Thursday, May 09, 2024

Não nego

 Não nego.

Há dias

em que a ausência

é tão funda

que não há distracção

não há pastilha 

que traga de novo

côr à vida.


NÃO SOU EU

 Não sou eu

é o dia

que está a entristecer


9 de Maio, 2024

Monday, May 06, 2024

Preparação para a Morte

 

OS FILHOS E AS MÃES

Devagar

quase sem dar por isso

há já algum tempo

que estavam a preparar-se

com um afastamento

gradual, quase invisível

mas que as mães sentiam

dia a dia aumentar.

Os filhos não sentiam a falta

entravam e saíam

com naturalidade

e às vezes passava-se

um tempo maior e um silêncio

que elas não interrompiam

pois esse afastamento

fazia parte da vida

e da preparação que a vida já pedia.

As mães sentem que está ali o dia

mas aguardam caladas

não querem que os filhos

antecipem a hora da chegada

uma hora que não sabem marcada

seria estragar a rotina dos dias

e da tranquilidade

que nem sempre lhes é

dada, vivem tempos difíceis

que um dia serão lembrados

e falarão da mãe, do dia especial

que no Dia da Mãe era costume antigo

celebrar.

Crianças, com prendinhas e desenhos

adultos já com filhos e netos

um almoço ou um jantar

que a todos reuniam, ou não podendo ser

um breve telefonema, para num outro dia

combinando lanchar.

 

6 de Maio, 2024

 

 

 

 

Sunday, May 05, 2024

Liberdades

  

AS LIBERDADES

Passaram 50 anos

mas faltam ainda mais 50

ou mesmo 100, quem sabe

os homens tomaram a Liberdade

de assalto já no ventre da mãe

não corria lá sangue

nem o amor natural

das criaturas

apenas uma água suja

impura

deram aos homens uma batuta

por dentro tinha um bastão

nasceram com eles na mão

e hoje são prepotentes

como todos os outros foram

em todos os momentos

que os antecederam

 

5 de Maio, 2024

 

Kantorov

 


O SOM DO PIANO

(calhou ser KANTOROV)

De manhã

Só o som do piano 

o deslisar suave dos dedos

nas teclas que obedecem

acalma o coração desabrido.

Por que razão bate ainda

tão atento a um som tão escondido?

Só o som o acalma

e deixa adivinhar

quem sabe um dia mais tranquilo.

Correm os dedos tão finos

como patas de aranha

tecendo os seus segredos.

Bate o sol nas cortinas

e pousa na varanda um pássaro fiel

mas atrevido.


5 de Maio, 2024

Saturday, May 04, 2024

A Mulher e o Gato

 

 A Mulher e o Gato


Reparo primeiro na mulher.Bastete – Wikipédia, a enciclopédia livre

Sentada no seu jardim

com jacarandás já floridos

à sua volta tudo ainda era seu

e ela uma incarnação renovada

traços tão estilados sem uma ruga sequer

nada que lhe abalasse a  voz

no momento de responder.

Estava a ser entrevistada, sem temor da sua imagem

que não seria deformada, promessa feita e cumprida

naquela tarde tão livre, tarde tão sossegada

que o tempo lhe tinha dado

e ela agora aproveitava sem saber ainda ao certo

que destino o tempo lhe reservava.

Orgulhosa de si

também pouco lhe importava,

dizia na entrevista tive tudo o que queria

que mais posso desejar?

Ao seu colo um gato enorme

dos que o meu filho, que tem um igual ao dela

chama de gato leão, também ele incarnação

do livro dos mortos egípcios

antigo guarda do templo que agora a guardava

a ela, quem sabe sacerdotiza da antiga religião

que nela se revelava.

Não era o gato de Alice, o quântico imprevisível,

era o gato que à mulher se agarrava como criança

perdida e que dela dependia na sua nova função.

Mal lhe cabia no colo, mas tinha a pata bem firme

bem junto ao pescoço do mimo, com a cabeça encostada

que beijava para lembrar que era ele o guardião

a mulher a sua presa, livre do templo de outrora

onde ambos ainda vivos viviam em comunhão.

Agora a vida era outra, mas não se engane ninguém,

a mulher não era a dona, era o gato o seu senhor

que dava calor e mimo, e a protegia dos medos

que de noite a afligiam e a enchiam de terror.

 

4 de Maio, 2024