Conhecia Maria Roldão como a corajosa editora da Revista NERVO. dedicada à poesia e que já vai no nº9. de 2020. É poeta e resistente e convida para a ela se juntarem outros, oferecendo neste colectivo de poesia uma variedade de vozes que vindas de outros lados nos enriquecem mais. Portugal tem grande tendência para se fechar nos seus e com os seus, e há tempos que o mundo mudou e nem sempre dão por isso, neste país dito de poetas, o que nos empobrece, e muito. Pois bem, chegam às editoras e às livrarias disponíveis para o que se chama, injustamente os mais pequenos, finalmente as outras vozes, as novas vozes, livres, originais, desprendidas, exprimindo sentimento, reflexão, pensamento que apenas presta contas a si próprio. É um imenso progresso, e oferece um imenso prazer a quem os lê, aos novos que aí estão a correr os seus riscos, com um Nervo que sustenta corpo e alma, e preenche com um "pequeno sangue" as veias de uma poesia envelhecida, esvaziada.
Aqui está Maria Roldão, com um livro que é estreia, e de quem se espera que continue assim: pequeno ou grande, em cada poema transporta sentimento renovado, reflexão contida, mas inspirada e que também inspira quem a lê.
A capa é de Sérgio Ninguém, que já nos habituou, em EUFEME, a capas bem concebidas, contendo indicação mais explícita ou menos, de um conteúdo que vamos enfrentar: Aqui, sobre fundo negro, um coração arrancado a um corpo que vai deixar correr esse pequeno sangue...
Começando a leitura pelo fim, destaco OURO:
Percorro-lhe o corpo pequeno
verificando as falhas
os excessos.
Entro e saio inúmeras vezes
da loja das palavras
em busca de sinónimos.
Compro metáforas a peso de ouro.
Fica caro o poema
- ruína do poeta.
(p.50)
Aqui se lembra que este corpo é o das palavras, que a inquirição é permanente, procurando falhas, despindo os excessos, para chegar a uma nudez perfeita. É esse o Ouro escondido do poema, envolto nas metáforas.
E sublinha-se a VOZ:
Aqueduto por onde
correm as palavras.
Distribui o
relato
consoante a sede.
Muitos ouvidos
formam um
regato.
Estamos perto da emoção de traços orientais na sua poesia. Mas Maria Roldão evoca também outras leituras de poetas que amou, em CEMITÉRIO DE TRAÇAS:
O estômago ressequido das traças liberta o
pó das minhas leituras. (...) E vejo agora Sophia e Cinatti em
pequenos montinhos - levíssimos -, com as
asas partidas e o coração à ré. Única virtude:
misturarem-se os dois na mesma penugem
de indigestão.(...)Agonizantes - secam em cima das estantes,
regurgitando rimas, versos brancos e métrica.
(p.48)
Eis o que fica dos outros que amamos, em nós que os absorvemos até que secam, feitos poeira de memória, nos livros arrumados que estão lá cima nas estantes, entregues à devoração das traças, que se alimentaram com o tempo, de rimas, versos brancos e métrica - aquela que agora chega a nós, na sua diferença.
Não posso no espaço exíguo de um post citar tudo o que gostaria que fosse lido por todos: porque em cada poema nos surge algo de inovador, imprevisto e com traços de humor subtil. Deixo os títulos, como em OXIGÉNIO, o corpo-bola de carne, mas que respira...ou IMPROVISO: assoo-me ao riso. Herança de haiku presente em poesia culta ainda que embrulhada em expressões que só a um iletrado parecem quotidianas. Sim, abordam o quotidiano, até ao mais íntimo da sexualidade, por vezes, como em RENDIÇÃO (p.36), ou ATRITO(p.27), ou ainda SISMO (p.25), ou LEGO (p.23) que deixo já entregues à curiosidade do leitor.
Em PEQUENO SANGUE (p.20) que dá nome ao livro, é o vestido que assume as funções do corpo e da palavra entregue:
Dou sangue ao vestido.
Abro-o com o coração desabotoado
e enfio-me na primeira trégua do linho.
(...)
Desenhas uma casa
com o meu corpo. Dispo-me.
Engomas o sangue que despi.
E vou chegando ao fim agora pelo princípio. Momentos de um quotidiano real, o dos dias e as suas acções misturam-se, - é a vida a entrar pela escrita dentro, sendo que a escrita se tornará cada vez mais forte:
preciso de pensar com absoluta nudez -
ideologias, cismas, tensão
e arbítrio
são fibras que me pesam
(p.12)
E para que se compreenda o todo do que se segue, Maria avisa:
Debulho em delírio a pele entre as palavras.
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