Ao acabar de ler um conjunto de poemas de um poeta desta nova geração (que me confiou o seu ms. original) ocorreu-me logo um nome: Ambrose Bierce, cujos contos eu tinha, há muitos anos, comprado em França na tradução de Jacques Papy: Contes Noirs.
De Ambrose Bierce basta hoje em dia fazer um google e ficamos a saber tudo: do jornalismo à escrita de ficção, a sua obra, de sátira ou mais subtil humor negro, por vezes equiparada aos contos de terror de Edgar Allan Poe, marcou os tempos.
Em França, nos anos cinquenta-sessenta, lia-se (descobria-se) Boris Vian, Prévert, os exercícios surrealistas, os cadavres-exquis, os autores do célebre OULIPO (quem sabe hoje quem eram, estes poetas e cientistas que se compraziam na reversão e invenção de regras? )- enfim toda uma produção em que o humor era rei, a crítica e o absurdo punham a nú a sociedade da época (aqui entraria Ionesco).
Tenho ainda algures, perdido nos meus papéis, um exemplar de um dos documentos que teorizava a doutrina dos Pataphysiciens...
Entre escritores e sábios de origens várias, o que se propõe não é muito diferente do que propunha André Breton, nos escritos surrealistas: ir para além de... rompendo normas (de doutrina política, social, cultural, artística) atingir algum outro objectivo, que fosse pertinente para a intervenção de cada um, e de todos, no seu conjunto. Tinham uma revista (de novo, vale a pena ir ver ao google) que durou desde 1950 a 1957. Nela foram escrevendo, para puro gáudio, os maiores daqueles anos, e a sua influência perdurou por uns anos. Era o imaginário à solta, mesmo na produção de pseudo-ensaios de humor sem peias, que não vou citar aqui, mas que permitiam rir à gargalhada sem perder a capacidade, verdadeira, de nos fazer pensar.
Ocorrem-me estas reflexões porque encontro na produção poética de hoje, em alguns casos que me chegaram às mãos, uma mesma capacidade de reinventar situações, vocabulário poético, estruturas que não estruturam, deixam espaços abertos.
Mas falta a capacidade de rir, ou fazer rir, ou ao menos sorrir. Tudo o que não se quer dito, de forma convencional, torna-se convencional, de tão sério.
É bem verdade que a forma mais subtil, a mais difícil, por exigir muita cultura suportando muita inteligência ( Oscar Wilde poderia estar comigo, nesta conclusão) é a forma humorística de expressão. Qualquer um não pode ser o Ricardo Araújo Pereira, como outrora (já o coloco nas páginas da História) não podia ser o Hermann José.
Mas voltando à escrita e aos pataphysiciens: são tantos os jovens de hoje, criativos e originais no que propõem: por que razão, atávica não são capazes de rir? Almada Negreiros ria, e nem por isso foi menos futurista, pelo contrário.
Num dos números dos cadernos de patafísica (n.19) Ionesco escreve: L'Avenir est dans les oeufs. O futuro está nos ovos.
Neste mesmo número colaboram Boris Vian, Raymond Queneau, e há divertimentos como o da escrita em conjunto de Patholorimes, etc, etc. Muito mais, até ao fim - tudo tem um fim, das publicações, já em 1957, como disse, e de continuações sob a forma de volumes de homenagem, como o de Boris Vian, ou sob a forma de revista, até ao fim dos anos sessenta. Há números à venda na amazon, para curiosos, coleccionadores.
E agora devolvo a quem me fez lembrar todo um passado literário - (convivi, imaginem, quando jovem, em Paris, com um ou outro destes génios do humor-livre) a alegria que ele me fez redescobrir:
foi HUGO MEZENA, com o seu Alfabetário, que espero ver publicado em breve. São micro-narrativas, de A a Z, percorrendo o alfabeto da primeira à última letra, em situações imprevistas, que deixam em aberto, para o leitor que as lê, a hipótese de algum desfecho que possa , de tão absurdo, contribuir ainda mais para o tom já de si irónico quanto baste.
Uma ou outra vez, como por exemplo quando define o Intelectual H como "gordo e reconhecido na praça pública" sinto que o adjectivo "gordo", a menos que ele tenha, no momento de escrever, alguém especial em mente (sim, também conheci alguns gordos, muito reconhecidos...) não faz falta, para a descrição que se lhe segue. Definir como gordo limita a dimensão da crítica que pretende. E toda a crítica humorística deve ser universal, e transversal a gordos e a magros (que os há muitos) para ser mais pertinente. Mas é só um detalhe, não retira qualidade à prosa escorreita, pela qual vamos deslizando, com agrado.
Ter uma prosa escorreita é uma grande qualidade, quando se verifica hoje em dia uma abundância de elaborações confusas, trapalhonas, barrocas de tanto enfeite, tanto em políticos como em comentadores e escritores que não conseguem desfiar a meada de um único pensamento sem se enrodilharem nele, a ponto de não sabermos se ali existe mesmo pensamento!
Este ALFABETÁRIO, contido no alfabeto que é o nosso, ultrapassa a ordenação das letras, e faz de cada micro-narrativa uma narrativa maior: de substância condensada, como nos HAIKAI, conduz-nos a outras paragens, paisagens de um imaginário muito mais alargado...
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