Saturday, January 21, 2017

Tâmaras trazidas pela mão de um músico-poeta, João Paulo Esteves da Silva...

Conheci primeiro o músico, João Paulo Esteves da Silva. Um músico dobrado e concentrado sobre um piano em que totalmente se fundia, e nós em silêncio atento, para o poder acompanhar nos labirintos mais secretos do que nos ia dizendo. A sua música fala, mas exige de quem ouve idêntica concentração.
É assim que eu gosto de ouvir, em silêncio. Seguir, quando possível, um tema ou um motivo que se estrutura, desestrutura, se amplia para respirar e volta a centrar-se numa esfera que sendo a mesma é outra - lembrando-me-me a música das esferas que Shakespeare em muitas das suas peças mais inspiradas descreve. Esferas que são da noite, são do abismo da alma, que a música, subtil, ilumina e revela.
Não fiquei admirada quando descobri que João Paulo era poeta, fazia todo o sentido que ele se exprimisse também numa outra linguagem, igualmente musical, da imagem na palavra, do pulsar do ritmo na palavra, como quem diz é assim que bate o coração do homem, quando fala. Um tal dom é precioso, não é distribuído a todos por Orfeu, o que se perde na noite, e perdido muitas vezes se encontra, daí que seja eterno o mito, eterno o seu fascínio, o seu canto de encanto.
Falemos então de tâmaras, o fruto do deserto, nascido na sombra dos oásis que protegem palmeiras, como se protege a Árvore da Vida. Um frito que sacia, que alimenta, que concede, por breve tempo, repouso.
Aí me encontro com ele, fugindo a um sol que queima, reduz a alma a cinzas.Na Nota final com que encerra o livro, João Paulo explica um pouco do método que seguiu na escrita: mão livre, sem programa prédefinido, "gota a gota, aqui e ali, situações, contemplações, memórias e acasos que, por alguma razão, quiseram deixar rasto escrito".
Deixaram. O resto é arrumação, escolha, com ou sem ajuda amiga e uma decisão: dar a ler, para que os outros vibrem com ele, também na sua poesia.
Abre com um Prólogo, para que não restem dúvidas:
Ninguém consegue
secar esta terra

Uma luz maravilhosa ilumina os pântanos
eterniza amores e pensamentos húmidos

Dentro dos sons 
ouve-se sempre um chapinhar


Estamos ou iremos estar na plena eternidade de um Rimbaud que se esconde, mas está vivo e atento, à Eternidade:
Q'est-ce l'Éternité? 
C'est la mer allée avec le soleil

Alquimia, íntimo sentido do que é a fusão do elementos: a terra (matéria), a luz ( o sol), a água (mercurial, com o sal da vida que retém e transforma). Em tão pouco, ao espírito oriental do que poderia ser um Haiku, se consegue dizer tanto.
A palavra faz falta, mesmo que transborde, quantas vezes, para os sons dos maiores momentos musicais.E aqui a reencontro, páginas adiante, Segundo o Talmud:
As letras e a escrita fizeram-se entre dois sóis,
no tempo duvidoso dos milagres,
 nem na noite, nem no dia, in extremis,
a caminho do descanso.
....
nós misturamos as iniciais dos nomes,
seguramos nestas ferramentas
que quase não existem
e fazemos coisas do outro mundo.

Não é a primeira vez que me acontece, ao ler estes poetas que amo e acompanho, rever ou melhor reencontrar o que escrevi outrora, jovem, ou com uma idade próxima da que eles t~em agora, no seu meio de vida: algum sentimentalismo, mas mais racionalizado por eles, faz parte da sua geração, algum olhar que descreve e se distancia ( encontro por aqui alguns dos meus poemas de Opus 1, quando lia Prévert, Vian, Sophia, Pessoa, ou do Barco na Cidade, que escrevi em Paris ) esta afinidade que sinto, para mim é um sentimento feliz, de que o poeta, evidentemente nada sabe. Mas eu neste momento em que leio, fico grata. Algo de eterno perdura na palavra, flui no tempo, na sua energia sonora, também ela. JoãoPaulo tem o seu poema da Sagração do Verão, eu tive o da Sagração da Primavera: anos sessenta, Stravinsky, Béjart com o seu bailado no cinema Tivoli e o meu amigo de juventude, seu primeiro bailarino na altura, o Patrick Belda, que morreu a caminho de Bruxelas, onde Béjart se tinha instalado com a sua Companhia, numa noite tão trágica que chorei, ao saber, de joelhos no chão. Quando um poeta de agora me traz de volta o meu próprio passado, fico-lhe grata:a poesia vive. É que, como ele escreve no fim da orgia "sagrada" está-se "perto do fim de qualquer coisa / que passou, e ninguém soube, e houve festa". 
As lágrimas fazem parte da festa...o lamento, como a evocação, inscritos na partitura.Não demoro muito mais, há que deixar espaço ao leitor, para que folheie  e descubra por si próprio, mais momentos, reflexões em que não falta um Descartes, nem um Jorge de Sena, olhando para um Van Gogh...o real está presente, no grande imaginário até mesmo por vezes musical.
Escolho as Tâmaras do título:
São tâmaras vinda de Israel: "o sabor leva-me / divago, mastigo".
Entretanto,
olho a colina da Graça, logo abaixo do céu
e vêm-me umas imagens de ermitas a fugir para o deserto,
campeões do ascetismo,alimentados só a tâmaras.
....
Campeões do ascetismo, o tanas,
isto é uma refeição completa, fruta altamente nutritiva,
e requintado acepipe, seus gulosos,
assim, também eu. 
....
Esta facilidade de regressar à razão, à informação curial, não menos saborosa no humor que interrompe algum misticismo (que se calhar com o esplendor da colina da Graça  não faria sentido) - é também uma das irreverentes qualidades que iremos encontrar ao longo das outras páginas. Escrever, ou tocar, para surpreender, faz parte da aventura...E já que no início João Paulo citou o Talmud, digo, como se diz na Bíblia:
" Que o Justo floresça, como a Palmeira..."


















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