Monday, March 15, 2021

Paulo da Costa Domingos, Ilícito, ed. Averno 2020

 



Sobre fundo negro, o cinzento do que poderíamos chamar um mandala, ou um círculo mandálico, tendo por dentro rasgões e peças do quotidiano. É assim a poesia de Paulo: eleva o quotidiano que lhe chama a atenção a uma esfera outra, transcendente, que não explica, deixa em suspenso para que o nosso olhar se fixe e se demore, enquanto lê. A poesia de Paulo da Costa Domingos não permite leituras apressadas, exige a demora, a lentidão de um pensamento que acompanhe o som da sua voz. Podemos ler em voz alta e logo se perceberá melhor o que se diz, num diálogo com um Mestre invisível, Deus ou Diabo, que não respondem à pergunta essencial: "Que tempo fará / quando eu estiver ausente?" 

O poema forma-se, diz ele, como "um veio" (p.6) "no meio/ da fractura/ avulsa/ d'escritura avulsa". 

Os poetas sabem que sem fractura não haverá poema, sem dôr não haverá a exaltação final tão desejada. Há um veio no mandala da capa, que é já um sinal. Dentro estarão os verso que o preenchem.

Adiante de novo um apelo ao Mestre: "Mestre, mestre / esta máquina pós-moderna/ceifa os doze indomáveis na hora/ primeira, o homem da montanha/ na hora terceira.Fende o dique/ para que o dia anoiteça em óleo/ e lama: a lama dúbia da noite".

Dos pesadelos da noite surge a escrita do dia, o verbo que se faz livro, "árvore de cordel" (p.9). Em tudo Paulo sente a fragilidade, do que começa ou do que acaba: "Eu sozinho, mestre, perplexo/ ante a ciência que me deste/do compasso, pétala e agulha". (p.13).

A conclusão devagar se vai afirmando, como os versos anteriores, discretos, deixavam suspeitar:"Nada resta/senão a feroz inteligência da cobra/ em todos expulsar do seu rastro" (p.19). No  poema da página 20, bem como no último com que se fecha o livro, há uma reminiscência da infância (a inocência) perdida e a descoberta de um "nome novo". Nome novo que poderá ser de um homem novo, sem "idolatria nem religião."

Na fresca escuridão, uno.

Foi preciso descobrir e despojar-se, de todas as grandes e pequenas coisas, para atingir este momento em que liberto afirma: "E aqui eu pude, por fim descalçar-me".

Despido e entregue, como Job, tem por fim o poema, o verso libertador, do Uno e do Todo da Tábua de Esmeralda, que não cita, mas reconhece e resguarda.


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