DEMÉTER
Deméter está zangada.
As árvores já estão verdes
mas não há frutos no chão.
Não há trigo plantado
não há pão
29 de Março, 2024
Sexta-Feira da Paixão
DEMÉTER
Deméter está zangada.
As árvores já estão verdes
mas não há frutos no chão.
Não há trigo plantado
não há pão
29 de Março, 2024
Sexta-Feira da Paixão
Sábados
(para o Carlos, feliz na sua ilha)
O Sábado é um dia mau.
Não sei porquê
mas é mau.
É o último dia,
o Criador rejubila
com a sua criação
mas logo a seguir
num dia outro qualquer
perde o sonhado descanso
longamente ambicionado.
Eva era afinal màzinha
Adão um caso perdido
e ele o Criador
já se tinha arrependido.
Mas era tarde demais
pouco podia fazer
além de contar as árvores
plantadas no seu Jardim.
Ali estavam elas
de raízes profundas
de frutos apetitosos
que ele nunca comeria
pois que a sua eternidade
tal coisa não permitia.
Eterno já ele era
e que ganhava com isso?
Expulso o par primordial
dormir estendido na sombra
que as copas ofereciam
e falar com a serpente,
a verdadeira Rainha.
27 de Março, 2024
A DÔR e a MÃO
Inspiro-me em Ionesco,
não que esteja a morrer
como o seu Rei
que a literatura
ou seria a música?
aliviava um pouco
e agora, pensando nele,
ouvindo música barroca
em velhos instrumentos
sinto que a mim
entre os vários tratamentos
a música me alivia.
Dores não de corpo e alma
mas apenas de corpo
mão estupidamente partida
numa queda distraída
mas que foi operada,
engessada
desengessada
e agora continua a doer,
malvada, sem ter em conta
que chegou a Primavera
e era hora de eu voltar
a escrever
mas quando a mão me dói
dói também o pensamentoMaldita Primavera
semana de tanta festa
e glorificação
e é a mim
que me julgava feliz
pois saiu mais um livro
que me dói tanto a mão...
O Rei morre?
Mas eu não quero ainda
o corpo dói
mas a alma vive
e na música
eterno pensamento
sinto o meu prolongamento
Não é logo
sobre tantos retratos
tranquilos
de sorriso enigmático
com algo escondido
no olhar e
que alguém se precipita
a revelar
que surge a palavra certa,
a do lamento.
Na Primavera também morrem
poetas
como qualquer pessoa
mas dos poetas
exige-se tanto mais...
que fiquem
que perdurem
que nunca de ninguém
se vejam separados
não é para isso que servem
os retratos?
E as palavras, tantas,
que nele ficaram sem tempo
atravessadas?
Não era Primavera?
Não estava a chegar
a bela Proserpina?
Mas poeta é assim:
Conhecida afinal
a última palavra
já não quis esperar.
Trombetas no Apocalipse
E por que não um Scriabin
deslizando suave e breve
pelas teclas de um piano?
Podiam ser asas de Anjo
de compaixão e bondade
pondo fim a uma vida
que foi dada, não pedida
e agora chegava ao fim.
Afinal o que era a Eternidade
que não devia ter fim?
Cito um pintor amigo:
Eternidade, se existe, não tem
princípio nem fim
limita-se a existir, ultrapassa
o que dizemos, pois falamos sem saber.
Deus saberá talvez
e mesmo assim...
6 de Março, 2024
CARLOS NO ATELIER
(para Carlos Nogueira, amizade, admiração)
Caminhar à beira-rio
já é parte dessa busca
que o fecha no atelier
Fernando Pessoa dizia
sempre inquieto com perguntas
o que é ser rio e correr
o que é estar eu a ver?
Sabia o que era esse rio
que corria para o mar
mas de si nada sabia
tinha de perguntar.
Carlos também pergunta
no atelier tem respostas
que podem ser mais perguntas
e o levam a procurar...
junta coisas
junta pedras
desenha no chão
mais espaços
podem ser quartos da infância
brinquedos que se partiram
e ele agora recupera
num moderno imaginário
de que faz parte a pintura
geometrias da alma
num papel ou numa tela
letras de brincadeira
projectos de perfeição
rabiscos de vida inteira
o que se esconde afinal
nesta casa que é segunda
um atelier de magias
onde ele se fecha consigo
faz e desfaz à vontade
o que é de si e de um outro
não perguntem que ele não diz
às vezes nascem de um rio
essas formas que ele inventa
ou de um céu cheio de nuvens
ou de um papel sujo no chão
na alma não há desperdício
todo o sinal tem sentido
merece a sua atenção
Carlos é criador
não é poeta perdido
como Pessoa no rio
pinta a interrogação...
YKC, Lisboa 1 de Março, 2024